Cidadãos Quem?
Esquecidos, palestinos com cidadania israelense enfrentam preconceito e “memoricídio” em um Estado de apartheid não declarado.
Por Mariana Payno - Edição Anônimos - junho de 2013
Manifestante palestino em cadeira de rodas

A noite de outono se aproxima e, nas redondezas do Banco Safra, na esquina da Rua Augusta com a Avenida Paulista, em São Paulo, um pequeno aglomerado de gente começa a se formar. O relógio marca dezoito horas e trinta e quatro minutos, e o calendário, quinze de maio de dois mil e treze. Para a maior parte do mundo, esta quarta-feira comemora os 65 anos da criação do Estado de Israel – para aquela centena de pessoas reunida no movimentado entroncamento paulistano, no entanto, a memória é de destruição.

O ato convocado pela Frente em Defesa do Povo Palestino-SP tem como objetivo lembrar o sexagésimo quinto aniversário da Nakba, a “catástrofe”, em árabe, que se abateu sobre os palestinos no dia 15 de maio de 1948. Seis décadas depois, manifestações por toda a Cisjordânia, Jerusalém Oriental, a Faixa de Gaza e países que abrigam refugiados da guerra de 1948, como o Líbano, também relembram a expulsão de cerca de 760 mil palestinos de suas terras e a destruição de mais de 500 aldeias. A Nakba deixou para trás apenas 160 mil cidadãos palestinos vivendo no território dominado pelas tropas sionistas. Segundo o Israel Central Bureau of Statistics, hoje, este número gira em torno de 1,5 milhão de pessoas, o que corresponde a 20% da população de Israel.

Dentro das estatísticas, estão os herdeiros de Iqrit. Localizada no norte da Galileia, nas proximidades da fronteira com o Líbano, a vila palestina entra na conta das centenas alvejadas durante a Nakba – o que a diferencia da maioria, porém, é o fato de a Suprema Corte Israelense ter reconhecido o direito de retorno de seus habitantes. Poucas construções resistem de pé nas terras de Iqrit, mas são elas que abrigam o recomeço liderado por jovens como Walaa Sbeit. Desde agosto de 2012, o grupo da terceira geração dos moradores da vila tenta trazer, aos poucos, a vida de volta à região, como no tempo de seus avós. “A retomada não é fácil. Muitas vezes vimos nossos esforços destruídos pelos soldados israelenses ou pelos próprios moradores das cidades vizinhas. Plantar uma árvore, erguer uma casa, criar galinhas são pequenas vitórias da resistência”, diz Walaa.

O conflito físico, no entanto, não é a única ameaça aos palestinos que vivem dentro de Israel. O processo de limpeza étnica, que marcou a criação do Estado de Israel desde o início, e a judaização da região, impõem obstáculos em todas as esferas da vida dos palestinos com cidadania israelense – desde um aspecto mais abstrato, que é a construção da identidade de um povo, até o aparato jurídico e legal. “Existem 34 leis que discriminam os palestinos que vivem dentro de Israel. Leis como a de cidadania, a de imigração, a de reunião familiar, a de confisco de terras”, explica Haneen Zoabi, atualmente a única mulher palestina a ocupar uma cadeira no Knesset, o parlamento israelense.

A própria comemoração da Nakba – que tomou timidamente a esquina da Rua Augusta com a Avenida Paulista por aqui e incendiou cidades por lá – é proibida por lei. Promulgada em 22 de março de 2011, a Lei da Nakba autoriza, por exemplo, o Ministério das Finanças a reduzir o financiamento estatal a qualquer instituição que mantiver atividades consideradas “perigosas à existência de Israel como um Estado judeu e democrático” ou por comemorar “o Dia da Independência de Israel como um dia de luto ou de desejo de retornar para sua terra algum dia” – em uma clara violação do princípio da igualdade e dos direitos dos cidadãos palestinos à preservação de sua história e cultura. “Sou encarada como inimiga do Estado onde vivo. Sou um obstáculo para o Estado judeu”, completa Haneen.

O crescimento da população palestina nas cidades israelenses é um dos fatores que assusta o governo de Benjamin Netanyahu (existem 122 regiões dentro de Israel onde os árabes são a maioria esmagadora). Em 2003, o primeiro-ministro Bibi usou o termo “bomba demográfica” ao perceber que, se a porcentagem de cidadãos palestinos crescesse para além dos 20% que representa hoje, Israel não seria capaz de manter uma população de maioria judaica. E mesmo antes disso, alusões à “ameaça demográfica” podiam ser encontradas em documentos, como o Koening Memorandum, elaborado em 1976, para estabelecer um plano de redução do número e da influência dos cidadãos palestinos de Israel na região da Galileia.

 Identidade em xeque

Haneen Zoabi é muito enfática quando questionada sobre a identidade dos palestinos que possuem cidadania israelense: “Me defino como uma cidadã palestina de Israel. Recuso essa definição de árabe-israelense. Nós não somos árabes que pertencem a Israel. Não sou israelense porque, para ser de fato israelense, você precisa ser judeu. Então, nós somos palestinos cidadãos de Israel, embora o termo cidadão aqui se aplique apenas de maneira oficial, porque na prática nós somos discriminados.” Para Azmi Bishara, pesquisador do Arab Center for Research and Policy Studies, em Doha, a identidade palestina não separa os palestinos que são cidadãos de Israel dos palestinos que vivem na Cisjordânia e na Faixa de Gaza ou como refugiados em outros países. “A cidadania israelense não determina sua identidade ou pertencimento, uma vez que é simplesmente uma definição oficial e legal. Apesar dos esforços para fazer desta nacionalidade forçada uma expressão da identidade palestina, não se conseguiu mudar a identidade coletiva de palestinos que vivem em Israel”, afirma.

A cidadania “árabe israelense”, criada e imposta por Israel aos cidadãos palestinos que permaneceram nos territórios ocupados depois da guerra de 1948, é encarada como uma tentativa de desconectá-los de sua verdadeira identidade palestina. Desde a infância, eles enfrentam um processo de esquecimento da própria língua, história, literatura, cultura – um verdadeiro “memoricídio”. Operando em dois sistemas educacionais separados (um para crianças judias e outro para as palestinas que residem em Israel), o governo israelense estabelece nas escolas árabes um currículo em hebraico, que adapta a narrativa sionista, com pouca ou nenhuma participação da história palestina. “Os livros escolares de História, Geografia e Educação Cívica se destinam a legitimar o Estado e suas ações, para reproduzir a narrativa nacional e educar seus cidadãos”, explica Zvi Bekerman, professor da Escola de Educação da Universidade Hebraica de Jerusalém. “A Lei da Educação diz que o sistema educacional deve promover a língua e cultura hebraica”, diz Haneen.

Da mesma forma, outros âmbitos da jurisprudência israelense cerceiam e controlam a vida dos palestinos que vivem dentro da autodenominada “única democracia do Oriente Médio”. Para ilustrar com alguns exemplos: com base no princípio da “segurança”, as autoridades do Estado de Israel podem prender preventivamente qualquer palestino, por meio das chamadas “prisões administrativas”, por até três anos e sem qualquer julgamento ou intervenção jurídica. A propriedade é constantemente ameaçada pela Lei da Ausência, segundo a qual os palestinos – mesmo os que residem dentro das fronteiras de 1948 – podem perder a posse de sua terra caso deixem Israel. Todo palestino que tenha deixado sua vila depois de 27 de novembro de 1947 é considerado ausente, mesmo que nunca tenha saído de Israel.

Outra série de leis é direcionada apenas àqueles que prestam algum tipo de serviço ao Estado, seja este militar ou alternativo. Os palestinos que vivem em Israel não entram paro o exército (obrigatório a todos os cidadãos judeus, homens e mulheres, não ortodoxos), de forma que a cartilha Rights of Those who Performed Military or National Service Bill, adotada pelo parlamento em 2010, garante uma série de benefícios apenas para a parcela da população que presta serviço militar. De acordo com a lei, os ex-soldados podem receber ajuda financeira para estudar em qualificadas instituições de ensino e assistência para comprar propriedades. Há ainda a Civil Service Law, aprovada pelo Knesset em 2011, que prevê que pessoas que serviram o exército israelense ou que prestaram outra forma alternativa de serviço nacional terão preferência quando contratadas para cargos públicos. 

A criação dessas leis revela um esforço do governo israelense em incentivar jovens palestinos que vivem em Israel a participarem dos serviços civil e militar. Desde 2006, uma ala política encorajada pelo ex-premiê Ariel Sharon tenta, inclusive, implementar uma lei que torne esse tipo de serviço obrigatório também para os cidadãos palestinos. A comunidade palestina dentro de Israel enxerga a adoção dessa lei como algo extremamente problemático, porque ela define que, em tempos de guerra direta, todos os jovens que estiverem envolvidos em serviços militares ou civis serão recrutados – mesmo que não trabalhando no front, os palestinos se colocariam contra seu próprio povo, em mais uma etapa do constante processo de aniquilação de suas raízes. 

Apartheid não declarado

Essa prática de legislação discriminatória tem se intensificado nos últimos anos. Em 2009, as eleições no país trouxeram para o Knesset uma das maiores coalizões de direita da história. Como consequência, uma série de leis que afetam os palestinos que moram em Israel foi aprovada, fazendo com que sua cidadania, um direito básico em qualquer Estado democrático, se transformasse em um privilégio condicional e limitado. Configurando uma espécie de apartheid não declarado, parte dessa legislação tem como objetivo prevenir, contornar ou mesmo anular decisões da Suprema Corte que fornecem alguns direitos para os cidadãos palestinos, filhos e netos da guerra de 1948. Poder-se-ia dizer que essa legislação discriminatória é um reflexo de um discurso político israelense que vê em seus cidadãos palestinos e em seus representantes políticos uma ameaça à natureza básica ou a existência de um Estado judeu.

Já é noite em São Paulo. A pequena multidão que tomava conta do cruzamento da Paulista com a Augusta começa a se dispersar, depois de algumas horas de explanação sobre a Nakba e tudo que já foi mencionado. Pelo cálculo do fuso-horário, é madrugada em Israel. Nos bairros árabes, os cidadãos palestinos dormem o sono intranqüilo de quem vive em meio à opressão, à segregação e ao conflito – exterior e interior. Lutando pelo direito à memória e à manutenção de sua própria história, em Haifa, Nazareth ou Iqrit, a juventude palestina responde ao primeiro premiê israelense, Bem Gurion, que em 1948 declarou: “os velhos morrerão, os jovens esquecerão”. Esquecidos eles próprios, os palestinos não esquecem. “Enquanto nós estivermos aqui e mantivermos nossa identidade nacional, o projeto sionista não estará completo”, finaliza Haneen Zoabi.



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