Em 6 de junho de 1985, a notícia de um corpo exumado do cemitério de Embu das Artes, a 27 km de São Paulo, tomou os jornais do Brasil e do mundo. O corpo seria do médico nazista Josef Mengele, que teria morrido em um afogamento na praia de Bertioga em 7 de fevereiro de 1979 e enterrado sob o nome de Wolfgang Gerhard.
Os restos mortais foram encontrados após buscas da polícia alemã, cinco dias antes, na casa de Hans Sedlmeier, ex-funcionário da fábrica da família de Mengele na cidade de Günzburg, onde encontraram cartas escritas pelo próprio Mengele remetidas ao casal de austríacos Wolfram e Liselotte Bossert, que vivia em São Paulo. O delegado Romeu Tuma, superintendente da Polícia Federal em São Paulo, foi informado das descobertas e invadiu a casa do casal no Brooklin, que então confessou que haviam acobertado o médico entre 1970 e 1979.
Nos dias seguintes, legistas americanos e autoridades alemãs desembarcaram no Brasil para ajudar nas investigações e identificação do corpo de Mengele, um dos criminosos nazistas mais procurados, conhecido como o “Anjo da Morte”. Após a análise do esqueleto e a superposição fotográfica da foto do médico nazista com a do crânio encontrado os responsáveis deram como comprovada a autenticidade da suspeita.
“Os judeus vieram para a fábrica de sabão”, Ben Abraham ouviu alguém gritar do lado de fora. Era 1944. O vagão, apinhado de gente, vinha do gueto de Lodz, cidade natal de Ben na Polônia, e havia chegado em Auschwitz . O trem freou, as portas abriram num estrondo e uma quantidade enorme de soldados com submetralhadoras apareceu. “Raus, raus, verfluchte Juden!” (Fora, fora, malditos judeus). Em meio à confusão geral, os velhos e crianças eram colocados separados, mulheres iam para um lado, homens para outro. Todos, porém, passavam em frente a uma comissão “médica”. No caso de Ben, era encaminhada pelo doutor Josef Mengele. Olhando apenas o aspecto físico das pessoas, indicava com o dedão para a direita ou esquerda, enviando aquelas, a seu ver, aptas para o trabalho forçado, e as outras para a morte em câmara de gás. Ele foi para um lado, sua mãe para outro. Foi a última vez que a viu. “Eu passei na frente dele e enfrentei, por uma fração de segundo, o olhar dele, que ficou gravado na minha memória para sempre. Tem coisas que ficam gravadas na mente”, recorda Ben.
Deportados chegam ao campo de concentração de Birkenau
“Não é homem como o Mengele”, foi o que ele disse logo que a história veio à tona. Por ter visto de perto, ao vivo, o médico nazista responsável por 400 mil mortes, Ben Abraham era cético desde quando a primeira notícia apareceu na imprensa naquele 6 de junho de 1985. Baseado apenas em sua convicção, começou a trabalhar em cima da sua hipótese de que aquilo tudo não passava de uma trama, que envolveria o governo norte-americano, alemão e israelense.
Suas descobertas são detalhadas em seu livro Mengele – A verdade veio à tona, onde estão reproduzidos 75 arquivos que corroboram esse quebra-cabeça de que o corpo não era de Mengele. São 8 cartas, 12 artigos e matérias de jornais, 13 documentos, entre RGs, íntegra do depoimento de Liselotte Bossert e fichas médicas, e 42 fotos de Josef Mengele na adolescência, de vários ângulos do rosto do suposto sósia de Mengele, de vítimas do holocausto, do próprio autor em encontro com chefes de institutos e políticos israelenses etc.
Ben sustenta que o corpo era de um sósia e o circo teria sido montado para que o médico não fosse descoberto pelos caçadores nazistas e julgado, como acontecera com Adolf Eichmann , sequestrado na Argentina em 1960. Em sua versão, o verdadeiro Mengele teria morrido no início de 1992, nos Estados Unidos, protegido pela Organização Odessa (rede montada por veteranos das tropas SS para proteger camaradas perseguidos por crimes de guerra) tendo sido cremado seu corpo para que não houvesse provas da farsa.
A cobertura dada pela CIA seria porque os americanos teriam usado muitos dos resultados das experiências nazistas a seu favor, fazendo vista grossa para alguns desses criminosos – como o próprio Mengele – para que eles não fossem julgados e acabassem delatando o usufruto dos Estados Unidos dessas pesquisas imorais e antiéticas. Daí terem enviado para participar da autópsia de Mengele os legistas norte-americanos Lowell Levine, odontologista-forense da Polícia de Nova York e Ellis Kerley, antropologista forense da Universidade de Maryland - ambos participantes da autópsia do presidente John F. Kennedy, notório caso que gerou uma famosa teoria de conspiração. Tanto que, de fato, logo após o fim da II Guerra Mundial, em 1946, Josef Mengele esteve nas mãos dos norte-americanos, mas foi logo solto.
Ben levantou várias incoerências em sua busca, como a diferença de circunferência dos crânios – em documento de 1938 de Mengele, seu crânio media 57 centímetros, enquanto do morto desenterrado era de 50,5 centímetros -, o fato de o médico ter sofrido de osteomielite e nenhum vestígio da doença ter sido encontrado na ossada (a enfermidade deixa vestígios para sempre nos ossos), e de ter os dentes obturados e na arcada dentária do esqueleto não aparecer nenhum.
Outra prova que defende é o depoimento da dentista Maria Helena Bueno de Castro. Ainda que oficialmente não tenha tido o seu testemunho colhido como prova, ela afirmou ter tratado de Josef Mengele em seu consultório em abril de 1979, ou seja, dois meses após a sua morte, datada de fevereiro. Suas três testemunhas foram mortas em 1988: a secretária foi atropelada e os clientes João Vitor e Cícero Menezes assassinados. Em reportagem do jornal Folha de S. Paulo de 28 de junho de 1992 (http://acervo.folha.com.br/fsp/1992/06/28/15/), ela disse que fora ameaçada de morte.
As investigações de Ben levaram-no até a constatar que, em março de 1985 – três meses antes de acharem o corpo em Embu - as radiografias e os registros médicos de Mengele foram roubados do Centro de Documentação em Berlim. Os documentos que seriam provas suficientes para confirmar a ossada imediatamente.
Ele não foi o único que acreditou em sua tese. Teve o total apoio do seu amigo de infância coronel Menachem Russek, sobrevivente do nazismo e então chefe das investigações em Israel sobre os criminosos nazistas, e Maurice Rogev, chefe do Instituto Abu Kabir de Medicina Forense e patologista-chefe do exército israelense. Ambos não reconheceram o corpo mesmo após a comprovação e acabaram afastados de seus cargos. O caçador de nazistas Simon Wiesenthal e Neal Sher, então do Departamento de Justiça americano, também se mostraram céticos na época da descoberta.
Ben conseguiu com que durante sete anos as atas em torno do caso Menegel não fossem fechadas nem por Israel, nem pela Alemanha e pelos Estados Unidos. Em 1992, foi realizado na Inglaterra o exame genético feito com a amostra de sangue doada por Rolf, filho de Josef Mengele, e fragmentos de ossos do corpo exumado do cemitério de Embu pelos doutores Alec Jeffreys, da Universidade de Leicester, e Erika Hagelberg, da Universidade de Oxford. O caso foi, então, finalmente encerrado.
Ainda que não duvide da veracidade do resultado, ele alega que ao invés dos ossos de Embu, pode ter sido enviado um osso dos restos mortais que pertenciam ao seu pai, mãe ou um dos seus irmãos. Todos eles repousam no cemitério de Günzburg, cidade natal de Mengele, que, como ele mesmo apurou, não é policiado e fica deserto à noite – o que daria uma janela perfeita para que esses restos mortais fossem roubados.
Era Véspera do Ano Novo judaico, 1942. A morte do pai foi repentina. Ocorreu quando estavam no gueto. Tinham acabado de escapar de um “sperre”, tipo de batida policial que a S.S. praticava cercando prédios do gueto de Lodz em busca de “voluntários” para completar a cota de 20 mil judeus para deportação. Ainda que fraco, o pai foi salvo por um conhecido entre os soldados. Mas logo que voltou para casa, teve convulsões e faleceu. Teve uma cerimônia fúnebre normal: conforme o ritual judaico, Ben e seu tio lavaram o corpo do morto, que foi enterrado com roupas brancas, providenciadas pela mãe. Seu pai morria com menos de 45 anos. Ben rezou o Kadish, reza dos filhos pela alma dos pais.
FOTO 2 – Crianças sobreviventes de Auschwitz em 1945
Logo que chegou a Auschwitz, Ben presenciou uma das cenas mais marcantes de sua vida: soldados da SS cortaram com uma baioneta a barriga de uma mulher grávida e ficaram “admirando” o feto. Cenas como essa eram recorrentes nos campos. Paredes sujas de miolos de crianças recém-nascidas retiradas dos braços de suas mães e arrebentadas contra a parede também.
A fama mais notória de Josef Mengele se deve justamente a suas experiências com crianças, principalmente gêmeos. Nascido na cidade de Günsburg, em 16 de março de 1911, de uma família rica e tradicional, formou-se médico pela Universidade de Frankfurt em 1938. Em 1943, foi promovido capitão da SS e enviado a Auschwitz, onde permaneceu até a evacuação do campo, em 18 de janeiro de 1945.
Foi lá que realizou as suas pesquisas com cobaias humanas vivas, obcecado pela ideia de criar em laboratório pessoas de “raça superior” e desvendar os mecanismos da hereditariedade. Para isso, separava anões e pessoas deformadas para dissecá-las e entre as suas vítimas estão 250 pares de gêmeos entre os 400 mil judeus húngaros que foram deportados e exterminados em Auschwitz em 1944. Injetava substâncias como metileno nos olhos das vítimas, para testar se ficariam azuis em crianças que eram loiras mas tinham os olhos castanhos, ou cimento líquido nos úteros das mulheres para estudar os efeitos da esterilização em massa.
As experiências de Mengele não eram casos isolados no regime nazista. Estava em conjuntura com a concepção de que o povo alemão era um corpo só, uma raça superior, cujos tumores (entenda-se judeus, ciganos, doentes incuráveis) deveriam ser extirpados. Daí realizarem com esses grupos testes de esterilização em massa, militares e de novos remédios – como para doenças como tifo e malária. No campo de concentração de Buchenwald, no leste da Alemanha, 600 mulheres morreram após terem sido inoculadas com o agente transmissor do tifo, para testarem as novas drogas.
Após o fim da II Guerra Mundial e antes de morar no Brasil, Josef Mengele se abrigou na Argentina, Paraguai e Uruguai. Usou cerca de dez nomes diferentes durante sua passagem entre esses países, além dos que ficou conhecido no Brasil: Peter ou Pedro Hochbichlet, Wolfgang Gerhard e Pedro Müller.
Quando a guerra começou, Ben tinha 14 anos. Durante o tempo em que passou no gueto e nos campos de concentração, o sofrimento maior era com a fome. Em Lodz, recebiam uma sopa que não passava de uma água sem sabor, com quatro míseros pedaços de batata que boiavam no líquido. Sonhavam com a chegada do Yom Kipur, quando recebiam o ‘Tshulent’, uma massa de batatas com farinha. Bem melhor. A sua preocupação era sempre aguentar mais um dia e para isso ele inventava datas em que seria libertado. Quando o dia imaginário chegava e nada acontecia, ele adiava a data. A última foi 1º de maio de 1945 – seu dia D.
“Nas palestras, me perguntam se eu posso perdoar. Eu posso reconhecer os esforços dos alemães para reparar. Mas como eu poderia enfrentar os milhões que foram assassinados pelos alemães, sem discriminação de idade ou sexo, no dia em que eu chegarei lá em cima e eles me perguntariam: ‘quem te deu o direito a perdoar?’ Não cabe a mim perdoar”.
Alguns bons amigos de Ben do gueto e dos campos de concentração não tiveram a mesma sorte que ele. O velho Litwak, que trabalhou com ele na fábrica de tamancos, o italiano de 20 anos chamado Giovani, que sempre distribuía tudo o que tinha e rezava pela salvação dos judeus, um rabino húngaro que, mesmo após um dia cansativo de trabalho, lavava os mortos conforme o ritual judaico... todos morreram.
Ben, cujo nome real é Henry Nekrycz, acabou escolhendo o Brasil como lar e naturalizou-se brasileiro em 1957. Hoje, milagrosamente, não leva nenhuma sequela das doenças que o acometeram durante a vida – teve tifo, escorbuto, disenteria e tuberculose dupla.
Dá para ouvi-lo descer as escadas com dificuldade e o arrastar dos pés ao entrar na sala grande e cheia de pequenos detalhes, vestindo uma camiseta polo azul marinho, com listras finas amarelas horizontais, calça social preta e de sandália masculina preta. Junto com a respiração com dificuldade e profunda, podem parecer sinais de algumas doenças, mas são apenas fruto da velhice. “Até meio dia ainda tô gente. Depois do meio dia, tô um trapo”, diz.
As mãos, que carregam dois anéis dourados, um em cada dedo anelar, também revelam apenas os sinais dos 87 anos de vida – nada que aparente os calos e inchaços terríveis das mãos da época em que aprendeu trabalhos manuais no gueto, onde plantou, foi soldador, branqueou caldeiras de cobre e consertou máquinas de costura. Quando lê, tira os grandes óculos, coloca o livro a menos de um palmo de distância e fecha um dos olhos azuis.
Fica mais solto e confortável conforme trata de coisas além dos assuntos esmiuçados em seu livro sobre Mengele ou seu passado na guerra, como política, seus dois filhos e quatro netos ou os incentivos mútuos que ele e a mulher Miriam – ela também sobrevivente do Holocausto - trocavam na hora de escrever suas obras. Em um desses momentos descontraídos, ele tira rapidamente o boné do New York Yankees para coçar a cabeça e é então que aparece a careca com alguns poucos fios brancos de cabelo.
Era dia de Festa das Cabanas. Essa tradição judaica, também conhecida como festa do Sucot, celebra os 40 anos que os antepassados passaram no deserto de Sinai, após o êxodo do Egito, e é comemorada após o Yom Kipur. Enquanto os ortodoxos montam os sucás (espécie de tendas semelhantes às usadas pelos judeus durante o período celebrado) em suas casas e habitam nelas por sete dias, Miriam passa o dia no sinagoga, rezando pelos mortos. Naquele 8 de outubro, ela rezou por todos os parentes que perdeu durante o Holocausto – é a única sobrevivente de toda sua família na Europa. Mas, principalmente, reza pelo filho. “Com o tempo, as coisas se alojam dentro do coração. Parece que o sofrimento virou uma pedra lá dentro, não consigo mais chorar. Eu sofro tanto pela morte do meu filho que a dor do holocausto passou para o segundo plano”, diz.
Ben Abraham em sua casa, janeiro de 2012
O retrato do filho, morto há 11 anos tragicamente após cair do telhado, fica em uma estante do lado oposto da sala, entre duas estátuas. Divide atenção com as lembranças de pelos menos quatro países, que enchem um pequeno espaço no canto esquerdo da estante: um pote grande do Peru, um dente de elefante da Indonésia, uma miniature de pescador da China, uma estátua de oito braços de Israel. São viagens feitas a turismo ou para atender conferências, palestras, seminários em que são convidados para debater ou expor suas vidas durante o holocausto. Ben e Miriam conhecem mais de 72 países.
Aos eventos, acompanham as fotos de personalidades, que também tomam importância considerável na decoração da casa onde moram há cerca de 50 anos. Miriam fez questão de pegar a foto de Ben apertando a mão da presidente brasileira Dilma Rousseff: ela sentada e ele em pé, os dois com sorriso no rosto. Uma daquelas clássicas que você vê em filmes em que as pessoas comuns se orgulham de encontrar com ilustres personagens.
Ben, porém, não poderia ser considerado uma pessoa comum. Ele não se encaixa em nenhum dos sentidos de dicionário da palavra, algo como “usual, normal, habitual”. Não é comum pessoas terem presenciado soldados cortando a barriga de uma mulher grávida com uma baioneta, sido chicoteadas humilhantemente ou que tenham dormido em cima de dois ou três cadáveres para se manter aquecido dentro de um vagão ou acima do nível da água em uma lavatório todo encharcado. Assim como os outros milhares de sobreviventes do holocausto, que vem diminuindo com o passar dos anos, também não podem ser considerados como tal.
“Não me importo de continuar indo em palestras. O quanto ainda conseguir passar a minha mensagem, quero fazê-lo. O holocausto nunca pode e deve ser esquecido. O maior crime já praticado com um povo inteiro durante toda a história da Humanidade. Um crime premeditado, cuja finalidade foi eliminação desse povo, aproveitando mão de obra gratuita deles, enquanto podiam trabalhar”. Leva esse pensamento como uma missão desde que foi libertado e a convicção transparece nos 15 livros já publicados, com cerca de um milhão de cópias vendidas. Isso sem contar os artigos que assinou em jornais de todo o país. Uma vida toda construída nessa crença, mais forte e presente do que qualquer outra que possa ter defendido em alguma época – como a da suposta morte de Josef Mengele.
Passados 20 anos desde que o caso foi encerrado, 18 desde que o livro em que se dedica exclusivamente a explicar sua tese foi publicado e 68 daquela fração de segundo em que enfrentou o olhar do “Anjo da Morte” não há qualquer tentativa de tentar convencer ou angariar simpatizantes a sua causa. A missão, para ele, nunca foi vista como uma caça a um furo jornalístico. Era mais uma obrigação moral para com a sua mãe e aqueles que foram dizimados durante o Holocausto. “Quando a gente passa na frente de uma pessoa que escolhe você para morte ou para trabalho, o olhar dessa pessoa fica gravado para sempre em sua memória. Eu tôvendo nesse momento como estou passando na frente dele.”
Hoje, como jornalista, mostra um trabalho de apuração minucioso; como sobrevivente do holocausto, uma determinação e esperança louvável; como defensor de uma teoria improvável, um desprendimento de quem há anos deixou para trás aquilo que, depois de tantos acontecimentos e memórias, já tem pouca importância. “O que as pessoas pensam não me interessa. O pensamento é livre. Eu provei que era isso mesmo”.
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