A hora para o início do jogo se aproxima, e parte do time da Portuguesa - a genérica, da várzea - está reunida na frente de um boteco, ao lado do campo de grama sintética de Paraisópolis. Eles conversam e aguardam a chegada do restante da equipe. Edivan Macedo dos Santos, 31 anos, mais conhecido como Macedo, aparenta estar descontraído.
Praticamente qualquer um que passa parece conhecê-lo. E ele cumprimenta à todos, enquanto toma uma Coca-Cola. “Cerveja?, só depois do jogo”, diz, com um ar de responsabilidade que não se imagina, para jogadores amadores.
“Macedo, estou vendo aquele negócio que a gente conversou”, fala um homem que chega para cumprimentá-lo, usando uma camiseta do Grêmio. “Beleza, vê lá e me avisa”, responde Macedo.
Pouco depois do curto diálogo, quando o outro já havia se retirado, Macedo me explica: “Sabe o cara que veio aqui, com a camiseta do Grêmio? Ele é dono de um time, e me fez uma proposta. E eu dei meu preço. Três mil, e eu jogo para eles.”
A proposta em questão, é para jogar no time do “gremista” pela Copa Milton Leite, campeonato promovido pelo vereador que leva o nome da competição. São mais de 200 times, jogando em eliminatórias simples.
Isso mesmo, eliminatória simples. Ou seja, perdeu? Está fora!
Macedo cobrou, portanto, três mil reais para jogar um campeonato por um time que pode ser eliminado logo na estreia - ele só aceita receber adiantado. E ainda assim, os donos do time aceitam essa condição, e tentam viabilizar a “contratação”.
Não é à toa que Macedo vive disso. Ele é um autêntico profissional da várzea. Cobra para jogar os mais diversos campeonatos e jogos, pelos mais diversos times. O futebol é o seu sustento, mesmo sem ser profissional de fato. Com a prática de receber para jogar ele construiu a casa onde mora, em Paraisópolis, por exemplo.
“Depende da proposta, mas normalmente cobro de 200 a 250 reais por jogo”, explica. Na média, são três jogos por fim de semana, mas não é raro que ele jogue mais. “Já cheguei a jogar três jogos em um só dia”, conta.
Além do pagamento, também tem outra exigência: “Quando entro em um time, já exijo a chuteira”, fala, em um tom de brincadeira, embora seja verdade. “E tem que ser chuteira boa!”
Faltam poucos minutos para a partida, e o time da Portuguesa ainda não está completo. ‘Seu’ Roberto, dono do time, anda de um lado para o outro, com o celular na mão, tentando ligar para quem ainda não chegou. “Defesa e ataque estão fechados, mas ainda falta um meia e um volante”, exclama o desesperado ‘Seu’ Roberto.
Macedo explica que a Portuguesa é, na várzea, seu time de coração - ele é torcedor do Palmeiras - e que por isso, é o único time que ele não cobra para jogar. “É o time da vila, do tiozinho [‘Seu’ Roberto]. Para eles eu jogo de graça”. Talvez isso explique o ar descontraído dele antes da partida. A cobrança quando estão pagando é grande, o que aumenta também a pressão e a responsabilidade.
O jogo está para começar, e para alívio do ‘Seu’ Roberto, o time está completo. No ataque, a dupla é formada por Macedo e seu irmão, Edmilton Macedo, ou apenas “Baixinho”, que também recebe para jogar em times de várzea. Como o irmão, “Baixinho” joga de graça apenas para a Lusa de Paraisópolis, pelos mesmos motivos.
O adversário é o “Tudo Nosso”, time que vem de fora. O campeonato é a Copa Paraisópolis, organizada pela própria comunidade, recebendo diversos times da Zona Sul.
A partida tem um primeiro tempo duro, muito disputado no meio-campo, terminando em 2x1 para os visitantes. Isolado na frente, Macedo mal pega na bola.
Já na segunda etapa, a coisa muda de figura. Com a dupla de ataque Macedo e “Baixinho” fazendo a diferença, a Portuguesa vira o marcador, e abre 6x3. São três gols de Macedo, literalmente nas três chances que teve, e outros dois de seu irmão.
Deu para perceber o porquê da procura, e do pagamento, pelo futebol de Macedo. Artilheiros natos são artigo de luxo, mesmo no futebol profissional. E esse parece ser o caso dele, pelo menos no jogo que acompanhei. Foram três boas bolas recebidas, e três “caixas”, sem a menor chance para o goleiro.
Macedo é o artilheiro da Copa Kaiser, principal campeonato de futebol de várzea de São Paulo, com 16 gols marcados. O Cantareira, time pelo qual ele jogou, foi eliminado, nas quartas-de-final, mas mesmo saindo antes da “concorrência”, ele abriu vantagem suficiente para garantir a artilharia.
Sentados na varanda da casa do Macedo, com uma grande vista de Paraisópolis, e dos prédios de altíssimo padrão que ficam ao lado da comunidade, conversamos sobre o que é ser um profissional da várzea.
Recebendo para jogar a pelo menos 12 anos, nunca faltou time para o Macedo. “Para o ano que vem já tenho várias propostas”.
Sempre ter propostas faz com que Macedo tenha certa segurança, e também garante a ele melhores pagamentos, já que dá para escolher, e usar a concorrência para fazer contrapropostas maiores. E a partir de 2013, sendo artilheiro da Copa Kaiser, chamada por ele mesmo de “o brasileirão da várzea”, a tendência é que essa situação melhore, e a procura pelo futebol de Macedo aumente.
“De um certo tempo para cá, me dediquei para ser o artilheiro da Kaiser. Esse era meu objetivo”, explica, destacando a importância que o torneio tem para a várzea.
Além de campeonatos completos, ele também é procurado para jogar jogos específicos, como uma final importante, ou um confronto de grande rivalidade. “Esse sábado mesmo [dia 15 de setembro] vou jogar uma semifinal no Grajaú, por um time que eu nem sei o nome”.
Sobre a dinâmica de negociações, Macedo explica como funciona. E é tudo bem simples: fazem uma proposta, e se tiver disponibilidade, e gostar do valor oferecido, ele aceita.
O pagamento deve ser feito adiantado. Metade na hora em que o acordo é fechado, e a outra metade antes do apito inicial. “Se não receber, não entro em campo”. Essa foi a maneira que Macedo desenvolveu para evitar calotes, já que é um acordo apenas verbal.
Imagina só, se Macedo entra em campo, se doa, faz a diferença, e depois não recebe? Ou então, sendo o futebol um ambiente que envolve grande paixão, ele por acaso não jogar bem, e então o “dirigente” do time resolver não pagar mais? “Faço de tudo para não correr risco”, explica Macedo.
Como todo profissional que se preze, Macedo se prepara durante a semana, para aguentar a mini maratona que enfrenta, todo final de semana. Além da academia, com foco na parte aeróbica, já que ele afirma que muita musculação atrapalha o desempenho em campo, a alimentação é bem regrada, para nutricionista nenhum botar defeito. E nada de exagerar na bebida. Se tiver jogo sábado ou domingo de manhã, nada de balada! Tem que dormir cedo!
“A pressão é grande. A torcida é como se fosse de time grande. Se jogar mal, os caras vão te xingar”, conta. “Se você está ganhando, tem que estar bem, para jogar bem”.
Entro num tema que parece incomodar Macedo. E o futebol profissional?
Hesitando um pouco, como quem prefere não se aprofundar muito no assunto, Macedo explica que, aos 18 anos, chegou a treinar pelo tradicional Juventus, da Mooca. Mas aí, ocorreu o que ele chama, na própria versão, de “pilantragem”.
“Passei nas peneiras e comecei a treinar. Estava tudo certo para assinar o contrato. Mas aí, trocou de técnico”.
Macedo, que estava no primeiro time, foi passado para a reserva do time do B. “Eu não tinha oportunidade de jogar, e foi indo assim até me dispensarem”.
Quando pergunto sobre o que ele acha que causou isso, a resposta recai sobre um problema que todos acompanhantes do futebol moderno sabem que existe. “Eu não tinha um empresário por trás”, explica. “Eram cinco jogadores no elenco sem empresário, e todos foram dispensados por esse técnico. Eu fui o último”.
Depois do Juventus, ele conta que quase foi parar no Figueirense, de Florianópolis, mas, por questões burocráticas de documentação, sobre as quais ele não entrou em detalhes, o negócio não saiu, e um jogador do Botafogo de Ribeirão Preto foi contratrado para o lugar.
A desilusão, principalmente com o que ocorreu no Juventus, fez Macedo pendurar as chuteiras. Mesmo uma proposta de um homem que dizia ter influência no gigante Corinthians, fez ele mudar de ideia. É bem verdade que, pelo depoimento de Macedo, essa história de ter influência no Corinthians não pareceu nada confiável.
Ele retornou para a cidade natal, Morro Pará, na Bahia, e ficou um ano sem jogar futebol - Macedo veio para São Paulo, morar com os irmãos que aqui já estavam, aos 16 anos.
“Quando ia ter um jogo, os caras inventavam que era churrasco, me chamavam e levavam uma chuteira para eu jogar. Mas eu recusava”, conta, sobre o período de decepção com o futebol.
Depois de um ano apareceu a primeira proposta de receber para jogar. Um time da cidade vizinha, Barra de São Francisco, o convidou para jogar um campeonato. Macedo resolveu aceitar. Foram campeões.
De volta à São Paulo, ele seguiu carreira como profissional na várzea.
Há cerca de cinco anos, um suposto empresário apareceu, com uma proposta de levá-lo para um time, que ele não se lembra do nome, na segunda divisão do Campeonato Mineiro. A falta de garantias fez Macedo rejeitar a ideia.
“O cara apareceu e falou: Amanhã você viaja. Sem contrato ou nenhuma garantia. Aí você chega lá, e os caras te jogam em qualquer lugar, sem dinheiro nem para voltar”, diz, explicando os motivos. “Eles iludem a pessoa, e aí quando chega lá, você passa necessidade”.
Como papo de futebol profissional ficou meio pesado, por ser um assunto que, pelas mágoas, Macedo parece não gostar muito de tocar, resolvi perguntar se ele acha que teria condições de ser um profissional de fato, de alto nível. Mudando completamente de postura, já mais descontraído, e com o ego mais inflado, ele hesita um pouco, mas acaba falando que sim. “Tem que ser realista. Teria que treinar direito. Uns seis meses treinando e acho que daria sim”.
“Hoje, estão formando muitas máquinas, e não mais craques. Por isso acho que daria, mesmo na Série A”.
Como alguém vive de jogar futebol, mas sem nenhum contrato ou garantia formal, lida com as lesões, que cedo ou tarde, acabam por aparecer?
Macedo conta que, definindo como um pouco de sorte, foram poucas contusões nesses 12 anos de “carreira”. Foram apenas três mais graves - duas no tornozelo e uma no tendão de aquiles - e apenas uma delas o impossibilitou de jogar por um longo tempo. Há cerca de cinco anos, Macedo foi obrigado a parar por três meses, por uma das lesões no tornozelo. “Chega num ponto que se você não parar, não consegue mais jogar.”
“Felizmente, os caras [donos de alguns times em que ele jogava] deram assistência. Viram que me machuquei no jogo. Seguraram as pontas até eu melhorar”, conta, mostrando como é instável a vida de um profissional da várzea como ele. Se não fosse pela ajuda, como teriam sido os três meses sem renda?
Até mesmo por isso, essa foi a única ocasião em que Macedo parou, por uma contusão. E só parou, por ser impossível continuar.
No começo desse ano, por exemplo, com a lesão no tendão, ele conseguiu se recuperar, mesmo sem parar totalmente. “Estava jogando a Kaiser”, justifica.
E aí, mais um tema que Macedo parece não confortável em falar: a instabilidade da “profissão”.
O futebol não é sua única fonte de renda, mas é, de longe, a principal. Ele também faz bicos como seguranças, mas, além de os valores não chegarem nem perto dos ganhos com o futebol, são bicos, e da mesma forma, não estáveis.
E se algo acontecer, como uma lesão mais grave, ou uma queda abrupta de rendimento, que diminuísse procura pelo seu futebol? Ele sai pela tangente. “Nunca faltou time, e se faltar, tem que se virar, ser persistente”.
Macedo parece não gostar de pensar muito nisso. Ele de fato acredita que com o futebol amador se sustentará, sem um “plano B”, uma alternativa.
E, embora para nós, que estamos sempre atrás da tal estabilidade, seja estranho lidar com isso, ele tem se dado bem com essa história de profissional da várzea, sem contrato ou garantia legal. Já são 12 anos dando certo.
Mesmo que ele não se machuque, e siga em grande fase, uma coisa é certa. A aposentadoria chegará, e no caso de jogadores, profissionais ou amadores, mais cedo do que para grande parte da população.
Por depender do desempenho para receber propostas, já que ninguém pagará se não jogar bem, Macedo sabe que não poderá continuar para sempre nessa condição, embora relute bastante para admitir.
Ele está com 31 anos, o que para a maioria dos profissionais, representa o início do fim da carreira. “Até os 35, acho que seguro bem.”
E depois? Macedo não sabe responder.
“Não quero pensar nisso. Você joga bola a vida toda, quando chega esse momento é muito triste. A gente sabe que vai acontecer, mas quem sabe se amanhã não surge outra oportunidade”.
Ele conta que já chegou a pensar em parar. “A esposa [agora ex] reclamava muito. Não almoçava nem jantava em casa. Saia cedo, e só voltava lá pelas nove.” Além disso, de acordo com ele, a falta de folgas em finais de semana incomodava bastante.
Porém, o amor pelo futebol o segurou na atividade. “O futebol é parte de mim. Gosto de futebol, e não só de jogar, mas também assistir. Acompanho tudo. É minha essência”.
“E imagina só, fazer o que mais gosta, e ainda ganhar por isso”. Talvez isso explique o porquê de Macedo não cogitar muito uma vida fora do futebol, embora ele saiba que, mais cedo ou mais tarde, será inevitável.
“Na hora que chegar, aí tem que partir para outra”, conclui, mas na verdade, sem nada concluir.
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