— Alô? Alô? — pergunta Suely ao telefone sem fio que segura com a mão direita. O quarto em que se encontra é iluminado em um canto por duas luzes colocadas sob uma mesa baixa de madeira. A coloração é diferente, nada habitual. Uma das lâmpadas emite radiação infravermelha; a outra, ultravioleta. Os olhos doem quando se olha diretamente para osspots que as sustentam.
— Vou fazer a evocação e sentar perto do meu rádio valvulado para ajustar a sintonia — explica, voltando-se para um antigo aparelho radiofônico ao lado. Ainda segurando o telefone próximo à boca, a mulher de 51 anos gira lentamente o botão do rádio. Ruídos começam a reverberar pelo ambiente. Vozes surgem e, antes mesmo de completarem uma palavra inteira, dão lugar a outros ruídos e chiados. São barulhos típicos da caçada a uma boa estação, dessas que se faz em um carro antigo que ainda não possui um rádio digital. De repente, ela para. Parece ter encontrado o que buscava.
— Bom, hoje são aproximadamente 20h54min. Estamos em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Eu gostaria de solicitar um contato, pedindo à Estação Rádio Tempo, à Estação Landell, à Ponte Cabral, a Paulo Cabral, a Antônio, a Guilherme, a Francisco ou a qualquer outro que possa entrar em contato conosco. Vocês estão na linha? Estão na escuta?
No pequeno cômodo parcialmente iluminado, ela se coloca a frente do rádio e espera por uma resposta às suas perguntas. Mas, caso aconteça, o contato não será uma convencional conversa ao telefone. Com diversos tipos de ondas mecânicas e eletromagnéticas no ambiente, começa uma sessão de Transcomunicação Instrumental (TCI), onde a mulher busca estabelecer contato com pessoas mortas.
A gaúcha Suely Raimundo não segue nenhuma doutrina religiosa, mas se denomina uma curiosa. Ou melhor, “uma espiritualista”. Frequentou algumas vezes centros espíritas, mas sempre teve dificuldades em aceitar o que os médiuns lhe diziam. Afinal, “aquilo não correspondia a realidade”. Ao mesmo tempo, demonstrava um grande interesse pela paranormalidade, embora nunca tivesse se envolvido com alguma manifestação do fenômeno. Até aquele ano...
No dia 6 de janeiro de 1999, seu filho Leonardo de apenas um ano e onze meses morreu sem causa aparente, até hoje não esclarecida pelos médicos. A irreparável perda inspirou uma busca incisiva pelo entendimento de questões sobre a vida e a morte. Levada a um centro espírita por uma amiga, conheceu a tal da Transcomunicação em uma das palestras que assistira. Hoje, treze anos depois do primeiro contato, Suely se dedica inteiramente ao estudo do método que usa aparelhos eletrônicos de comunicação, como rádio e televisão, para registrar imagens e sons dos espíritos. A carreira de nutricionista na área de produção sustentável de alimentos tem menos importância do que a busca pelo desconhecido.
Nos quatro primeiros meses de sua empreitada na TCI, auxiliada por Paulo Cabral, um dos grandes iniciadores da prática no País, hoje já falecido, Suely teve dificuldades em distinguir as vozes paranormais em meio aos ruídos. Motivada por uma grande curiosidade, contudo, não desistiu. Comprou livros sobre o tema que aguçaram ainda mais sua vontade de constatar, por ela mesma, a veracidade ou não das manifestações.
Após anos de experiências com o Fenômeno da Voz Eletrônica (FVE), uma das manifestações da Transcomunicação, ela coleciona um conjunto de dezenas de áudios onde pergunta e obtém respostas coerentes de vozes nem sempre nítidas, mas audíveis. Em uma das gravações, uma voz masculina afirma: “Se o espírito vive, morre aqui. Provei eu, Kleber”. Em outro registro, um homem responde após a evocação: “Somos doutro mundo. Doutro mundo. Você liga e a gente ouve”.
Hoje, Suely não tem mais dúvidas: de algum modo, há espíritos do outro lado da linha. Para o próximo ano, com auxílio de uma equipe, ela estuda a possibilidade de fundar um instituto de pesquisas com o intuito de gerar artigos sobre o assunto.
O termo Transcomunicação, junção das palavras comunicação e transcendente, foi criado na década de 1980, pelo alemão Ernst Senkowski, doutor em física pela Universidade de Mainz, para definir a comunicação com entidades não-físicas através de gravadores, rádios, telefones, computadores, secretárias eletrônicas, etc. Para os espiritualistas, trata-se de uma forma de interagir com os mortos, cuja consciência permanece.
A possibilidade de estabelecer contato com o mundo espiritual pela tecnologia já havia sido considerada por outros cientistas no início do século XX. Thomas Edison, em 1920, relatou ao repórter B. C. Forbes, da American Magazine, que estava trabalhando em uma máquina que poderia fazer contato com os mortos. Após a repercussão mundial da declaração, o gênio de cabelos brancos e grossas sobrancelhas negras afirmou que a história era falsa. De acordo com o Edison National Historic Site, responsável por mais de cinco milhões de páginas de documentos sobre o inventor, não existe qualquer menção a um equipamento com essas propriedades. Em matéria publicada na Scientific American, no mesmo ano, Edison afirmou que se nossa personalidade sobrevive, um instrumento sensível seria capaz de gravar alguma coisa.
No Brasil colônia, o português Augusto de Oliveira Cambraia patenteou, em 1909, o Telégrafo Vocativo Cambraia. Na descrição registrada no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, Cambraia diz que o aparelho “destina-se à transmissão de correspondência universal, sendo feito com espíritos iluminados. Serve para obter da falange de espíritos a correspondência para o engrandecimento moral e espiritual do Planeta Terra.” Não existem dados sobre quem era esse excêntrico homem, nem sobre a eficácia de sua invenção.
A primeira obra mundial sobre o assunto, ainda sem a moderna denominação com o acréscimo do termo instrumental, foi Vozes do além pelo telephone - Novo e admirável systema de communicação - Os espíritos fallando pelo telephone, do brasileiro Oscar D’Angonnel, de 1925. No livro, o autor, um pesquisador espírita, reuniu relatos de casos onde a comunicação com um grupo de mortos se dava através do novo aparelho, ainda grafado com ph, na cidade do Rio de Janeiro.
Em 1936, o fotógrafo norte-americano Attila von Szalay iniciou experimentos com o FVE. Os primeiros resultados foram insipientes e somente na década de 1940, com o uso de um gravador de fio, ele obteve sucesso. Em 1959, juntamente com o escritor Raymond Bayless, o fotógrafo documentou seus resultados em um artigo publicado pelo Journal of the American Society for Psychical Research, periódico da mais velha organização norte-americana de pesquisa psíquica. Resultado: um verdadeiro fracasso. Nem o órgão, nem os pesquisadores que assinaram o texto receberam qualquer comentário dos leitores.
No mesmo ano, o crítico de arte sueco Friedrich Juergenson deu início à fase moderna da TCI. Em uma tarde de primavera em sua casa de campo em Mölnbo, pequena cidade no Condado de Stocolmo com pouco mais de mil habitantes, o homem resolveu gravar o canto dos pássaros, como era de seu costume. No sótão da cabana, colocou o microfone próximo à janela aberta. Quando uma ave ali pousou, Juergenson ligou o aparelho por cinco minutos. Ao escutar a gravação posteriormente, distinguiu uma voz masculina em norueguês entre o som longínquo das aves. Ele estranhou o fato, uma vez que tinha a absoluta certeza que estava em um bosque isolado. Teve certeza de que se tratava de uma interferência. Repetiu o procedimento diversas vezes. Em todas tentativas foi possível ouvir a voz masculina.
Certo dia, Juergenson resolveu indagar, durante uma gravação, quem eram aquelas vozes. Ao analisar o áudio, a resposta: “Somos os mortos”. A partir de então, ele passou a se dedicar ao fenômeno e aperfeiçoou o método de captação. Com os resultados escreveu, em 1967, a obra Sprechfunk Mit Verstorbenem, publicada em língua portuguesa no ano de 1972 com o título Telefone para o além. Um dos homens que decidiu procurar o sueco para entender melhor o Fenômeno da Voz Eletrônica foi Konstantin Raudive, que se tornou um dos maiores pesquisadores da área. Após sua morte, em 1974, deixou um acervo de 72 mil vozes registradas em fita magnética.
No Brasil, em 1963, Hernani Guimarães Andrade, engenheiro e pesquisador de fenômenos paranormais, fundou o Instituto Brasileiro de pesquisas Psicobiofísicas (IBPP) e destacou-se na pesquisa da Transcomunicação.
— Alguém na linha? — indaga Suely após alguns segundos de silêncio, enquanto volta a mexer no rádio.
— Aqui... Paulo Cabral? Você tá na linha Paulo? Poderia fazer contato comigo?
Em frente ao rádio valvulado, ela segura o telefone sem fio na mão. Na pequena mesa próxima ao chão estão um celular, um gravador, dois rádios menores e as duas luzes. As lâmpadas são posicionadas uma de frente para a outra e interceptam os sinais que saem dos rádios menores. Minutos antes de iniciar o experimento, Suely ligara do celular para o fixo e ativara o viva-voz. O gravador ao lado registra a ligação telefônica.
Esse é apenas um dentro os inúmeros métodos utilizados para registrar as vozes do além. Quanto mais interferências de ondas, melhor o resultado. Por isso, é difícil distinguir, no exato momento do experimento, se há respostas do outro lado. A grande maioria das gravações são sempre muito ruidosas e as vozes, abafadas, longínquas. A pesquisadora analisa os áudios posteriormente, com um software de edição, e só então consegue saber se a tentativa foi bem sucedida.
Para chegar ao método atual, no qual são usados os rádios e as luzes, ela contou com a orientação dos próprios espíritos. “Através de uma médium, houve a dica de usar o celular. Eles também me pediram para ligar o rádio, porque ele fornece ondas eletromagnéticas. Utilizo esse método porque eles pediram”, conta. As experiências que passaram a seguir as propostas dos mortos apresentam vozes muito mais claras e coerentes se comparadas às do início de seu envolvimento com a TCI, quando Suely utilizava um gravador de fita magnética.
A evolução da técnica também fez com que a pesquisadora passasse a contar com um grupo fixo de comunicantes – as entidades desconhecidas do outro lado. Paulo Cabral, amigo já falecido que a apresentou à Transcomunicação e outros três espíritos que se identificam como Antônio, Guilherme e Francisco a auxiliam na captação de vozes mais nítidas. Já as estações Rádio Tempo, Landell e Ponte Cabral são as estações de rádio do outro lado que costumam interceptá-la.
Pelo que parece, o conhecimento dos mortos está além do nosso. O que a ciência dos vivos sabe é que, durante uma ligação telefônica convencional, nossa voz (onda mecânica que viaja em meio físico) é transformada em um sinal eletromagnético capaz de se propagar em um meio não-físico. Esse sinal se difunde no vácuo e atinge a velocidade da luz, enquanto a onda mecânica, que depende do ar, tem uma velocidade média de 300 m/s.
Mas, o que não conseguimos explicar, é como entidades desconhecidas interferem em nossa tecnologia. As luzes usadas no experimento emitem, justamente, ondas eletromagnéticas, as mais rápidas. Já os rádios propagam as ondas mecânicas. Fábio Cristiano Rahmeier, engenheiro elétrico que auxilia Suely no conhecimento científico de suas sessões, ainda não tem certeza sobre a função de cada equipamento. Mas garante que “fatos inusitados acontecem” quando eles são utilizados em conjunto.
As luzes, ele diz, produzem frequências distintas (uma é infravermelha, a outra, ultravioleta) e sua sobreposição gera um agrupamento de espectros. Os diferentes tipos de rádio provocam a mesma reverberação. Ou seja, a presença de diversas ondas no ambiente parece favorecer o surgimento de um “portal de comunicação entre duas dimensões”, de acordo com as palavras do engenheiro. “Precisamos fazer combinações com as quatro forças fundamentais do universo: a gravitacional, a eletromagnética, a nuclear fraca e a nuclear forte. Mas ainda engatinhamos no conhecimento sobre o eletromagnetismo. E faltam outras três.”
Esta repórter acompanhou a tentativa de contato feita por Suely. Com ouvidos atentos aos mínimos ruídos, tomei um susto logo nos primeiros segundos, quando ouvi vozes muito claras. “Era assim tão rápido e audível?”, pensei. Não. Suely logo avisou que procurava por uma sintonia e que os sons eram oriundos de estações de rádios (pertencentes aos vivos). O que se seguiu foi uma grande confusão: muitos chiados e microfonias. Em certo momento, os sons me fizeram-me lembrar de certos chiados da música de abertura de Arquivo X – sensação que só aumentou minha expectativa.
Após pouco mais de dez minutos de um escuta cuidadosa a barulhos altos, agudos e indecifráveis, cansei. O experimento não correspondera às expectativas criadas durante a apuração desta reportagem, quando tomei contato com o caso mais significativo da TCI brasileira – capaz de arrepiar espinhas.
Em 2002, durante o XI Congresso Espírita da Bahia, uma sessão de Transcomunicação fora improvisada. Aos ouvidos atentos de 2.344 pessoas, Clóvis Nunes, condutor do experimento, evocou a presença de uma série de personalidades ligadas ao espiritismo e que já haviam falecido. Após três tentativas frustradas, um resultado surpreendente. Na fita magnética, uma voz clara, límpida e lamuriosa declama o seguinte poema:
Hoje vejo em luz suave
Sem sofrimento, sem dores
Assistindo a este conclave
Na presença dos mentores
Aos meus contemporâneos
Que no corpo ainda está
Não demorem muitos anos
Venham logo para cá
Minha Carminha querida
Dona dos afetos meus
Deste outro lado da vida
Os meus olhos fitam os teus
Daqui vos fala Astrogildo
Petitinga ao lado
Etiene, Deolindo e Amarildo
Com Leopoldo Machado
Era Astrogildo Eleutério da Silva, morto há seis anos e que naquele dia protagonizara um dos dez casos mais audíveis do FVE no mundo. Para minha insatisfação, a sessão a que estive presente não entrou para essa lista.
Advertida da possibilidade de que as vozes não fossem claras para um ouvido leigo, não pude deixar de sentir, simultaneamente, decepção e alívio ao fim da sessão. Decepção porque a promessa de escuta de uma voz de origem inexplicável, respondendo de modo coerente a suas perguntas, é excitante. Alívio porque, medrosa e sem distinguir qualquer voz humana, pude dormir tranquila naquela noite.
Para os céticos, ainda há dúvidas sobre quem ou o que está do outro lado da linha. Há poucos estudos científicos sobre a TCI que possam dar respostas. Os que existem são fechados e avançam lentamente, pois dependem de esforços pessoais, como é o caso de Clóvis Nunes, maior pesquisador do tema no Brasil. Mas, por geralmente estarem relacionadas a grupos ou indivíduos de doutrina espírita, essas pesquisas são questionadas. Os áudios captados, em sua maioria, são curtos, muito ruidosos e podem estar sujeitos a interferências, o que também dificulta as investigações.
“Não existe uma empresa que pesquise o assunto. Não dá pra viver de Transcomunicação. Todo mundo que faz pesquisa, faz porque gosta. Há PhDs, engenheiros e especialistas de todas as áreas envolvidos nisso e o assunto não traz rentabilidade para nenhum deles”, diz Sandro Fontana, piloto de aviões e membro da Associação Internacional de Parapsicologia. Atualmente, ele trabalha na criação de uma metodologia científica para o estudo do FVE, baseado em uma série de testes de indução de respostas – técnica nunca antes utilizada. Na primeira etapa, serão feitas perguntas que levem as entidades desconhecidas a responder “sim” ou “não”. Posteriormente, serão realizadas questões mais complexas como: “O que eu estou segurando agora com minha mão direita?”.
De acordo com o especialista, uma das maiores dificuldades é distinguir vozes reais das manifestações de pareidolia, fenômeno psicológico que confere a estímulos vagos e aleatórios, como ruídos e formas indefinidas, um significado distinto e preciso. É o que acontece quando juramos ouvir palavras ou até mesmo frases inteiras em músicas tocadas ao contrário, quando enxergamos figuras em nuvens ou santos em janelas, torradas e pedaços de madeira.
O Fenômeno da Voz Eletrônica é detectado e ocorre de fato, segundo artigo publicado em setembro de 2012 na revista NeuroQuantology, pela pesquisadora portuguesa Anabela Cardoso. A grande questão é entender o que o gera. “Vou fazer os testes e se não conseguir fazer com que as vozes respondam coerentemente, pode ser que conclua que tudo foi um produto da mente (pareidolia) ou que dificilmente possam ser espíritos se comunicando.”
Após vinte minutos de evocação e ajustes de sintonia no rádio valvulado, Suely se despede de seus comunicantes:
— Agradeço a todos que, no dia de hoje, estiveram envolvidos de alguma forma com essa tentativa de contato. Desligo.
Ela encerra a ligação. Desliga o gravador e os rádios. Apaga as luzes sob a mesa e acende a lâmpada fluorescente que costuma clarear o quarto quando ela não está buscando comunicação com os mortos. Durante a realização do experimento, Suely não conseguiu escutar respostas em seu telefone. Uma análise posterior da gravação, muito barulhenta, revela uma voz masculina baixa, praticamente inaudível para ouvidos leigos, que diz “Paulo”.
“Paulo”, uma única palavra e um paradigma para a ciência.
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