Cruzada contra as urnas eletrônicas brasileiras
Por Macelo Pellegrini - Edição Acredito - dezembro de 2012

Com mais de 53 mil e 900 resultados para o seu nome, o engenheiro Amilcar Brunazo Filho não é um homem desconhecido do Google. Um guerreiro, de aspecto físico medieval, Brunazo encampa a luta pelo retorno do voto em papel e é venerado em fóruns de teorias da conspiração, manipulação de eleições e em, alguns poucos, espaços cibernéticos preocupados com o processo transparente e seguro das eleições.

Com uma retórica simples, o engenheiro e especialista em segurança de dados deixa até os mais céticos com o pé atrás. “Como você sabe que o seu voto realmente foi computado ou se realmente se destinou ao seu candidato”, indaga. “Quem te garante que o software não pode ser invadido por alguém, até mesmo de dentro do Tribunal Superior Eleitoral?”

Foi essa simples indagação que me motivou a marcar um encontro com o engenheiro incrédulo, aparentemente pró-teoria da conspiração, em uma sexta-feira tipicamente paulistana. Uma garoa leve e intermitente pintava de cinza o horizonte da cidade e jogava fermento sobre o trânsito da maior cidade da América Latina. O trânsito atrasou em vinte minutos, além do horário combinado, o início da reportagem. Após apertos de mãos esbaforidos, a entrevista teve início, em um restaurante na esquina da Avenida Paulista com a Rua Augusta.

Diferentemente do esperado, o homem de 62 anos – com aspecto sóbrio e de barba grisalha e robusta, porém, cuidadosamente aparada - destoava do perfil de cientista maluco idealizado inicialmente. Brunazzo vinha de Santos e estava particularmente empolgado devido a um fato recente, extremamente importante sob o seu ponto de vista: a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) negara-se a homologar o software utilizado nas urnas eletrônicas brasileiras.

A decisão da OAB ocorria um pouco mais de um mês antes do primeiro turno das eleições municipais e era interpretada por Brunazo como uma vitória, obviamente, mas também como o cumprimento de uma promessa. Dois anos antes, em 2010, o presidente da Ordem, Ophir Cavalcanti prometeu: “Se o parecer [Relatório do CMind] disser que a Ordem não deve legitimar, não vamos legitimar [o atual modelo de votação eletrônica]”, afirmou, ao mesmo tempo em que admitia: “hoje, a OAB faz de conta [que fiscaliza as eleições]”.

A promessa foi cumprida

A comissão de informática da OAB enviou o Sr. Rodrigo Anjos, especialista em Tecnologia da Informação, como seu representante devidamente credenciado ao TSE para a validação do software. Após constatar que o conjunto do software eleitoral era composto por dezenas de milhares de arquivos com mais de 16 milhões de linhas de códigos-fonte, o representante da Ordem decidiu que não havia condições práticas de validar o software do TSE e optou por assinar nenhum dos programas.Seguindo a determinação de sua comissão de informática, em 14 de setembro, a OAB boicotou o evento e não enviou nenhum representante para assinar e legitimar o software desenvolvido pelo TSE. “Isso foi um chute no saco deles”, diz com humor o Brunazo.

Entre um gole de capuccino e outro, o especialista em segurança de dados reforçava os motivos da decisão da OAB. O maior argumento era o mesmo proferido, segundo ele, há anos pelo Comitê Multidisciplinar Independente (CMind), o qual Amilcar é um dos fundadores. De acordo com ambas as entidades, o software não pode ser auditado por um órgão externo, ou seja, as votações não podem ser conferidas, o que coloca em risco a legitimidade das eleições.

Criado em 2009, o Comitê Multidisciplinar Independente surge com uma alternativa aos estudos elaborados pelo TSE referentes à confiabilidade do software das urnas brasileiras. “A idéia do CMind é produzir relatórios críticos e independentes do TSE para avaliar o sistema eleitoral brasileiro e propor alternativas melhores para os cidadãos brasileiros exercerem seu direito a voto”, explica o engenheiro da baixada santista. 

A história começa poucos anos após a primeira eleição eletrônica brasileira, em 1996, e tem seu ponto alto em 2002. Neste ano, o Senado Federal e a Câmara dos Deputados aprovaram a Lei 10.408/2002, que previa a adoção do Princípio da Independência do Software em Sistemas Eleitorais a partir de 2004. A norma determinava que a auditoria do resultado eleitoral pudesse ser feita de maneira independente do software instalado nas urnas. “O sigilo da informação sobre o autor do voto e o voto é dependente do software e o que a lei propõe é a independência”, explica.

O TSE reage

A instância máxima da Justiça Eleitoral recorre ao Ministério Público Federal (MPF) reclamando a inconstitucionalidade da lei. Com isso, o processo sobe para a apreciação do Supremo Tribunal Federal (STF), o qual não profere um veredicto nem favorável, nem contrário, apenas suspende a lei por prazo indeterminado. “O problema, neste caso, é que no Brasil o juiz do STF é o mesmo do TSE”, reclama o engenheiro com os dedos se embrenhando na barba.

“Desse jeito, se rompe com a relação triangular de neutralidade do Direito. O juiz que julga é o mesmo que é parte e tem interesse no processo”, completa. Para o engenheiro, a suspensão do processo foi a melhor forma de não assumir a falha do sistema eleitoral e, ao mesmo tempo, manter as coisas como estão.

Para finalizar o enredo, em 2003 é aprovada a Lei 10.740/2003, que restabelecia a situação anterior, em que a auditoria do resultado eleitoral era substituída por um método dependente da confiabilidade do software. No intuito de fornecer mais confiabilidade ao software eleitoral, a lei também prevê que partidos políticos, o Ministério Público e à OAB validem e assinem digitalmente os programas desenvolvidos pelo TSE.

Após isso, diversos relatórios e comissões foram criados para avaliar a legitimidade do sistema. Entre eles estão os relatórios da Subcomissão Especial de Segurança do Voto Eletrônico, braço da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), da Câmara dos Deputados.  Esta subcomissão produziu dois relatórios, finalizados em 2007 e 2009, que tiveram como relatores, respectivamente, os deputados federais Vital do Rego (PMDB-PB) e Gerson Peres (PP-PA). Ambos os documentos, embora discordassem em diversos temas, eram uníssonos na defesa da auditoria do sistema eleitoral. "Criar Auditoria Independente do Software das urnas eletrônicas, por meio da recontagem automática dos Votos Materializado Conferíveis pelo Eleitor", defendiam os relatórios.

Em resposta a isso, o Comitê Multidisciplinar do TSE é criado, em 2009, com o objetivo, entre outros, "de analisar as sugestões apresentadas no Relatório da Subcomissão Especial do Voto Eletrônico da CCJC da Câmara dos Deputados", conforme está escrito no artigo 1º do Comitê. Porém, “até agora, pouco foi feito”, diz Brunazo.

“Hoje em dia, pouca gente sabe que as urnas eletrônicas brasileiras que aparecem na televisão como um sistema moderno e seguro foi, na verdade, rejeitado em mais de 50 países que vieram aqui para avaliá-las”, conta.  Em um relatório publicado em 2010, o CMind advertia para a existência de uma exagerada concentração de poderes no processo eleitoral brasileiro, que comprometia o Princípio de Publicidade e a soberania do eleitor em poder conhecer e avaliar o destino do seu voto. Desde 1996, "o TSE e seu sistema de urnas não permitem aos representantes da sociedade conferir e auditar o resultado da apuração eletrônica dos votos", lamenta o engenheiro.

Atualmente, existem três gerações de urnas eletrônicas. O primeiro modelo e, em uso no Brasil, é conhecido como Direct Recording Eletronic Voting Machine. Utilizado pela primeira vez em na Índia, em 1990, e na Holanda, em 1991, o sistema só persiste no Brasil – tendo sido proibido no país europeu, em 2008, devido à falta de confiabilidade no sistema.

O grande problema dessa primeira geração é sua dependência em relação ao software. Assim como acontece no Brasil, cada urna de primeira geração, após o término das votações, soma seus votos e produz um boletim, que é encaminhado para central do TSE, em Brasília. Lá, os votos de cada urna são computados e os resultados das eleições, consolidados.

“Com um esse tipo de sistema como é possível dizer que o meu voto foi realmente computado para o candidato A e não para o B. Ou como garantir que o sistema não foi invadido e os votos foram alterados”, indaga Brunazo. “O TSE garante que o sistema é seguro, mas é seguro para quem e contra quem?”.

A pergunta é respondida com certa ironia pelo próprio engenheiro. De acordo com a Constituição Federal, dois agentes possuem direitos e devem ser protegidos no processo eleitoral: um é o eleitor e o outro é o candidato. “É a eles que se deve dar segurança, porém, quem está protegido, hoje, é apenas o TSE”, diz sem esconder um sorriso de indignação no canto superior da boca.

“A Justiça Eleitoral brasileira, além de não garantir a transparência e a publicidade do processo, não assegura que o sistema não seja atacado por dentro”. Ou seja, pelo próprio TSE. Apesar de polêmica, a argumentação de Brunazo arvora-se em uma decisão da Suprema Corte alemã, de março de 2009, na qual proibiu-se o uso destes equipamentos. Declaradas inconstitucionais, a decisão da mais alta corte da Alemanha foi justificada pelo fato do sistema não atender ao Princípio da Publicidade no processo eleitoral. Ou seja, por não permitir ao eleitor conferir o destino do seu voto sem precisar de conhecimento técnicos em informática e sistema de informação.

Foi justamente pela dificuldade em se determinar a confiabilidade do software das milhares de urnas espalhadas pelo País, no dia da eleição, que surgiram os equipamentos eleitorais de segunda geração. Adotado em países como a Bélgica e a Venezuela, as urnas de segunda geração atendem ao Princípio da Independência do Software em Sistemas Eleitorais e fornecem um registro do voto em uma plataforma digital e outra em papel. “Com isso, é possível auditar o processo eleitoral de forma que não dependa do software”, explica. Nesse modelo, ou o eleitor vota em papel e depois escaneia o voto, contabilizando-o na plataforma digital, ou vota-se na urna eletrônica que, posteriormente, imprime o voto.

A solução mais defendida por um dos fundadores do Comitê Multidisciplinar Independente (CMind), contudo, foi desenvolvida apenas em 2009, nos Estados Unidos. A menina dos olhos do engenheiro de aspecto medieval são as urnas eletrônicas de terceira geração, um equipamento que une o voto impresso ao eletrônico e é definido por Brunazo como o Ovo de Colombo das urnas eletrônicas.

O processo é simples. O eleitor recebe uma cédula de votação impressa, com um chip embutido.  Nela, registra-se o voto tanto no chip quanto no papel impresso. “Assim, o eleitor pode conferir se o voto está compatível no meio impresso e virtual”. Após isso, a cédula é depositada em uma urna de papel e os votos são conferidos no final da votação. Com isso, a apuração continua rápida, torna-se independente do software e pode ser completamente auditada. Já em uso na Argentina, hoje, 100% dos votos do país portenho são conferidos.

 


“Só sobrou o Brasil nessa”, esbraveja o engenheiro, batendo na mesa do restaurante situado na esquina da Avenida Paulista. Até o ano passado, só o Brasil e a Índia ainda utilizavam urnas de 1ª geração, no entanto, os indianos já ensaiam os testes das máquinas eleitorais de segunda geração nos próximos pleitos. “O brasileiro ainda está adormecido diante dessa questão vital para a democracia e não percebe que a verificação feita pelo TSE não tem validade nenhuma”, constata.

Segundo o fundador do CMind, a verificação deve ser feita por equipamento de confiança do verificador, porém o TSE não permite isso.“O fiscalizador dita a regra de fiscalização e se eu reclamar o administrador vira juiz”, sentencia.

Quando indagado sobre as razões para o TSE insistir em um modelo de urnas de primeira geração, o Brunazo responde de forma seca: “Você já viu alguém entregar o poder de graça?”

No meio desta cruzada por um processo eleitoral mais transparente e seguro, o especialista em dados que escolheu Santos para morar coleciona pequenas vitórias. Além de ter obtido, recentemente, a OAB como um aliado, o engenheiro também orgulha-se do Projeto de Lei de Iniciativa Popular  (PLIP) em busca de eleições limpas e com voto eletrônico e cópia impressa. Hoje, o PLIP está com cerca 1400 assinaturas, tendo a de Amilcar Brunazo Filho no topo da lista.

Para que o projeto seja apresentado para o Congresso, o grupo precisa coletar pouco mais de 1 milhão e 300 mil assinaturas, distribuídas por pelo menos 5 unidades federativas do País e tendo, no mínimo, 0,3% dos eleitores em cada uma dessas unidades.

Se você,leitor, assim como este repórter ficou indagado com as argumentações (conspiratórias ou não) de Amilcar Brunazo Filho saiba mais sobre o PLIP e esta discussão democrática nos seguintes endereços eletrônicos: http://www.vototransparente.com.br



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