O crime é óbvio. A verdade nem sempre. Mentira e verdade em um julgamento se entrelaçam em um quebra cabeça esquisito.
O Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo e um sistema prisional superlotado. Pelos dados nacionais do Conselho Nacional de Justiça , no Estado de São Paulo há 102 mil vagas para 164.333 presos. No Brasil cerca de meio milhão de pessoas estão presas. Atualmente, aproximadamente 1/3 de toda a população carcerária no país é constituída de presos provisórios, aguardando julgamento. Tais presos são considerados inocentes pois não foram condenados e podem ser absolvidos no julgamento. Para que a prisão de um inocente que é acusado de um crime seja decretada e dure até ele ser julgado, é preciso, em primeiro lugar, que existam indícios de que o réu praticou o crime do qual se vê acusado. É nesta faixa onde se concentram os maiores erros da justiça.
Para ocorrer um erro judicial , é necessário que o tripé todo se engane. O Ministério Público falha, o juiz falha e até a própria defesa que não consegue provar imediatamente o equívoco, falha . É impossível determinar com precisão o número de inocentes presos. Para o ex ministro do Supremo Tribunal Federal , Cezar Peluso, os erros são excepcionais, mais ou menos raros e decorrem sempre de um erro coletivo.
Em busca de alguém que acreditasse em um destes erros coletivos, fui até o Centro de Detenção Provisória (CDP) da Chácara Belém. No dia mais movimentado do CDP, o dia de visitas, encontro na calçada esposas, mães, pais, filhos e irmãos esperando a hora de passar o sábado com os detentos. No semblante de todos que visitam algo em comum : um misto de alegria e dor.
Na entrada do Centro de Detenção , as dezenas de sacolas espalhadas pelo chão têm um nome - é o jumbo .Tudo o que levam seja alimento, produto de higiene, ou qualquer outro mimo é repartido entre os presos. Um guarda volume fica do lado de fora do presídio para tudo o que não pode entrar.
Assim que chego ao Centro de Detenção, por volta das 7h00 da manhã, uma senhora de meia idade me pergunta se quero comprar cigarros, ou guardar a minha bolsa com ela. Explico que sou repórter e que o meu intuito é encontrar entre aquelas centenas de familiares que aguardam nas filas, algum personagem que acreditasse na inocência de quem está lá dentro. Ela me olha, então, com um ar de desconfiança, ou talvez de deboche, e responde que seria difícil achar algum outro nazareno por ali.
Nazareno costuma ser utilizado para se referir ao mais antigo habitante da Vila de Nazaré, na Galiléia, a quem a Bíblia chama de Jesus. Retornemos a Jesus Cristo de Nazaré e a Pôncio, o Pilatos. Pilatos foi prefeito da província romana da Judéia entre os anos 26 e 36 d. C. Foi o juiz que de acordo com a Bíblia , condenou Jesus a morte na cruz , apesar de nele não ter encontrado nenhuma culpa.
Histórias singulares repetem-se com justificativas particulares na porta do CDP. Fatalidades, injustiças, pequenas culpas, armações. Conversei com dezenas de pessoas . Ouvi de tudo durante a manhã de um sábado chuvoso.
“Tá pagando , né, pelo que fez. A gente tem dó . Mas se tão aqui é porque tão pagando o que fizeram”. Gedalva R da Silva , 77 anos. Dona Gedalva diz que o neto será transferido nos próximos dias para um presídio, pois havia sido julgado e condenado a dez anos de prisão. “ Acho que não vou poder te ajudar, pois não acredito que ele é inocente. Embora ele fale que não fez nada, ele é reincidente, sabe? Só acho que dez anos é muito tempo para ele. Ele não matou ninguém”. Gedalva me conta que sua filha morreu há um mês e meio de AIDS . O que mais lamenta nesta triste história é que o neto não se despediu da mãe. Acompanho a idosa até o ponto de ônibus. Ela sobe as escadas da VAN e me deseja boa sorte “Não pude te ajudar, mas quem sabe você encontra alguém que acredite na inocência do preso.”
Vanessa * está grávida de quatro meses e aguarda junto com a filha de cinco anos o horário da abertura do portão. A menina me olha,um tanto sonolenta , enquanto converso com sua mãe. Vanessa me conta que todos os sábados visita seu marido . Me conta também que todas as sextas faz as unhas para ficar bonita para ele, e prepara um bolo de fubá que é o preferido dele. Pergunto então se ela acredita na inocência do marido e Vanessa me responde “ De inocente ele não tem nada.” “ O meu marido é bem culpado” e sorri para a filha. Questiono se ela contou para a filha do que o pai é acusado e a própria menina me conta. “ Papai roubou um carro e apontou uma arma para o moço, mas não vai mais fazer isso.”
Após várias tentativas frustradas de achar alguém que acredite na inocência do detento, encontro José de Araújo, um viúvo, de 53 anos. Seu filho está preso desde o dia das mães. O julgamento ainda não aconteceu. José me conta a história do seu filho, que de uma maneira ou de outra é também a sua história . Gilmar, 25 anos, cobrador de ônibus. Trabalha duro desde os quatorze anos. Há seis meses não paga as prestações do carro que financiou. O motivo? Está na prisão desde então.
O crime : no carro de Gilmar foi encontrado droga. O filho jura que estava saindo da casa da namorada e teve a infelicidade de cruzar com um carro de polícia em um sábado a noite. Foi parado pelos policiais e a partir daí começou o pesadelo para toda família. “ Foi nessa hora que os policias armaram para o meu filho. Implicaram com ele e forjaram um flagrante de drogas. Falaram que ele tinha cara de bandido.” “Todo preto é bandido.”
Cesare Lombroso foi um criminologista italiano que tornou-se mundialmente conhecido por seus estudos e teorias no campo da caracterologia ( relação entre características físicas e mentais). Lombroso acreditava que havia relação entre características físicas e mentais. Segundo essa teoria, os criminosos natos poderiam ser identificados por determinados traços físicos. É na comparação entre milhares de fotos de criminosos e não criminosos que Lombroso tentará encontrar a fisionomia típica do criminoso, conforme o tipo específico de desvio que manifestasse: o ladrão, o homicida, o estuprador. Ou seja, para Lombroso bandido nasce bandido e tem cara de bandido. Claro que a tese do criminalista foi refutada em pouco tempo. No entanto, serviu de inspiração para alguns.
Voltando ao caso de Gilmar, quando perguntei se ele acreditava na história que o filho lhe contou, José me respondeu “ Não acredito. Tenho certeza que ele é inocente.” Para o pai forjaram um flagrante de drogas no carro do filho e ponto final. “O que fizeram com meu filho foi covardia.” A polícia ainda falou “ Se eu te prender hoje, vou ganhar folga no dia das mães.”
José de Araújo ganha dois salários mínimos por mês. Já gastou mais de R$ 5000,00 com advogados para tentar tirar o filho da prisão. O que o anima é o hábeas corpus que está para sair. A defesa alega que a perícia não encontrou as digitais do filho de José nas drogas. “ Essa é uma prova de que o meu filho tá falando a verdade, e não faz sentido continuar preso.” Se o habeas corpus sair, Gilmar deve aguardar o julgamento em liberdade.
Calça de moletom, camiseta de manga curta, chinelos nos pés, sacolas nas mãos. Sandra Maria já está acostumada com as exigências do CDP. O bolo de cenoura é cortado em 48 fatias. A explicação para a precisão do número é que assim os presos dividem o bolo de maneira igual entre eles. Além do bolo, na sacola tem pudim, macarronada, refrigerante e cigarros.
Desde março Sandra visita o seu filho semanalmente. Não acredita que ele assaltou o ônibus. O cobrador ,no entanto ,reconheceu o filho. Outras testemunhas que também estavam no ônibus confirmaram a versão do cobrador. Para a mãe as testemunhas confundiram o filho com o primo dele. “ Os dois são parecidos. Qualquer um pode confundir. Meu filho e o primo sempre andaram juntos. Foi o primo do meu filho que botou ele aqui dentro.”
Segundo a explicação da mãe o problema foi que acharam celulares sem nota e R$ 80,00 no carro do Jean e o levaram preso. Quando a polícia revistou o carro de Jean, ele estava na casa da namorada. A mãe conta que o sobrinho não é réu primário e o filho entrou de bobão na história toda. “ Se você vê ele, você não fala..fala ‘ nossa, esse menino não era para estar aqui não.’ Ele é quieto, trabalhador, não é um menino bagunceiro, de jeito nenhum .”
Jean tem 21 anos, trabalhava registrado em uma firma de cestas básicas. Sandra conta que nem o patrão de Jean acredita que ele tenha algo a ver com o assalto. O patrão garante que quando Jean sair ele pode retornar ao trabalho.
Sandra conta que já teve duas audiências, mas as testemunhas não apareceram e o julgamento teve que ser anulado. A próxima audiência está marcada apenas para março. Enquanto março não chega, o bolo de cenoura continuará a ser cortado em 48 fatias . Entendemos e até mesmo compreendemos que um familiar acredite na inocência de alguém que está preso. Afinal, há por trás uma mistura de sentimentos, histórias verdadeiras de uma vida, mesmo quando todos os elementos do quebra cabeça pareçam contrários a verdade.
Mas e um profissional ? O que leva um advogado criminal a acreditar que um estranho é de fato inocente?
Enquanto espero o doutor Paulo Sérgio Leite Fernandes, na sala ao lado, jovens advogados comentam sobre um caso que estão defendendo.
Antes de começar a entrevista, Paulo Sérgio profetiza “ A maior virtude de um jornalista é a paciência. Em segundo vem a obstinação”. Estava no seu escritório a cerca de duas horas aguardando ele chegar do Tribunal. A casa onde Paulo atende seus clientes fica em uma pacata rua de um bairro nobre de São Paulo. Na sala milhares de livros expostos sobre as estantes. Na garagem um Mercedez Azul 1974, revela a paixão do doutor por carros antigos.
Paulo Sérgio Leite Fernandes tem 5O anos de carreira, é um dos advogados criminalistas mais conhecidos do Brasil. Atuou em mais de 400 júris em defesas dos direitos de seus clientes. A primeira pergunta que faço é como identificar a mentira e a verdade na história de um cliente. Como acreditar que um acusado de um crime está sendo injustamente condenado ? O velho criminalista, como ele mesmo se define, fecha os olhos por uns segundos enquanto me responde pausadamente “ A mentira, mais que a verdade , faz parte da vida do criminalista. Identifico as duas, num bailado desencontrado mas paradoxalmente gracioso.” Explica que depois de meio século de profissão tornou-se um feiticeiro e seria quase impossível alguém conseguir mentir para um criminalista velho. O doutor Paulo me conta que quando um cliente entra em seu escritório diz que basta que o cliente conte a verdade para ele. Presta bastante atenção nos detalhes da história e sempre adverte o cliente “ Sua verdade é a minha verdade. Sua mentira passa a ser a minha verdade.” Perguntei a ele se com meio século de advocacia, já havia defendido muito presos que eram inocentes. Faz uma pausa, termina de tomar o capuccino e responde. “ Já defendi pobres inocentes e ricos inocentes. Com uma pequena diferença. Não cobrava de pobres inocentes, já de ricos , mesmo que fossem inocentes sempre cobrei. “ Hoje o advogado criminalista só defende a ricos. Entre seus casos mas famosos, o pediatra Eugênio Chipkevich, acusado de abusar sexualmente de crianças e adolescentes. A promotora Deborah Guerner ,acusada de envolvimento do mensalão do DEM, também foi uma de suas clientes.
Peço para ele me contar uma das histórias de inocentes presos. “ Uma certa vez defendi um gajo que estava sendo acusado injustamente de estelionato. Ficou uns meses na cadeia e eu o absolvi provando a sua inocência. Ele apenas me agradeceu, já que não teria como pagar meus honorários. Nunca mais o vi. Muitos anos depois, vou a uma homenagem na cidade da Praia Grande. Colocaram o nome da minha esposa na creche. No final da cerimônia uma garota de vinte e poucos anos chega até mim e pergunta. “ Senhor tenho o mesmo nome que esta creche. Não sei o porquê. Quero que o senhor me responda.” “Perguntei quem tinha dado a ela este nome. Ela me disse que havia sido o seu pai, mas nunca disse o porque. Quando ela me confidencia o nome do seu pai , com surpresa lhe respondo que não faço ideia do porque ela tenha este nome. Ela foi embora decepcionada. Não podia dizer a ela que defendi o pai dela de uma acusação em um julgamento e provavelmente como não tinha dinheiro para me pagar, resolveu dar a ela o mesmo nome da minha esposa. Sinto saudades de defender pobres inocentes” relembra com certa nostalgia.
Atleta, apaixonado por esportes, caçula de uma unida família, loiro de olhos claros. Ricardo é hoje um protagonista de um dos mais intrigantes crimes da justiça brasileira. A acusação : pedofilia. Segundo MP ele violentou 14 crianças. Os alunos tem entre 3 e 5 anos de idade. As provas são os relatos das crianças aos pais. Laudos dos Instituto Médico Legal não encontraram marcas do abuso.
A família diz que ele é vítima de uma grande injustiça. Mais do que jurar inocência, pai , mãe e irmão lutam para provar que Ricardo é vítima de histeria. O mais curioso é que milhares de pessoas se mobilizaram com o caso. No facebook foi criado um grupo onde mais de 5000 pessoas estão apoiando o professor .
Se fosse a mãe do professor jamais duvidaria da inocência da palavra do meu filho, se fosse a mãe de uma das crianças jamais duvidaria da palavra dela. É um caso salomíaco.
Nas mãos da justiça, resta a responsabilidade de encontrar respostas para o crime .
Assim, a questão da verdade e da mentira é posta permanentemente no judiciário do mundo todo.
É célebre o caso dos irmãos Naves Araguari, interior de Minas Gerais, ano de 1937. Dois irmãos são condenados pela morte de um homem que, 20 anos depois , reaparece. A verdade vem à tona em 1953, quando os irmãos são finalmente inocentados de qualquer acusação de crime.
O princípio da presunção de inocência está inscrito no art. 5º, inciso LVII da Constituição Federal e assegura que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
“ Erros judiciais, de fato podem acontecer.” José de Araujo, o pai do começo da reportagem, que acredita na inocência do filho , finaliza a nossa conversa com a frase. “Para quem foi preso injustamente e para todos aqueles que acreditam na inocência do detento nada como um dia depois do outro. Nada como o dia que vem depois, melhor ou pior, pouco importa, mas sempre as próximas 24 horas, um outro dia.” O desabafo do aflito pai resume bem o sentimento daqueles que aguardam uma nova sentença
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