São oito horas da manhã, estação de Metrô Pinheiro, zona oeste de São Paulo. Um homem engravatado, mas sem palito, tenta distribuir um jornal em meio aos transeuntes que saem da estação a caminho de seus trabalhos. Às quinze horas, não mais que onze quilômetros de distância daí, uma mulher com um sotaque aparentemente pernambucano caminha pelo Centro Cultura São Paulo, próximo à outra estação do Metrô, a Vergueiro, distribuindo a mesma publicação. Voltando à Marginal Pinheiros, atravessando o rio, na Biblioteca Florestan Fernandes da Faculdade de Filosofia Artes e Ciências Humanas da USP, um bolo do mesmo jornal se mistura ao Jornal do Campus, Território Livre, Jornal da USP e algumas publicações do movimento estudantil.
O jornal parece simples, uma folha apenas, com quatro páginas. A edição 67 do Ano V, segundo a capa, é a primeira impressa com papel misto, até então se usava um papel couché mais grosso. Curiosamente essa também é a primeira com a tiragem de 200 mil exemplares, antes era a metade disso, 100 mil. A matéria principal assusta quem recebe o jornal, mas muito menos que o nome. Em letras grandes pergunta: “Qual é a Sua Patologia?”. O artigo, escrito por Norberto R. Keppe, e extraído do livro A Medicina da Alma, segundo informa na própria capa. O artigo ocupa 4/5 da primeira página, continuando na página 4, a última do jornal. O outro 1/5 da capa que falta fica para o nome da publicação, escrito em letras garrafais atrás de um fundo azul: STOP. Ou STOP A Destruição Do Mundo, se quiser usar o nome completo. Logo abaixo, em uma fina tira vermelha, o termo “Jornal Científico Trilógico” tenta explicar o que é a publicação.
Afinal de contas, o mundo está se destruindo, e quem está destruindo ele? E o que vem a ser um “Jornal Científico Trilógico”? A capa não responde nenhuma dessas perguntas. Apenas informa: “é livre a publicação e circulação no território nacional de livros, jornais e outros periódicos, salvo se clandestinos ou quando atentem contra a moral e os bons costumes”. Logo, STOP não é clandestino e nem atenta a moral e os bons costumes (apesar de afirmar logo de capa que possuímos uma patologia, o que pode não ser muito simpático).
Uma pequena fuçada e descobre-se que na página dois, bem no rodapé da página, há uma descrição. Bem pequena. “STOP é um jornal que transmite notícias de interesse público e artigos de diversos autores, ligados à Escola de Pensamento Noberto Keppe”. E o trecho continua explicando quem é Keppe: é psicanalista, filósofo, e pesquisador, autor de mais de 30 livros sobre a psico-sócio-patologia (sic). Olhando mais encontro o jornalista responsável pela publicação, José Ortiz Camargo Neto, um senhor já de idade, sem celular, sem e-mail, usuário de uma calça que ultrapassa a barreira norte do umbigo e professor de idiomas na escola Millennium Línguas (uma cooperativa trilógica, segundo o próprio). Isso tudo além de, como ele mesmo mostrou no seu currículo, membro fundador da STOP, redator geral e autor de vários capítulos do livro STOP a Destruição do Mundo (Lisboa, 1993).
Conversando um pouco mais com ele percebe-se o respeito pelo “Dr. Keppe”, cujo nome foi exaustivamente rememorado umas centenas de vezes, junto com as citações dos inúmeros livros do pensador. Indagado sobre o mesmo, José Ortiz foi rápido: de um livro tirou um pedaço de folha sulfite impressa com uma série de informações sobre Dr. Keppe, a psico-sócio-patologia, a Associação STOP a Destruição do Mundo e por fim, em um parágrafo nada menos modesto, um minicurrículo do próprio jornalista responsável pelo jornal, José Ortiz de Camargo Neto. Mas não se engane, toda a explicação não imedio que o mesmo falasse sobre tudo isso, ele falou e muito (o que aparentemente gosta muito de fazer).
A explicação do papel começa com uma palavra, que vem logo abaixo ao título Associação STOP a Destruição do Mundo: autofinanciada. Ortiz se apressa em separar o grupo de qualquer outra ONG, que segundo ele, vive de dinheiro do governo e devendo uma série de favores para políticos, e “sem contar das vezes que é usada como instrumento de lavagem de dinheiro”. A associação vive, conforme a linha seguinte, do trabalho de seus membros, “incluindo a presidentes e fundadores”.
Apesar de toda a influência do Dr. Keppe, a associação não foi fundada pelo tal, mas sim por outra psicanalista, Cláudia Bernhardt Pacheco. Foi na França, no ano de 1992, com uma finalidade, segundo informam, de conscientizar a humanidade da psico-sócio-patologia que impede o desenvolvimento (logo, STOP a Destruição do Mundo, achamos o nosso vilão!). E, como não poderia faltar, a STOP também busca melhorar a qualidade de vida da população (mas com o que até agora não foi explicado).
Sobre Dr. Keppe, uma pequena pesquisa na internet mostra que o mesmo não possui uma página na Wikipédia brasileira, muito menos na internacional. Apenas na finlandesa, que o coloca como brasileiro nascido em São Carlos, interior de São Paulo. Mas o sotaque, junto com o site oficial da associação, e confirmando com José Ortiz, temos que o psicanalista é, na verdade austríaco-brasileiro, sem descobrirmos a cidade. Ficaremos aqui então com o benefício da dúvida. Continuando a busca na internet achamos uma página de Dr. Keppe no site Pensador.Info, com frases atribuídas a ele. Segue alguma das mais belas:
ñ Se você não faz nada para parar a destruição do mundo, está ajudando a destruí-lo
ñ O mal é a privação do bem – se a pessoa não frear o bem, o mal não existirá.
ñ Educar é conduzir o indivíduo a se conhecer – uma utopia possível.
Essa última explica como José Ortiz chegou ao pensamento e conheceu Dr. Keppe. Queria ganhar autoconfiança, por isso começou a ter sessões de psicoterapia com o doutor, claro que dentro da teoria que prega. Queria ser escritor, mas tinha certa timidez para liberar toda a sua liberdade literária. Queria também se conhecer melhor, pois pensava que se conhecendo melhor, conhecendo melhor as pessoas e o mundo ia ser um melhor escritor. A parte desse desejo de escritor, estava uma série de problemas físicos: tinha tontura, muita coriza, era coberto de espinhas. Mas, diz com certo desdém, não ligava muito para isso. “Não era por isso que procurei o Dr. Keppe”, diz. Isso tudo quando tinha seus “20 e poucos anos ”.
Conforme descreve em seu currículo, é bacharel em jornalismo impresso pela Fundação Casper Líbero e Faculdades Integradas Alcântara Machado. Mesmo assim, não se sentia seguro para escrever um livro, que sonhava muito em fazer. Após a série de encontros, se apegou a teoria. No currículo, entregue inicialmente por Ortiz por já imaginar as perguntas que iriam lhe fazer, se coloca como “autor, coautor ou assistente de redação dos livros: A Decadência da Medicina (coautor) STOP a Destruição do Mundo (redator e autor) e Redação Prática e Moderna Trilógica”. Nenhum romance foi escrito, toda poder de escrita acumulado dentro do jornalista foi liberado na explosão de livros da teoria trilógica. Mas todos os problemas de saúde desapareceram. Não tinha mais vertigem, a coriza sumiu, e nada mais de espinha (poderia ser um tratamento para a doença menos lesivo que o Roacutam).
De fato, Ortiz falou muito pouco sobre si, mas esbanjou discursos sobre o a ciência trilógica. Logo que terminou de contar como chegou ao tratamento, o que durou algo como 3 minutos de discurso, voltou a falar sobre toda a ciência do pensamento. Teve-se, inclusive, o prazer de se ouvir um livro narrado do Dr Keppe, mostrando o seu pensamento sobre “todas as religiões e escolas filosóficas do mundo”. Segundo o jornalista, o pensamento trilógico reúne elementos de todas essas, mas “Dr. Keppe acredita mais, assim como a sociedade judaico-greco-cristã que vivemos, se aproxima mais ao cristianismo.” E após isso, continuou citando a imensa bibliografia do Dr. Keppe: Escravidão e Liberdade, O Reino do Homem, O Reino Divino, Bíblia Trilógica, O Homem Interior, e por ai vai. Todas citando a doença da humanidade e a psico-sócio-patologia.
E da psico-sócio-patologia temos a inversão psico-social, a principal cauda da destruição do mundo, que ocorre basicamente em dois níveis: individual e o social. É explicado que no primeiro a inversão começa no interior do seu humano, na esfera emocional, nos “valores” e atitudes muitas vezes inconscientes enquanto no segundo tem-se a manifestação principalmente através dos poderes patológicos da sociedade (como o financeiro) que “criam leis sem ética e injustas, hábitos de vida destrutivos, instituições corruptas, que agem contra o povo privando-o de sua liberdade felicidade e destruindo a natureza”.
Um gráfico não muito mais detalhado, e nem muito mais explicativo, tenta descrever todo o processo da psico-socio-patologia:
Ortiz gosta de definir o pensamento do Dr. Keppe como uma terceira via, mas terceira via do que? De duas escolas psicanalistas, uma, a francesa, se define como sociopatologia. Envolvida com todo o pensamento do iluminismo, como explica orgulhoso de tanto conhecimento o jornalista, essa escola se preocupava em encontrar os males da sociedade, olhando o indivíduo como um em meio a um ambiente que o constrói. A outra escola, a alemã, é contada como mais individualista. “Ela entra no campo dos sentimentos com o romantismo”, explica. Logo, define Keppe como a união das duas correntes. “Psico-sócio-patologia não é nada menos do que a sociopatologia francesa com a psicopatologia alemã”. Em um campo, pelo menos, os alemães e franceses conseguiram se entender (talvez se Dr Keppe tivesse nascido alguns séculos antes algumas guerras poderiam ser evitadas, mas também vai se saber quantas guerras podem ter sido evitadas por ele agora?).
Para explicar ainda mais sobre o pensamento, mostrou uma série de vídeos que, com uma produção simples e caseira, mas muito bem caprichada. Programa STOP TV atualmente é apresentado pelas duas figuras centrais da teoria, Dr. Keppe, sustentando o seu bem típico cavanhaque branco e suas grossas sobrancelhas, e a pela fundadora da Associação STOP, Cláudia Pacheco. Atualmente está na edição 270, debatendo sobre a decadência dos Estados Unidos e a Queda das Bolsas, e, segundo o site está em 114 cidades no Brasil e centenas no exterior. O primeiro programa explica sobre o desejo de autodestruição do ser humano.
No jornal, os temas tratados são quase sempre sobre saúde. A prova está na já citada capa do jornal que ficou a disposição na Biblioteca da FFLCH da USP, e que foi distribuída no Metrô Pinheiros e no Centro Cultura São Paulo: “Qual é Sua Patologia?” Paranóia, Esquizotimia, Cicloidia, Compulsividade, Hipocondria, Astenia, Glisceroidia, Anetia e Hiperemotividade. Só escolher uma e ver o box com a descrição para se autodiagnosticar com o artigo escrito pelo próprio Dr. Keppe, mas retirado do livro a Medicina da Alma. Na mesma edição ainda temos a matéria “O Desejo da Fórmula Mágica”, escrita por Cláudia Bernhardt de Souza Pacheco, e retirado de outro livro, “De Olho na Saúde”. Logo abaixo “Refrigerantes que Corroem os Dentes”. Na página seguinte duas matérias que na verdade são propagandas: “Como Vencer o Bloqueio de Falar Uma Língua Estrangeira”, promovendo o instituto Millenium, e “Cursos de Pós-Graduação”, falando sobre a abertura do curso Gestão da Psico-Sócio-Patologia (Trilogia Analítica).
Sobre as matérias e temas de outros jornais, José Ortiz falou com um peito inflado de orgulho sobre todos as grandes polêmicas do jornal, com suas matérias “independentes e que falam a verdade que deve ser dita”, como descreve. E quase todas envolvendo médicos ou autoridades de saúde desagradados. O jornal parece ter uma certa raiva de vacinas. A maioria dessas polêmicas critica o uso delas, assim como a sua obrigatoriedade. Em uma mesma edição mostra duas polêmicas. A edição era a de Julho/Agosto de 2011, número 54. A primeira falava do Mito da Bactéria E. Coli (que na época foi acusada de causar uma série mortes na Europa), enquanto a segunda atacava as vacinas: Governo Sueco Alerta: Vacina Causa Narcolepsia. Nesta última cita a boa internacionalização do jornal e da associação, pois foi escrita pela professora sueca Ana Lindquist.
Na edição de setembro de 2009, número 31, um dos artigos mais polêmicos do jornal. Mostrando as suas garros com aquele que considera um dos maiores vilões. O título já fala muita coisa: “A Influência de Pasteur Foi a Mais Nefasta Para a Humanidade Atual”. Foi escrita pelo criador Dr. Keppe. Louis Pasteur é considerado um importante cientista no campo de saúde pública e na pesquisa com vacinas. Ortiz cita tudo isso sem medo, inclusive descrevendo a irritação de alguns dos médicos do Hospital das Clínicas ao receber o jornal, ou ver que alguns foram grudados na parede (por ninguém da associação, segundo ele).
No final de tudo foi difícil terminar a conversa com José Ortiz, o homem gostava mesmo de falar, mas não tanto de ouvir. Poucas perguntas foram respondidas, e as que foram muitas vezes descambavam para mais uma explicação sobre a Trilogia Analítica. Parecia sempre preparado para converter alguém. Citou algumas vezes que estaria indo, após a conversa, ver uma exposição sobre o impressionismo no Centro Cultural Banco do Brasil, o que foi muitas vezes lembrado pelo ouvinte, que se incomodava em não tomar muito do tempo do editor. No final ainda quis passar mais um vídeo, com a entrevista de um falecido amigo que teve a “vida mudada” por Dr. Keppe. Na verdade não teve uma mudança muito grande, o psicanalista apenas formou uma corporação para comprar o hotel onde o amigo trabalhava, e que estava indo a falência, evitando, assim de deixá-lo desempregado. Mas com um pouco de força de vontade conseguiu terminar a entrevista, tomando dois cafezinhos e um copo d’água antes de partir para a exposição no CNBB.
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