O Homem sem Nome
Por Juliana Malacarne - Edição Anônimos - junho de 2013

Quando acordou de madrugada, não tinha ideia de que horas eram, só uma vontade intensa de ir ao banheiro. Mas ir para onde exatamente? Não sabia o caminho para o aposento que lhe deveria ser tão familiar. Olhou para a forma adormecida da mulher ao seu lado e resolveu pedir ajuda. Ela, sonolenta, levantou e o guiou até lá com um pouco de dificuldade. Dar alguns passos tinha se tornado uma missão complicada que as pernas dele lutavam para cumprir. Depois de passar pelos corredores desconhecidos, voltou ao quarto com a vontade saciada. A mulher deitou-se na cama de casal. Ele fez o mesmo, mas não adormeceu. Ficou quieto no escuro. Aos poucos o sol começou a lançar sobre o quarto seus raios hesitantes de começo de manhã. A mulher ao seu lado se mexeu e levantou. Ele permaneceu imóvel, escutando os sons que ela fazia ao mexer na louça em outro cômodo da casa. O sol das 10h já inundava o quarto de luz quando ela voltou. Cabelos castanhos e curtos, pele branca, olhos azuis, conseguia vê-la melhor agora que estava claro:

- Alcino, vamos levantar. Tomar o café da manhã.

Alcino? O som não fazia sentido para ele. Na verdade ele nem conseguia entender essa primeira palavra que a jovem lhe disse. Uma sensação estranha começou a tomou conta dele. Horrível.

- Do que você está me chamando?

Ela ficou surpresa e começou a fazer um monte de perguntas. Se ele se lembrava de quem era, de onde estava, de quem ela era. Não, ele não lembrava. Sua cabeça doía intensamente. Um choro de criança pequeno vindo de outro canto da casa interrompeu a conversa. A mulher saiu do quarto na direção do barulho e voltou com um bebê de seis meses no colo, olhos azuis e cabelos claros. Uma menina. Ele não a reconhecia, nem sentia nada de diferente ao olhá-la. A mulher, agora com o bebê no colo, parecia nervosa. Pegou o retrato de um menino moreno que estava próximo a eles. Perguntou se ele se lembrava da criança. Não, ele não lembrava de nada.

 Infância

Alcino quando criança na esquerda, no meio a sobrinha Michelle e na direita o irmão, Paulo (arquivo pessoal) 

Desde que se conhece por gente Alcino Garajau sente fortes dores de cabeça e ouve um zumbido semelhante a uma chaleira com água fervendo o tempo todo. Ele pode até tapar os ouvidos, mas o irritante som continua lá. Vem de dentro. É difícil de ignorar, mas ele tenta, afinal tem muita gente com quem dividir a atenção. Ele é o filho caçula de oito irmãos, seis meninos e duas meninas. Porém, não conheceu as irmãs, ambas faleceram antes que tivesse nascido. Os pais são humildes. A mãe é dona de casa e o pai trabalha com construção civil. Nasceu em junho de 1978 na parte continental da capital do Espírito Santo, Vitória, no bairro de Goiabeiras, próximo ao aeroporto da cidade e morou lá quando criança. Aos nove anos, Alcino ajudava a família vendendo picolé na rua, mas não deixava de ir à escola ou fazer outras atividades, como ir a catequese, por isso. Quando tinha 12 anos, a família se mudou para Cariacica, cidade grudada a capital, onde ele vive até hoje.

As constantes dores de cabeça sempre foram uma preocupação para os pais de Alcino. Às vezes a dor era tão intensa que o menino franzino nem conseguia se levantar da cama para ir a escola. Recusava-se a comer e só bebia a água que a mãe lhe trazia. Quando a crise era muito aguda o olho esquerdo inchava e ficava como se estivesse com uma conjuntivite severa sem estar congestionado. A mãe o levou a vários médicos que fizeram uma série de exames: tomografias e até eletrocardiogramas. Nada anormal. Alguns diziam que era frescura do garoto. Desculpa de criança para ficar em casa assistindo a Sessão da Tarde. Eles diziam aquilo na frente do menino que mais tarde, como adulto, se lembraria da sensação de ouvir isso como uma das piores de sua vida.

 A primeira vez

Com o passar dos anos, as crises e a dor não cessaram, mas Alcino aprendeu a conviver com elas como quem se resigna ao ter na poltrona do lado um passageiro chato em uma viagem extremamente longa. Aos 22 anos, ele trabalhava como programador de bordado em uma fábrica têxtil, mas acordou em uma manhã sem memória disso. Sem lembrar de nada. O pequeno quarto e sala em que morava sozinho lhe era completamente estranho. Ele temia ir a janela e ver o que acontecia na rua. Um medo terrível e sem explicação o dominava. O celular tocava insistente. Mas ele não sabia como responder aqueles chamados ou se deveria fazê-lo. Até hoje não sabe quanto tempo passou nesse estado de pânico. Supõe que um ou dois dias. Finalmente, um nome na tela de identificação do aparelho lhe chamou a atenção: Vânia namorada. Resolveu atender:

- Você é minha namorada mesmo? Você gosta de mim? Você pode me ajudar?

A conversa foi estranha, mas depois de um tempo Vânia estava no apartamento, do qual tinha a chave. Demorou uma semana para que ele se lembrasse novamente de quem era e das pessoas que conhecia. As lembranças reapareceram tão inexplicavelmente quanto sumiram. A namorada levou Alcino a diversos médicos que ante os exames aparentemente normais declararam que o caso dele só tinha uma solução: Adauto Botelho. Adauto Botelho era um hospital psiquiátrico do Espírito Santo que ficou conhecido negativamente através da mídia como “circo dos horrores”. Os jornais da região, principalmente A Gazeta, fizeram diversas denúncias sobre o que acontecia no local como a sujeira em que os pacientes viviam, o tratamento de choque e a estrutura física precária. Hoje em dia, passou por uma reestruturação completa, mas no ano 2000, Alcino teve medo ao ouvir o nome. Ele sabia que as pessoas eram trancafiadas e esquecidas em lugares como aquele e não queria um destino assim.

Então ignorou as recomendações dos médicos e procurou seguir a sua rotina normal, mas voltar ao trabalho não era algo com que se sentia confortável. Na semana em que ficou sem memória ele se tornou extremamente dependente de pessoas próximas e não foi nenhum dia até a fábrica. Ele precisava que as pessoas lhe explicassem como fazer até as coisas mais banais, por exemplo, matar a sede com um copo d´água. Como as pessoas do trabalho iriam entender algo assim? Ele resolveu dar um tempo até estar recuperado. Depois disso, mudou de profissão, onde poderia começar do zero, e foi trabalhar em uma gráfica onde verificava se tudo estava correto com os arquivos de revistas e livros antes da impressão. O trabalho exigia concentração, mas Alcino gostava. De um breve relacionamento durante esse período, nasceu um saudável garotinho de olhos e cabelos castanhos, Myguel. As coisas iam bem. Alcino não teria outra perda de memória em 10 anos.

 A segunda vez

Alcino e os filhos Myguel e Cristina(arquivo pessoal)

Aos 29 anos, Alcino ocupava o cargo de supervisor na gráfica quando conheceu Priscila, na época estudante de jornalismo que trabalhava no jornal de um sindicato. Conversa vai conversa vem, ele se encantou pela bela moça de pele alva e olhos claros. Os dois engataram um namoro e não muito tempo depois casaram. Cristina, a filhinha do casal, veio logo em seguida. Era Priscila que estava com ele na madrugada do dia 18 de janeiro de 2012, a noite que mudaria suas vidas.

Alcino não lembra com precisão nada do que aconteceu dois meses antes desta data. Só recorda que foi um período de stress no trabalho. Eles estavam trazendo um novo maquinário para a gráfica. O horário de entrada no serviço era 8h, o de saída não existia. Cristina era um bebê de colo. Quando as coisas começaram a se acalmar e as máquinas foram substituídas, quando Alcino finalmente estava voltando a sua rotina normal, ele acordou naquela madrugada com vontade de ir ao banheiro e sem se lembrar de quem era. Priscila não estranhou o marido desorientado no meio da noite, pois ele já vinha tendo fortes dores de cabeças nos dias anteriores e achou que aquele comportamento era consequência disso.

Quando percebeu que o marido havia esquecido de tudo, mostrou a filha de colo deles e o retrato de Myguel que estava no quarto. Ele não esboçou nenhuma reação. Apesar de ser uma situação que colocaria a maioria das pessoas em estado de pânico, ela não se desesperou, pois sabia que algo parecido já havia acontecido com Alcino no passado. Separou uma camisa e uma calça, entregou a ele e disse:

- Aqui está sua roupa. Vai tomar banho porque nós vamos ao médico.

Ao entrar no banheiro, Alcino não sabia como se comportar. Tirou a roupa, entrou no chuveiro e se molhou. Saiu sem nem ao menos se enxugar e vestiu a roupa que a mulher havia lhe dado da maneira que conseguiu. Quando Priscila percebeu o que ele havia lhe explicou detalhadamente como realizar aquela tarefa cotidiana e tratou de levá-lo rapidamente ao hospital.

Eles procuraram ajuda médica e de novo a causa apontada era um problema psiquiátrico provavelmente desencadeado pelo stress. Dessa vez, Alcino aceitou o tratamento com antipsicóticos atípicos como a risperidona, normalmente indicados para casos de psicose delirante. O remédio o deixava dopado durante o dia, mas a noite, a dor de cabeça continuava impedindo seu sono. Ele cochilava umas poucas horas. Passava os dias assistindo televisão e escrevendo em um diário o que acontecia, pois tinha medo de esquecer novamente.

Com os programas de TV ele aprendia a maneira como as pessoas deveriam se comportar. Maridos levando o café da manhã para esposas na cama, irmãos se abraçando e pais cuidando dos filhos. Aquilo tudo era uma realidade distante para ele. Sua maior preocupação era descobrir o que estava acontecendo, procurar uma maneira de se lembrar de novo. Desde a madrugada do dia 18, ele não tinha ido visitar os seus por medo de não saber como se comportar.

As coisas mudaram quando, depois de um mês, teve sua primeira lembrança. Alcino devia ter cinco ou seis anos de idade e era um domingo ensolarado. Ele, o pai e o irmão Paulo, quatro anos mais velho, tinham ido buscar madeira seca em um manguezal próximo para alimentar o fogão a lenha que os pais, mantendo a tradição da roça, tinham na casa da cidade. O pai empurrava o carrinho cheio. O machado recém usado ia amarrado a ele. Os meninos se divertiam ao longo do caminho quando avistaram um grupo brigando. Um dos rapazes envolvido na confusão, ao avistar o afiado machado, correu na direção deles para tentar pegar a ferramenta. O nó que o pai havia dado foi forte o suficiente para impedi-lo e, por falta de coisa melhor, ele se contentou em se armar com um pedaço de lenha e voltou para a briga.

Alcino se lembrou da cena, do susto, do medo e do pai tentando afastar os meninos do conflito para protegê-los. A sensação foi estranha e nova. Ligou imediatamente para o irmão para confirmar se não se tratava de um delírio ou um sonho. Paulo deu-lhe a segurança de que aquela tarde havia de fato acontecido. Decidiu então que queria visitar os pais. Ao cruzar a soleira da porta, o nervosismo tomou conta dele. Sabia que devia demonstrar respeito, carinho e consideração. Mas como fazer isso quando não sentia nada ao vê-los? Cumprimentou-os educadamente, mas sem afeição. Porém, mesmo sem se lembrar de tudo que já haviam vivido, sentiu uma estranha sensação de conforto quando o pai, emocionado, o apertou fortemente contra o peito.

  Lembrar, esquecer e lembrar

Alcino Garajau(arquivo pessoal)

O resto ele lembrou aos poucos e, ao final de dois meses, reconhecia parentes e amigos. Nessa época, conheceu o neurocirurgião Élcio Machado que descobriu um problema de falta de irrigação no cérebro de Alcino. Ele largou o tratamento psiquiátrico e passou por uma operação em junho de 2012 onde pôs um stent, objeto normalmente de metal colocado dentro da veia com o objetivo de expandi-la e melhorar a circulação do sangue, na jugular direita. O procedimento é considerado simples e a recuperação foi quase imediata.

Três horas depois da cirurgia Alcino já estava em casa, tirou um cochilo e quando acordou não sentia mais a dor de cabeça com que tinha convivido por toda sua existência. Ele se sentia tão disposto que foi com a esposa a um evento na mesma noite. Nunca havia se sentido tão bem.

Em julho, um mês depois da cirurgia, Alcino foi até o INSS pedir o cancelamento do benefício que recebia por causa de sua frágil saúde. Ele tinha direito a ficar afastado do trabalho até 31 de outubro, mas pediu para voltar antes. Estava animado para retornar a seu oficio e se sentia em plenas condições para isso. Assim que conseguiu a liberação levou os documentos até a gráfica em que trabalhava, perguntando quando poderia retomar o serviço. O supervisor, sem dar muita atenção, disse que ligaria para ele mais tarde e conversariam.

No dia seguinte, veio a ligação:

- Olha, Alcino, amanhã você vem aqui e pega o papel para fazer o exame demissional. – disse o supervisor de maneira indiferente, a mesma que se usa para pedir um pão na padaria ou constatar que o ônibus está atrasado.

Alcino ficou em choque. Fazia parte do seu trabalho na gráfica contratar e demitir pessoas. Era ele quem fazia isso e sabia que nunca teria feito algo dessa forma. Ele tinha pedido para voltar antes e não queria aceitar a realidade das palavras que aquela ligação acabavam de construir. Não podia acreditar. Quando respondeu, a voz saiu mais incrédula do que esperava:

- Você está me mandando embora?

Um silêncio incômodo se fez do outro lado da linha até que o homem voltou a falar:

- É, você está dispensado da gráfica.

Alcino se sentia quase que fisicamente mal. Ele nunca entenderia como o antigo companheiro de trabalho teve a coragem de ligar para ele naquele dia. Em uma tentativa de ver se não estava havendo algum engano, perguntou mais uma vez, recusando-se a acreditar:

- Você está me mandando embora por telefone, cara?

Depois de mais uma afirmativa, não lhe restou outra opção senão aceitar. O que faria a seguir? Em outubro de 2012, mais um episódio de perda de memória impediu que ele tivesse uma vida normal. Apesar de ter se recuperado em uma semana, sua rotina voltou a ser constituída por constantes idas a consultórios na busca de uma solução definitiva para seu problema. Mais exames foram feitos e em janeiro de 2013, Alcino passou por mais duas cirurgias onde colocou mais oito stents no cérebro para facilitar a passagem do sangue pelas veias. Entre os processos cirúrgicos. A última cirurgia foi no dia 21 de janeiro desse ano e depois dela Alcino não teve mais amnésia.

Porém, algumas coisas mudaram para sempre. Algumas banais e outras significativas.  Hoje em dia, em casa, ele só come com colher e se sente estranho ao fazê-lo com garfo. Antes, só guardava a carteira no bolso de trás, mas agora tornou-se automático guardá-la no da frente. Ele sabe que sua caligrafia é muito diferente da de antes das cirurgias e não consegue mais sentar e prestar atenção em um filme como antigamente sem se dispersar. Não é mais casado com Priscila. Voltou a morar com os pais e trabalha com o irmão, pois continua tendo fortes dores de cabeça que não permitem um ritmo de trabalho natural. Como seu caso ganhou repercussão nacional ao ser exibido no programa da Tv Globo “Fantástico”, ele é reconhecido nas ruas, porém gostaria de se livrar do estigma do “cara que perdeu a memória”. Se a maioria sonha com aventuras espetaculares, ele só deseja uma vida normal. “Só quero ver meus filhos crescerem, trocar fralda, ensinar a andar de bicicleta, estar do lado deles. E poder lembrar desses momentos no futuro”.



Nesta Edição
Anteriores
Home | Expediente | Home Atual