Tiros no Escuro
Uma história por trás do extermínio de sete civis na periferia de São Paulo em 4 de janeiro de 2013
Por Mariana Queen Nwabasili - Edição Anônimos - junho de 2013

Brunno de Cássio Cassiano Souza caminha pela Rua Riachuelo, no centro da cidade de São Paulo, ao lado de sua mãe, dona Rita, durante o ato “Dias das mães sem os filhos”. A manifestação, realizada no dia 14 de maio de 2013, reúne cerca de 200 pessoas e acontece para reivindicar o julgamento de policiais militares acusados de matar civis, em sua maioria jovens negros, no final de 2012. Brunno é negro, aparenta saúde e o frescor da idade, 17 anos. Está sem camisa, usando boné e sorrindo. Está morto. Na verdade, é apenas a sua  imagem estampada em um cartaz que acompanha dona Rita na passeata. “Eu queria me formar, casar, ter filho e ser feliz. Mas a violência de São Paulo arrancou isso de mim”, diz a mensagem impressa no estandarte de um desfile triste, porém necessário.

Dados divulgados em janeiro deste ano pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo mostram que 323 civis foram mortos na capital em confrontos com policiais militares em serviço em todo o ano de 2012. O número representa um aumento de 40% com relação a 2011, quando 230 pessoas foram assassinadas na mesma situação. As informações são controversas e variam dependendo das fontes que as veiculam. Segundo reportagem do jornal O Globo, por exemplo, de janeiro a novembro de 2012, a capital paulista registrou 1.327 de homicídios. No mesmo período, foram contabilizadas 96 mortes de policiais em todo o estado.

O panorama evidencia uma verdadeira guerra travada nas ruas da cidade entre facções criminosas, que teriam arquitetado e realizado assassinatos de policiais militares em serviço ou fora dele, e grupos de extermínio aparentemente formados por policiais. No último ano, bem como em 2006 (leia abaixo), ao que tudo indica, estes grupos descontaram a raiva pelas mortes de seus parceiros de trabalho matando moradores das periferias. No segundo semestre de 2012, o quadro se agravou, tendo desdobramentos até o início de 2013, quando sete pessoas foram mortas em uma chacina na zona Sul da capital.

Trecho da nota distribuída à população no ato do dia 14/5 mostra a percepção dos familiares das vítimas sobre a situação: “O estado tenta colocar debaixo do tapete a violência que faz parte da rotina e da história de milhares de famílias que vivem em locais invisíveis para muitos setores da sociedade, que não vivenciam a ação preconceituosa e irresponsável que vitima inocentes. Sabemos, no entanto, que nossas reivindicações e nosso luto, são legítimos. A impunidade, como marca maior desta história, é uma realidade que não queremos mais.”

Tiros no escuro: a chacina

No dia 4 de janeiro de 2013, Brunno Cássio, também conhecido como “Gordo” ou “Gordão” devido ao sobrepeso – era muito comilão, adorava comer lanches salgados a toda hora; pizza estava entre seus pratos preferidos – , sai de casa depois das sete horas da noite. Sua família resumi-se à mãe, separada do marido e moradora do bairro Jardim Rosana, na região do Campo Limpo, zona Sul da capital paulista. Naquela sexta-feira, após passar o dia com dona Rita, o garoto tomou banho próximo às seis horas da tarde e se arrumou para sair. “Ele era muito vaidoso”, revela a mãe. Além da costumeira preocupação com a aparência, a noite era especial: ia ter “Fluxo”, como os meninos do bairro costumam chamar os encontros com colegas para escutar som alto nas ruas e jogar baralho, dominó e sinuca nos bares. Estava calor, por isso todos estariam fora de casa. Brunno pega algum trocado com a mãe para contribuir na compra de uma pizza dali a pouco e sai rumo à diversão.

Mais de duas horas depois, aproximadamente às onze e vinte da noite, ele e outros seis jovens, que estão em um bar da rua Reverendo Peixoto da Silva, são subitamente paralisados por balas certeiras – no caso de Brunno nem tanto–, mas aparentemente sem donos. Cerca de quinze pessoas haviam entrado no recinto, anunciando serem policiais e disparando tiros contra os presentes. Os capuzes não permitiram que os atiradores fossem identificados. Dentre as vítimas, uma é mais conhecida e tem sua morte destacada na mídia:  Dj Lah, Laércio de Souza Grimas, 33 anos. Ele era integrante do grupo de rap Conexão do Morro, que começou a ganhar espaço na cena paulistana no final dos anos 90. Lah teria sido morto por ter ajudado na gravação de um vídeo que comprometia policiais.

Além de Brunno e Lah, foram assassinados naquela noite: Carlos Alexandre Claudino da Silva, 27 anos; Ricardo Genoíno da Silva, 39; João Batista Pereira de Almeida, 34; Edilson Lima Pereira Santos, 27; e Almando Salgado dos Santos Junior, 41. Nenhum deles sabia, mas haviam sido marcados para morrer devido a um contexto complexo, envolvendo o roubo de uma madeireira da região, a gravação e divulgação do tal vídeo mostrando o assassinato de uma morador do bairro causado por policiais militares e a guerra cíclica instaurada no estado entre facções criminosas e a Polícia Militar (PM). O ciclo se explica pelo fato de os acontecimentos de 2012 lembrarem os de maio de 2006, período em que ônibus foram queimados em todo o estado e mais de 490 jovens foram mortos pela polícia, segundo dados publicados no livro “Mães de Maio: do luto à aluta”, lançado em 2011.

A conjuntura fez com que, naqueles dois anos, a morte fosse um destino imposto para muitos civis que não tinham relação com o mundo do crime, mas que se tornaram alvo de grupos de extermínio por estarem supostamente na hora e lugar errados, nas imediações de suas próprias casas nas periferias da cidade. “Eu nunca imaginei que ia acontecer alguma coisa com o meu filho na porta de casa”, diz dona Rita, moradora do Jardim Rosana há 33 anos.

Feijoada

Após o roubo de uma madeireira no Jardim Rosana em dezembro de 2012, a região havia ganhado atenção redobrada da PM. Os policiais queriam encontrar o ladrão e, se não matá-lo, prendê-lo. Redobrada porque, como se não bastasse esse crime para servir de justificativa para a chacina do ano novo, em novembro daquele ano, o vídeo mostrando o assassinato do servente de obras Paulo Batista do Nascimento, vulgo Limão, foi divulgado pelo programa Fantástico da TV Globo. A gravação continha imagens de policiais fardados executando Limão próximo a uma viatura. A vítima foi retirada de sua casa e morta sem que antes tivesse esboçado alguma reação. A revelação do material resultou na prisão de cinco policiais. Os moradores do Jardim Rosana passariam a ser culpados e perseguidos por isso.

Três dias antes da chacina no bar da rua a Reverendo Peixoto da Silva, uma terça-feira, 1º de janeiro de 2013, Brunno caminha próximo à sua casa quando dois policiais o abordam. Ele está com dois colegas. “Eu até fiquei olhando [de longe] aquela abordagem né, já que meu filho não era bandido”, conta dona Rita. Os policiais perguntam aos meninos: “Vocês têm mãe?”. Os garotos afirmam que sim. “Então avisem para as mães de vocês que o cara da 'motinha' e o carro preto vão vir aí à noite fazer uma feijoada e dar para elas”. A feijoada para as mães da comunidade teria ligação com a vida de seus próprias filhos. “Eles avisaram antes, os policia. Toda hora eles subiam lá na rua e cada vez que eles abordavam os meninos eles falavam isso. E tudo isso eles falavam assim: 'ah, vocês gostam de filmar a polícia matando, vocês gostam disso e daquilo...”, lembra Rita.

Interrompido

Nascido em 1996, Brunno completaria 18 anos em 20 de março. “Estava louco para fazer aniversário”, conta a mãe. Em 2012, havia se formado no curso de  Gestão Eletrônica no Senai. Era apaixonado por carros e, com a expertise adquirida e o gosto pelo ramo, chegou a instalar sons em veículos de três policiais que rondavam o bairro. Trabalhava com a parte elétrica de carros e cursava o segundo ano do ensino médio.

No dia de sua morte, acordou às à nove e meia da manhã. Quis acompanhar a mãe, que precisava ir ao município de Embu das Artes para, justamente, arrumar seu carro. Almoçaram por lá. À tarde, por volta das quatro horas, de volta ao Jardim Rosana, Brunno empinou pipa e jogou bola com os amigos. Voltou para casa entre seis e sete horas. Pediu para a mãe lhe preparar um bolo e chocolate. Foi tomar banho. Depois, iria curtir o “Fluxo”. “Estava muito calor, ele suou muito, era gordo. Gostava de andar sempre bem arrumado, bem perfumado, unha feita, cabelo sempre cortadinho”, conta dona Rita.

Às sete e meia da noite, Brunno sai de casa acompanhado da mãe. Caminha pelas ruas do bairro ao lado dela até o bar da rua a Reverendo Peixoto da Silva. “Eu levei ele para o bar e inda falei assim 'filho, amanhã a gente vai sair cedo, então pelo menos umas onze horas, onze e meia você tem que estar em casa.' Ele falou 'tá, então onze horas, onze e meia eu vou embora.' Aí ele ainda pediu dinheiro para mim. Eu dei dinheiro para ele, 20 reais para ele comer pizza, porque eles faziam vaquinha e compravam pizza, Coca-Cola e ficavam ali jogando baralho, ouvindo música. Era uma rua de lazer”.

Às dez e meia, Rita liga para o celular de Brunno: “O bolo está pronto. Você vai vir agora?'. Gordo responde que chegará mais tarde. “Os meninos estão aqui, depois alguém me leva”. Às dez e cinquenta, um amigo do bairro liga para a mãe do garoto. “Ó tia vem para cá, porque a polícia matou todo mundo aqui e matou o Gordão”. Não era bem isso, mas quase. Rita sai de casa desesperada. O bolo de chocolate esfriando à mesa. 

“A  última hora que eu vi o meu filho foi oito horas daquela noite. Depois, eu fui ver ele no caixão, no domingo, na hora do enterro”, diz, chorando. “O Brunno era o único comigo, meu companheiro. Ele era tudo meu, minha vida. Ele não está aqui hoje, mas tinha projetos, sonhos, vontades. Eu tinha sonhos e projetos para o meu filho e eles cortaram tudo isso.”

Primeiro a perna, depois a cabeça

Não fosse a inversão da necessidade pela vontade de matar, a cena dos últimos minutos de vida de Brunno poderia ser comparada a uma caçada animal. Dentre os sete mortos no dia 4 de janeiro, o garoto era o único menor de idade e também foi o último a morrer. Após ter levado um tiro na perna quando do assassinato das outras seis vítimas no bar da rua a Reverendo Peixoto da Silva, Brunno caminhou o mais rápido que pode para se esconder na casa de uma vizinha. O que aconteceu depois foi uma mistura de falta de sorte e ira assassina dos membros do suposto grupo de extermínio.

“Quando eu cheguei perto do bar, estavam já seis mortos lá dentro. Aí a população toda, cheio de policiais, eu desesperada procurando o meu filho. Os meninos falaram 'corre lá em cima, ele está lá na casa da vizinha esperando a senhora”, conta Rita. Brunno havia conseguido ir para a casa de uma vizinha, que prefere não dar entrevistas. Assustada e sem saber quem eram os responsáveis pela chacina ocorrida há poucos minutos, a mulher decide pedir ajuda aos policiais que estavam na redondeza. A intenção era que eles socorressem Brunno. Ao invés disso, conta dona Rita, “ os PMs fardados vieram e judiaram dele”. “Ele já estava agonizando e os policiais judiaram do meu filho. Bateram nele e tiraram a roupa dele dentro da casa da vizinha para ver se ele tinha uma tatuagem, porque eles estavam querendo matar um rapaz de blusa listrada que tinha tatuagem, que era o que tinha roubado a madeireira.”

Antes de constatar que Bruno havia sido espancado pelos policias, quando chegou à cena da chacina, sem saber exatamente o que havia acontecido com seu filho, Rita tenta passar pelo bar para chegar à casa da vizinha, mas é impedida. “Eu dei a volta na rua e minha amiga já veio me procurando e já falou para mim 'corre que puseram ela na viatura sem roupa'. Nossa sem roupa! Quando falou que colocaram ele na viatura meu coração já...”. O garoto foi deixado por policiais no Hospital Campo Limpo sem roupa e sem vida, com seis tiros no corpo, sendo um deles na cabeça. “Mataram o meu filho, dentro da viatura, sabendo que ele não era o ladrão da madeireira”.

“Seu filho já chegou aqui com muitos tiros, então não deu para fazer nada por ele”, escutou Rita de um médico ao chegar no hospital. Ela conta que não pode ver o corpo de Brunno. Durante a madrugada, outras viaturas deixaram cadáveres no Hospital Campo Limpo. Para Rita, parte dos policiais que passaram por ali queria conferir se suas vítimas haviam realmente morrido. “Eles lá no hospital não sabiam que eu era mãe do Brunno, então os policiais falavam um entre o outro 'puta, a gente matou o cara errado, meu. Porra, além de ser gordo ainda era pesado. Puta, matamos o cara errado'”.

Por tudo isso que fizeram

À época do acontecimento da chacina no Jardim Rosana, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, declarou: “É precipitado fazermos qualquer afirmação, mas nenhuma hipótese vai ser descartada. Tudo vai ser investigado com profundidade e rigor até prendermos os criminosos. A polícia está trabalhando com vários indícios.”
Depois das invetigações realizadas pelo Departamento de Homicídio e Proteção à Pessoa da Polícia Civil (DHPP), apesar de nove policiais terem sido acusados pelo crime, quatro continuam impunes. Cinco foram julgados e presos. Após o inquérito ter sido relatado pela 3ª Delegacia de Homicídios Múltiplos de São Paulo, o processo do caso foi encaminhado para o Fórum Criminal da Barra Funda, onde corre em segredo de justiça perante a Primeira Vara do Tribunal do Juri. Segundo o DHPP, a complexidade do caso de Brunno fez com que seu nome encabeçasse o processo no qual ele figura como uma das sete vítimas. O delegado responsável pelo inquérito não quis comentar o caso. Até o fechamento desta reportagem, o promotor que acompanha o caso no Fórum Criminal não foi localizado.

Rita afirma que dois dos policiais que estão soltos foram os que ameaçaram os meninos falando que iam fazer feijoada para as mães. “Segundo os polícia que prende as polícia, a ameaça não era crime. Mas não foi só ameça né, aconteceu!”. A mãe de Bruno também reclama da falta de segurança para que testemunhas possam colaborar com as investigações. “O DHPP queria que eu levasse dez pessoas que viram eles [policiais] assassinando os meninos, que viram eles trocado de roupa. Tudo isso eles querem que a gente leva lá, só que a gente não tem segurança nenhuma. Aí depois eles querem que a gente fala assim na entrevista 'eu estou tendo toda a assistência do DHPP.' Eu não tive nenhuma assistência. Levei as testemunhas num dia e no outro a PM foi [no Jardim Rosana] ameaçar todo mundo.”

Como exemplo do problema está o não depoimento da senhora que socorreu Brunno e o viu ainda vivo, apenas com um tiro na perna. “Ela não quis depor por ter ficado com medo. Os policia xingaram muito ela e ameaçou ela que se ela falasse alguma coisa iria ficar sem o barraco e sem a vida. A população tem medo. Eles [os policiais] são bandidos, são grandes e são muitos. Então é difícil né”, diz Rita. Segundo ela, nem mesmo durante o enterro de Brunno, no dia 6 de janeiro, foi possível ficar tranquila. Policiais foram conferir a cerimônia, sem anunciar a visita. “Gostaria que o DHPP investigasse o que eles foram fazer no enterro do meu filho”.

Sobre o assunto, outro trecho da nota distribuída no ato “Dias das mães sem os filhos” questiona: “Uma vez constatado o abuso, a violência e o excesso por parte do  estado, quem procurar? O próprio estado? Hoje não podemos ficar seguros de que não sofreremos represarias. Exigimos um órgão de denúncia autônomo e eficiente. Hoje, qualquer denúncia de apurada pela própria unidade onde atua o agressor, levando sério risco a toda comunidade e não resultando em nada.”

Coincidência ou não, dias após a chacina, a Secretaria de Segurança Pública do Estado (SSP) proibiu policiais militares de prestar socorro a vítimas de crimes ou pessoas envolvidas em supostos confrontos. Segundo a  SSP, a intençãoda da medida, que gerou polêmica, é garantir atendimento adequado aos feridos e preservar os locais dos crimes para que a perícia e as investigações sejam feitas de forma adequada. No mesmo período, o governo federal estabeleceu uma mudança na forma de registro de homicídios em ocorrências relacionadas a casos em que há confronto com a polícia. Agora, os termos “resistência seguida de morte” ou “auto de resistência” devem ser substituídos por “morte decorrente de intervenção policial” ou “lesão corporal decorrente de intervenção policial”.

Por ser crítica à forma como o DHPP encaminhou a investigação e à falta de punição aos quatro policiais supostamente envolvidos nos assassinatos que estão em liberdade, dona Rita pretende continuar coletando provas de maneira independente. Depois, afirma que procurará um defensor público. “Por mais ruim que os policia sejam, por mais drogados que eles fiquem 24 horas, por mais que eles se divertem enquanto matam, porque é uma diversão matar para eles, no fundo no fundo eles sabem que têm filhos, mãe, mulher, irmão, sobrinhos, uns têm até netos, para pagar por tudo isso que fizeram.”



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