Cena 1: Andréia
As grades da cela se abrem. Andréia recupera os sentidos e a memória das últimas doze horas. Os sinais físicos se resumem à falta dos dentes; foram caindo aos poucos, os restantes ela pôde tirar com as mãos. Um a um, até ter a boca vazia. Não sente dor, não sente o corpo. Há pouco tempo, só sentia ruídos. O raspar das botinas no chão era como estar ao lado de uma turbina. Uma palma soava como um tiro rente ao ouvido. As vozes ecoavam cruzando-se, tão altas que nem as mãos sobre as orelhas podiam abafá-las. Não sabe quanto tempo durou. Mas por alguns instantes, o som era absoluto.
Por isso a dificuldade em compreender o sangue, os dentes e a cela. Depois de uns dias, o olfato era o sentido mais sensível. O cheiro que sente das feridas e da boca machucada, apodrecendo, é sinal de vida e morte conjuntos. Foi preciso muito produto para eliminar o odor.
Por último, a dor física. Começa a sentir seu corpo.
Cena 2: Amélia
29de dezembro de 1972. Amanhece no segundo andar da 36a Delegacia de Polícia de São Paulo. Amélia está nua. Após noite de tortura, continua amarrada na cadeira do dragão. Os braços presos por fios, a cadeira contra as pernas. Está urinada. Os choques em todo o corpo causaram-lhe incontinência e vômitos. Progressivamente, foram aplicados no ânus, na vagina, nos seios, no umbigo e na boca.
Chega o aviso de que as crianças estão à caminho. Primeiro a visita ao pai, em uma sala separada. Logo após, trouxeram Edson e Janaina à sua companhia.
Cena 3: O esclarecimento
São Paulo, 2013. Os últimos preparativos antes do início da sessão. Câmeras a postos – são três de vídeo e três fotográficas. Enquanto repórteres disputam a atenção dos entrevistados, assessores andam de um lado para o outro, parando para cumprimentos e checagem de equipamentos. O público chega aos poucos e se acomoda no auditório da Assembléia Legislativa do Estado. Nas primeiras fileiras, reúnem-se membros e habitués, conhecidos entre si; já estão a par dos procedimentos desta Comissão.
Criada em fevereiro de 2012, a Comissão Estadual da Verdade “Rubens Paiva” complementa os trabalhos do carro-chefe, a Comissão Nacional da Verdade (CNV), instaurada pela Lei no. 12.528, a fim de “efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional.” A CNV investiga violações aos direitos humanos ocorridas no período limitado entre 1946 e 1988.
Trata-se de uma iniciativa sem precedentes. Uma virada na história recente do país, cujo orçamento inicial de 10 milhões tem hoje contribuição adicional do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), de 4,43 milhões, além de campanha publicitária avaliada em 4,5 milhões, em parceria com a Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom). A CNV conta com mais de 70 profissionais, dentre coordenadores, secretários, servidores, consultores, assessores, estagiários, entre outros.
O Brasil foi o último país da América Latina a instituir Comissões da Verdade – órgãos oficiais ou extra-oficiais responsáveis, de modo geral, por estabelecer narrativas autorizadas de violações de direitos humanos praticadas por agentes públicos em momentos históricos, como durante o regime militar no Brasil. Após quase trinta anos do fim da ditadura, casos de tortura, execuções e arbítrios, antes sob negação oficial, vão a público, reconhecidos pelo Estado.
O procedimento é semelhante nas diferentes comissões – nacional, estaduais, municipais, locais. A oitiva de depoimentos é a principal atividade realizada nas audiências públicas para esclarecimento dos casos. Após a coleta de testemunhos, as comissões trabalham internamente para a produção de relatórios e publicação de resultados. A Comissão da Verdade “Rubens Paiva” pretende concluir suas atividades em dezembro de 2014 e é presidida pelo deputado Adriano Diogo (PT).
***
“Seis de maio de dois mil e treze, auditório Teotônio Villela. Está instalada a trigésima sexta audiência pública da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo ‘Rubens Paiva’, para a oitiva de depoimentos sobre o caso de crianças que foram atingidas pela ditadura no Brasil.”, introduziu Adriano Diogo o seminário que duraria cinco dias, com mais de trinta testemunhos.
O ritual prossegue com a leitura de textos de contextualização, lidos por assessores, exibição ocasional de vídeos ou documentários, e, por fim, o convite dos participantes à mesa. O primeiro depoimento é de Cecília Capistrano, neta de David Capistrano e Maria Augusta Capistrano. Ao centro da mesa, Adriano Diogo organiza a agenda e dialoga com os assessores. Com uma das mãos sobre a cadeira ao lado, convida a depoente: “Cecília, senta aqui conosco”. Logo após, convida a segunda participante, Rosana Momente, filha de Orlando Momente: “Rosana Momente está aí na sala? Rosaninha, senta aqui ao lado da Cecília.”
Ora emocionados, ora raivosos, os depoimentos seguem até mesmo com intervalos de humor e anedotas contadas por quem na época era criança. O público faz sinais e expressões de acordo, como se tivessem vivido a mesma situação narrada – muitos dos presentes viveram – e participam ativamente. Por vezes, os ouvintes interagem com a mesa, contribuindo com fatos esquecidos pelas testemunhas.
***
Adriano Diogo pede silêncio e colaboração dos presentes. É a vez do testemunho de Edson e Janaina de Almeida Teles. Eles tinham 4 e 5 anos, respectivamente, quando foram levados para ver os pais torturados.
Cena 4: Filhos de Amélia
Edson estava de costas à cela de Amélia. Ouviu a voz da mãe e virou-se para o reencontro. Por uma janelinha no portão, enxergava um rosto diferente. Não reconhecia quem lhe chamava: “Quem é essa pessoa que tem a voz da minha mãe, o mesmo jeito de se comunicar comigo, mas não é a minha mãe?”
Alguns instantes de estranhamento. Ia e vinha a sensação de conforto. Não tinha como confirmar a identidade de quem estava ali atrás das grades. Nem os nomes ele sabia, e nunca soube. O pai era pai, a mãe era mãe. Por segurança, ninguém tinha nome na família; viviam na clandestinidade.
- Mãe?
Era a única maneira de identificar aquele corpo estranho.
Janaina entrou quando Amélia estava na cadeira do dragão. Após passar pelo pau-de-arara e a palmatória, os choques recebidos amarrada na cadeira a deixaram naquele estado final. A filha tentava beijá-la e abraçá-la, mas ela mal articulava; não podia falar, não podia se mexer. Questionava a si e a Amélia; “por que o pai estava verde e a mãe azul?”
Sem ter as respostas na hora sobre as marcas e os hematomas nos corpos dos pais, Janaina voltou à companhia do casal policial que a trouxe de casa e saiu.
Cena 5: Filho de Andréia
Leandro tinha quatro anos quando viu a mãe ser torturada. Sentado em um banco de cimento comprido; seus pés mal alcançavam o chão. Foi levado junto com Andreia e assistiu tudo frente a frente sem dizer nada. Cerca de dois metros separavam o banco gélido e o sofá ocupado pela mãe, cercada por mais cinco homens.
Depois dos primeiros procedimentos, Andréia foi levada por alguns instantes. Leandro permaneceu sentado. Quando ela retornou, já estava diferente, agia de maneira estranha, como nunca tinha visto. Um homem fardado se aproximou, pegou Leandro pelas mãos e lhe disse que era hora de ir.
Correu então na direção de Andréia, tirou o casaco azul que vestia. Passou-o com dificuldade pela cabeça machucada e deixou apoiado sobre os ombros da mãe, em torno do pescoço. Mesmo estando desfigurada, irreconhecível, Leandro não queria que passasse frio. Voltou à companhia do homem que lhe esperava na porta e saiu.
Cena 6: O crime de Amélia
Amélia e Cesar de Almeida Teles eram militantes do Partido Comunista do Brasil (PCB) em 1972. O casal coordenava a gráfica do partido clandestinamente e prestava apoio a guerrilheiros do Araguaia. Já eram alvo do regime quando ocorreu a prisão.
Foram levados no dia 28 de dezembro, da casa na Vila Mariana, e passaram a noite na 36ª Delegacia de Polícia, na rua Tutóia, onde funcionava a Operação Bandeirantes. Os militares queriam saber quem era o guerrilheiro vindo do Araguaia estabelecer contato com o PCB em São Paulo. Essa pessoa era Criméia de Almeida, irmã de Amélia, escondida na casa do casal. As sessões de tortura se iniciaram na mesma noite e duraram até o dia seguinte.
Na manhã de 29 de dezembro, Edson assistia à Vila Sésamo na televisão quando tocou a campainha. A irmã atendeu a porta, e foi abordada por um casal da polícia. A tia Criméia mandou as duas crianças para um quarto nos fundos, enquanto conversava com os policiais. Logo começou a gritaria.
Edson e Janaina foram colocados no camburão, repleto de armas, em direção à delegacia.
Cena 7: O crime de Andréia
Andrelina Amélia Ferreira, conhecida como Andréia MF, foi presa por um crime que não cometeu. Em 1995, desafiou a autoridade e se negou a colaborar. Primeiro, acusou um morador do bairro, sem saber que se trava de um policial aposentado, por abuso sexual contra a filha mais nova de uma vizinha. Mas o senhor, que aparentava ter saúde frágil, ante a acusação de Andréia em sua própria casa, a enfrentou com uma arma e lhe fez ameaças:
- Eu vou te matar, você sabe. E não tem polícia aqui. Você sabe quem eu sou? Sou PM aposentado. Eu sou avô do sargento Rubens*. Você tá ferrada. Não devia ter se metido com isso. Eu vou dizer que você invadiu. Meu neto é sargento.
Andréia, presa na adolescência por furto e carência, já sabia o seu destino. Algumas horas depois, oito viaturas cercaram seu barraco. Dentro de uma delas, o senhor com uma bengala e um cobertor sobre as costas lhe apontava e fazia gestos de comando aos companheiros.
Andréia e o filho foram colocados no camburão em direção à delegacia.
Cena do crime
“A primeira dói. A primeira, a segunda e a terceira doem. Depois acostuma. Quando o sangue está quente, a gente só pede pra morrer.” Andréia MF
De um canto da sala, Andréia vê Leandro parado em sua frente, a poucos metros de distância. A imagem do filho sentado – com as duas mãos apoiadas na beirada do banco, como se fosse pegar um impulso e saltar em sua direção – é interrompida pelas pancadas e a ausência. Tenta focar no menino, mas logo perde os sentidos, após um golpe com o cabo da 38 na boca. A cabeça é empurrada para trás; os dentes para dentro da gengiva. Antes de voltar a focar novamente em Leandro, outro baque. As coronhadas não aliviam seu rosto. Os dentes começam a cair.
Lembra dos borrachões e porretes da prisão, mas eles não se comparam ao esforço em vão de manter os olhos no filho. Para todos os lados, a cabeça é desviada a cada movimento dos policiais.
O sargento está na sala e a ordem é sempre a mesma: assinar uma confissão de tentativa de latrocínio contra seu avô. O escrivão já sabe que Artigo jogar. 157, parágrafo II. Andréia resiste. Assinar a confissão é assinar sua sentença de morte. Nada tenta contra ninguém na sala, mas não aceita a ordem imposta.
Depois de algumas tentativas, tantos outros golpes e mais resistência, é levada ao hospital vizinho. Não é preciso viatura ou ambulância. É levada pelos braços, arrastada por dois homens. Leandro, seu filho, permanece sentado.
Os enfermeiros já sabem do que se trata. Ao verem chegando uma indisciplinada puxada pelos braços, perguntam de antemão:
- É pra aplicar aquela lá?
O sinal positivo do homem que lhe acompanha autoriza a injeção. Direto na veia, a droga produz efeitos intensos. Perde novamente os sentidos. Logo após, ouve a vibração aguda e um estrondo. Tocar seu próprio corpo ou raspar as unhas contra a pele são um tormento. O som é insuportável. A cada movimento criam-se ruídos. Esgotada, assina a confissão e é presa.
Recebe o aviso malicioso do sargento: “Ó, vou levar seu filho.” Antes da prisão, Leandro se aproxima com o casaco nas mãos. Ele fita o rosto da mãe deformado e a veste até o pescoço. O sargento então puxa o menino pelos braços em direção à saída.
Cena Final: todas as cenas se repetem
No mesmo ano em que Amélia, Edson e Janaina Teles depuseram na Comissão da Verdade, Leandro foi internado no centro de psiquiatria do Hospital Municipal Irmã Dulce, depois de ficar detido por um ano e oito meses no CDP da Praia Grande. Andréia foi absolvida da acusação do ex-PM feita em 1995, após o depoimento de policiais que participaram da ação e o testemunho da própria criança abusada para a juíza. Por essa falsa acusação, foi torturada e passou seis meses presa injustamente. Desde que saiu da prisão, há 18 anos, trabalha, segundo sua própria definição, como militante e revolucionária. Faz visitas a centros de detenção, organiza movimentos de familiares de presos e denuncia maus tratos em cadeias do litoral de São Paulo.
Prefere acreditar que não tenha sido sua militância a razão para a detenção de seu filho, em uma festa após o expediente, portando duas cápsulas e meia de drogas. Usuário foi enquadrado como traficante. Leandro não sabe dizer o que aconteceu na prisão. E não pode falar hoje sobre o assunto. Vive medicado por mais de quinze tipos diferentes de droga; carrega consigo um saco transparente com cartelas de comprimidos receitados pelo psiquiatra.
Leandro não conversa e não consegue manter o foco. Anda pela casa desnorteado, desde que voltou do hospital, em abril de 2013. No laudo médico, são apontados distúrbios causados por trauma e violência. Quando saiu da prisão, não reconhecia os familiares e tinha surtos brutais. A mesma pessoa presente ativamente nos eventos promovidos pela mãe nos últimos anos, agora articula com dificuldade, tem crises nervosas, tiques esporádicos e espasmos freqüentes. “É como se o Estado tivesse prendido o meu filho e devolvido um ano e oito meses depois outra pessoa. Eu queria que o Estado desse meu filho de volta”, diz Andréia.
***
A prática de tortura é disseminada e sistemática no Brasil. O relatório do Subcomitê de Prevenção à Tortura (SPT) das Nações Unidas, divulgado em 2012, registra casos tais quais os de Andréia e Leandro. Após visitas a delegacias, presídios, centros de detenção juvenis e instituições psiquiátricas, foram registradas denúncias consistentes de tortura e de maus-tratos contra presos e suspeitos, incluindo crianças e adolescentes. Esses atos foram descritos pelos entrevistados como violência gratuita, como forma de punição, para extrair confissões e também como meio de extorsão, quando sob custódia policial. As visitas foram feitas em Goiás, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo, em setembro de 2011.
Segundo a Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo, nos últimos dez anos foram registradas 3630 denúncias de abuso de autoridade, 910 de ameaças e 1778 de agressões e tortura, por parte das polícias civil e militar. Mas o relatório do SPT questiona ainda os mecanismos de funcionamento das ouvidorias e corregedorias de polícia. Segundo o relatório, esses órgãos não possuem capacidade investigativa própria e dependem de inquéritos conduzidos por seus próprios agentes, o que causa parcialidade e omissões nos inquéritos.
***
“Queria eu ser ouvida”; Andréia se encanta com a ideia das Comissões da Verdade. Admira quem hoje levanta a voz contra a tortura e as violações cometidas há anos, até então sob sigilo e anonimato. Mas, tão distante da realidade e dos propósitos das Comissões em vigor atualmente, lamenta a falta de acesso a recursos semelhantes. Queria mesmo era falar a uma Comissão um dia e ver os crimes cometidos após 1988, em plena democracia, também reconhecidos e condenados.
Quando lembra do que aconteceu há 18 anos na delegacia de polícia, Andréia insiste na idéia de que a violência praticada pelo Estado é contínua e impune. Atingiu mulheres há 40 anos, atinge a ela, seus filhos, e atingirá seus netos. As cenas se repetem: “As histórias são as mesmas, só muda o personagem. Algumas pessoas dão a sorte de sobreviver, outras não”.