Cena 1. Um telefone toca. Com palavras atropeladas, uma voz nervosa estava prestes a fazer uma grande revelação. Uma denúncia anônima sobre evasão de divisas, lavagem de dinheiro, crimes financeiros e doações clandestinas a políticos envolvendo executivos da construtora Camargo Corrêa chega aos ouvidos da Polícia Federal. Escutas telefônicas são autorizadas, e essa poderia ser uma de suas mais espetaculares missões.
Cena 2. Terça-feira, dia 5 de abril de 2011. A ministra Maria Theresa Assis de Moura se prepara, ajeita os fios de seu corte chanel grisalho, lê e relê seu papel. No centro do palco, um púlpito; a ministra se aproxima do microfone e diz:
- O Superior Tribunal de Justiça anula as provas obtidas na Operação Castelo de Areia.
Flashes. Perguntas. Confusão.
- Tudo o que a Polícia Federal e a Procuradoria da República construíram foi declarado ilegal.
A ministra sai triunfante sem olhar para trás. Entram figurões envolvidos no escândalo - Michel Temer, Gilberto Kassab e José Arruda respiram aliviados. Entram os advogados da Camargo Correia, que comemoram mais uma construção bem sucedida: um muro de contenção, cimentado pelo silêncio.
O Castelo de Areia desmoronou.
Pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, não é possível autorizar quebra de sigilo telefônico ou bancário somente com base em informações obtidas por meio de denúncia anônima. As três ações penais, a ação por improbidade e os 32 procedimentos de investigação resultantes da operação foram enterrados na areia.
“Perdeu-se a chance de pegar os grandes empreiteiros, a turma do Dantas, porque o processo foi a anulado”, diz o promotor do Ministério Público há mais de 20 anos, José Carlos Blat. “O que fez o delegado e o Ministério Público Federal? Denúncia anônima e interceptação telefônica. Pode? Não pode”.
Pela Constituição, a interceptação de dados bancários ou telefônicos sem fundamento é uma violação grave à privacidade das pessoas. “No Brasil se instituiu a Grampolândia, o que não pode existir num Estado de direito; isso torna o próprio Estado um criminoso”. Para se afrontar direitos constitucionais, uma denúncia sem rosto não basta.
“Certos crimes precisam de vítimas para existir”, diz o ouvidor do Ministério Público de São Paulo, Fernando José Marques. Em suas gavetas, estão inúmeros casos arquivados por falta de consistência. Na sua caixa de entrada também. Segundo o ouvidor, mais de 90% das denúncias que recebe, cerca de mil por mês, chegam por e-mail.
É preciso ter nome, RG, CPF, endereço. Uma vítima tem que ter rosto. Não pode se perder na multidão, porque sem corpo não existe assassinato, sem gay agredido não existe homofobia e sem negro humilhado não existe racismo. Se a identidade do agredido não existe, o crime também não, e qualquer prova levantada por investigação é inconstitucional.
Uma maneira de driblar essa situação é a denúncia com pedido de sigilo. Quase como uma denúncia anônima, a vítima se identifica apenas para o ouvidor do MP. Se for necessário, ele passa os dados para o promotor do caso. Quando há esse tipo de identificação, a Ouvidoria se compromete a dar um parecer em até 30 dias. No entanto, o ouvidor Fernando José Marques afirma que ninguém fica mais de cinco dias sem resposta.
O receio ainda é grande em se expor. As vítimas e testemunhas enfrentam conflitos internos, pois temem represálias e supõem descaso por parte das autoridades. “O anonimato existe porque as pessoas muitas vezes não confiam no aparato estatal, têm desconfiança da polícia”, afirma Blat.
Marques, quinto irmão de uma família de oito filhos, de pai e avô policiais, jura de pé junto que lê todas as denúncias e reclamações que chegam por carta, formulário, e-mail ou telefone. Promete sigilo total das identidades quando solicitado, guarda com ele mesmo os contatos.
No Ministério Público há 40 anos, ele sabe que funcionários de promotorias, principalmente em cidades do interior, vazam as informações. “Geralmente, eu mesmo guardo os dados”, diz. “Faço isso para evitar que o sigilo seja quebrado não pelo promotor, mas pela promotoria”.
Só em 2011, ano de criação da Ouvidoria do MP de São Paulo e da Operação Castelo de Areia, o MP paulista recebeu cerca de 3 mil denúncias, das quais 1,61% eram anônimas e 2,75% sigilosas. O ouvidor, porém, relembra: “a denúncia anônima ou sigilosa não se basta, ela dá início a uma investigação”. Um bom lembrete para quem participou da Castelo de Areia.
Fim do primeiro ato.
Cena 3. O coronel Rui Cesar Melo, comandante-geral do 3º Batalhão de Choque de São Paulo, recebe ordens do Secretário de Segurança Pública e convoca o tenente Fabio Paganotto Carvalho. O comandante explica ao tenente que um preso está disposto a infiltrar dois policiais em uma reunião do Primeiro Comando da Capital (PCC) na zona norte de São Paulo.
Cena 4. No palco, o ladrão e participante do PCC, Fernando Henrique Rodrigues Batista, conhecido como Chacal, que se propôs a colaborar mediante a promessa de ter benefícios no sistema carcerário. Junto dele, dois policiais disfarçados de bandidos que acompanhavam o detento retirado da cadeia. Durante a reunião, toca o telefone do policial 1:
- Alô. Não, mano, tudo certo. Valeu cara, é isso aê. Certo... Positivo.
O silêncio toma conta da sala. Todos se entreolham, perplexos.
- Tu é meganha?! Tu é meganha, caralho?!
- Não, não... negativo!
Chacal morre e os dois policiais ficam feridos.
“O Brasil não se preparou para a infiltração de agentes”, diz José Carlos Blat. Quando os policiais fingem ser desconhecidos para identificar criminosos, fica claro que a Polícia brasileira ainda não entendeu que é preciso mais do que conhecimento policial para realizar infiltrações.
“Nos Estados Unidos, desde a década de 20 existem agentes especiais que jamais estiveram entre policiais no dia a dia”, diz Blat. “Nossos policiais não podem ser infiltrados porque não têm o treinamento suficiente, carregam vício de linguagem”, observa. “Eu reconheço PM a cinco quilômetros de distância; é ridículo.”
É recorrente, além disso, bandidos solicitarem o “batismo de fogo”, a prova dos 9 para atestar que o novo compadre não é PM: “Vamos ver se você é mala mesmo: mata o cara aí!”
É por isso que José Carlos, promotor responsável por casos famosos como a “máfia dos fiscais”, é um apaixonado por interceptações ambientais. “A infiltração é deixada de lado por diversos problemas que pode dar”, diz. “Se o policial é descoberto no meio de uma organização criminosa, você acabou de decretar a pena de morte dele”.
Em suas operações com agentes do Gaeco, onde atuou de 1998 a 2004, o promotor utilizava microfones, microcâmeras e outros aparelhos. “É importante buscar mais registros do que só a palavra da testemunha”, diz. “Se mostramos um áudio ou um vídeo colorido de altíssima resolução, o juiz vai dizer que não é? Eu gosto de tecnologia”.
Cena 5. Blat participa de uma operação para procurar mercadorias contrabandeadas em um depósito abandonado. Os policiais federais, liderando o grupo, apontam o corredor à esquerda. O celular do promotor toca:
- Eles vão dizer que a mercadoria está à esquerda. Vá para a direita, onde você vai encontrar uma parede que na verdade é um fundo falso. Atrás dela há um elevador. Lá, você vai encontrar as mercadorias.
E desliga. O promotor, despretensiosamente, sugere o novo caminho para os homens, já impacientes.
- Não, já procuramos por aí e não encontramos!
Blat insiste. As mercadorias, avaliadas em 150 milhões de dólares, são encontradas. Aqueles policiais tinham seus nomes na folha de pagamento do maior contrabandista do Brasil, Law Kin Chong. Todos foram presos, e encerra-se a operação que ficou conhecida como CPI da Pirataria. “Até hoje, não sei de quem foi aquela ligação.”
Cena 6. Soraia Patrícia da Silva respira fundo e, finalmente, toma uma decisão.
- Alô? Eu gostaria de fazer uma denúncia.
Ela estava montando uma academia de ginástica na Rua Augusta, em São Paulo, quando foi procurada por dois fiscais de Pinheiros. “Você não vai abrir isso aqui. Se não pagar uma grana pra nós, você não vai abrir”. E assim começou a operação que viria a ser uma das maiores investigações do Ministério Público paulista – a Máfia dos Fiscais. 70% da prefeitura de São Paulo sob investigação, mais de 600 condenações, três vereadores e um deputado estadual cassados, mais de mil funcionários públicos demitidos ou afastados de seus cargos.
O esquema foi descoberto em 1998, durante a gestão ex-prefeito Celso Pitta. A partir da denúncia de Soraia Patrícia, prendeu-se o primeiro fiscal. Com ele, foi apreendida uma agenda com todos os nomes daqueles que participavam da máfia, o que deu início à operação. Liderados por Georges Marcelo Eivazian, assessor do subprefeito da Mooca, os fiscais conseguiram arrecadar, em pouco mais de um ano, quase R$16 milhões cobrando propina de ambulantes e camelôs na zona leste de São Paulo. A maior investigação criminal que São Paulo já viu, liderada pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), foi bem sucedida.
Soraia Patrícia é, na opinião do promotor, uma mulher de muita coragem. Mas um exceção. “As pessoas não procuram o Ministério Público por serem santas ou porque carregam a bandeira da cidadania”, dispara Blat. Vinganças, rancor e traições são grandes motivações para fazer uma denúncia. A promotoria, portanto, vale-se da desconfiança. E o mesmo acontece do outro lado da sociedade. “O anonimato existe porque as pessoas não confiam no aparato do Estado”.
Nessa relação dúbia, na qual ambos os lados se colocam em risco, o lado da justiça não pode se esconder. Não é de se estranhar, portanto, os louros que Blat sente ostentar. “Sou um sobrevivente na guerra contra o crime organizado”.
“De anônimo, não tenho nada”.
Fim do segundo ato.
Cena 7. Noite regada a cerveja. Bar da esquina com alguns gatos pingados, os mesmos personagens ávidos que, num ritual semirreligioso, contam as mesmas piadas, choram as mesmas dores e tomam a mesma quantidade de chopp toda semana. O dono do bar tudo vê e tudo observa, a todos chama pelo nome, já parte integrante do cenário, camuflado naquele retrato tão visceral da comunidade. De repente, um som estrondoso corta o ambiente. Um corpo tomba, o vermelho rompe. O rapaz da camisa listrada fora atingido.
Cena 8. O dono que viu tudo grita.
-Socorro! Socorro! Chamem a Polícia! Por que você fez isso?!
O assassino é apenas um rosto; mas um rosto que o fitara. Seus olhos se encontraram por milésimos de segundo, o suficiente para selar um acordo: a vida como ela é por um silêncio; o relato por uma sentença de morte. Ele o perseguiria... e o encontraria. As palavras pesariam por sempre em seus ombros. Livrar-se delas implicaria trocar vida; perder o bar, perder o lar.
Perdeu tudo porque sabia demais.
Vítimas e testemunhas que estejam ameaçadas em função de colaborar com a Justiça criminal, seja no âmbito do inquérito policial, fase de investigação, ou na fase do processo em si, podem caso desejem trocar seu testemunho por proteção.
Essa proteção, no entanto, tem duas etapas. A primeira é a ostensiva, a que aparece nos filmes e por vezes nos telejornais – a ampla e incisiva escolta da Polícia, seja militar ou civil, no momento de prestar o depoimento. Na maioria das vezes, as testemunhas ameaçadas são justamente as peças chave, que possuem o relato crucial para a elucidação do caso. As pessoas que as ameaçaram certamente estarão naquele local, o local dos fatos -- o que demanda a proteção esfregada na cara, para todo mundo ver.
No entanto, escolta não basta, polícia 24 horas por dia não basta. Isso não livra a testemunha de ameaças, nem a deixa viver, trabalhar, se relacionar. Ela precisa de proteção velada, silenciosa. Precisa mudar de casa, de cidade, de amigos e, às vezes, até de nome. Precisa começar do zero, num processo de ressocialização, para que possa reconstruir sua vida longe das amarras que a fariam ser encontrada para acerto de contas. Tudo isso no mais absoluto sigilo.
Desde 1999, uma lei federal instituiu no Brasil a coordenacão de um programa de proteção a vítimas e testemunhas, ligado à Secretaria de Direitos Humanos, permitindo que as unidades da Federação pudessem criar o seu próprio – o que hoje acontece em 19 Estados. Vítimas residentes em Estados sem essa ferramenta podem recorrer a Brasília, que as encaminharão para um dos programas existentes.
O maior de todos é o de São Paulo – o Provita SP, programa que mais investe na proteção de vítimas – são cerca de cinco milhões por ano – e o que protege o maior número de pessoas no País. De 1999 a 2002, foram protegidas 1.957 pessoas, entre vítimas e seus familiares, em 841 casos distintos. Em 2012, entraram no programa 44 novas pessoas, além de outras 40 cuja proteção foi continuada.
A duração do programa é de dois anos, podendo ser estendida dependendo do caso. Tanto o ingresso quanto a saída do programa são voluntários. Ele é indicado às vítimas e testemunhas pelo Ministério Público ou pela Polícia Civil, mas é sempre uma escolha – ninguém pode ser obrigado a ser protegido.
“Uma vez protegida, a pessoa é basicamente levada a um local sigiloso, que pode ser em qualquer lugar do país. O sigilo é tão caro para programa porque é o que o faz funcionar”, diz o advogado Felipe Moreira, secretário executivo e coordenador do Provita SP.
Uma vez em outro local considerado seguro, a testemunha iniciará um processo de ressocialização com os recursos do Estado e sob o acompanhamento de um advogado, uma assistente social e um psicólogo. A pessoa terá uma nova casa. Se não possuir qualificação profissional, o Estado pagará um curso técnico. Seus filhos irão à escola.
“Agora, enquanto a gente está conversando, existem cerca de 120 pessoas protegidas que estão procurando emprego, tendo filhos, namorando... reconstruindo a sua vida em outro lugar”, diz Felipe.
O coordenador é novo, podendo ser facilmente confundido com um estudante ou jovem profissional, com elementos contrastantes como a camisa social aprumada e uma pulseira de cordas vermelha mais despojada no punho. Mas suas palavras pausadas e marcadas enfatizam o peso da responsabilidade sobre seus ombros.
“É um programa caro porque custa a vida da pessoa em todo o tempo. Não é um programa de balcão, em que a pessoa chega, faz um pedido, recebe e vai embora. É preciso cuidar dela por dois anos todos os dias”, diz.
Felipe aponta que, nos últimos sete ou oito anos, foi possível notar uma significativa mudança no perfil das pessoas protegidas. Anteriormente, a maioria das testemunhas não tinha qualquer envolvimento com a criminalidade. “É o típico caso do cara do bar que vê um homicídio de um amigo ou de um parente na comunidade onde ele mora e resolve testemunhar por conta dessa relação de amizade, dizendo que a pessoa foi assassinada por aquele determinado grupo”.
Já hoje, a maioria dos colaboradores está mais ligada a um perfil criminoso – uma pessoa que faz ou já fez parte do crime de alguma forma e, por algum desentendimento dentro das facções, se torna um alvo naquele grupo. A partir daí, procura o Ministério Público ou a Polícia buscando ajuda, pois sabe que não há escapatória – ela vai ser encontrada por seus antigos colegas.
No entanto, não basta estar ameaçado; é preciso colaborar com a Justiça para receber a proteção. Felipe conta que uma situação que já aconteceu algumas vezes são homens terem procurado ajuda por sair com a mulher do traficante. Esse motivo, contudo, não é um fator de ingresso no programa. Nesses casos, a instituição aconselha as pessoas a fazer um boletim de ocorrência, pegar suas coisas e mudar de local. “A gente vê que existe uma ética da criminalidade; sob um olhar mais sociológico, o crime não admite certas condutas. Assim como atentados contra crianças, por exemplo, a pedofilia é julgada com pena de morte pelo ‘tribunal do crime’”.
O Provita se orgulha em dizer que, de 1999 até hoje, ninguém morreu dentro do programa. Felipe afirma que, após o egresso, não há condições de a organização realizar o acompanhamento de cada testemunha, mas que a orientação é que a pessoa nunca volte ao local original. “Infelizmente, aquele lugar nunca mais vai ser seguro para ela”, aponta o coordenador. No entanto, a escolha fica sempre a cargo da testemunha.
Felipe não cita casos concretos, nem com nomes trocados, nem com cidades trocadas; até os hipotéticos são muito bem resguardados. É sempre o mais genérico possível. A palavra sigilo emerge ao menos dez vezes durante a conversa de pouco mais de uma hora no prédio do Ministério Público, situado no Pateo do Colégio. Mas é para ser assim, e rapidamente você entende o porquê: o sigilo é a chave para que o programa seja bem-sucedido.
O pé atrás com a mídia é quase palpável, mas compreensível. “O que mais atrapalha é a insistência para que o sigilo seja quebrado, pedidos de entrevista com as testemunhas... Eu não vejo responsabilidade da mídia nesse aspecto. Uma manchete não é só uma manchete”, afirma. Ele aponta que tanto dizer que uma pessoa está no programa como dizer que não está coloca em risco a vida de pessoas, seja quem trabalha ou quem está protegido.
“O nome pode acabar vindo à tona, mas a ideia é que o procedimento e o novo local de proteção nunca seja divulgado. O caso de sucesso é o que não aparece, o que fica invisível. É um sucesso que nunca vai ser exaltado, porque a exaltação é a quebra do sucesso.”
Felipe também questiona a crítica da opinião pública de que o programa é uma prisão para as pessoas, que afirmam que o bandido que deveria estar segregado, e a testemunha, em tranquilidade no seu lar. Ele concorda, mas acha que isso é simplificar a questão. “Espero que um dia o programa não precise existir, mas não é o que ocorre na prática. Infelizmente, a única forma de você proteger essa pessoa é tirando ela daquele local habitual, onde está inserida.”
As críticas não ficam restritas aos jornalistas. O coordenador afirma que já houve autoridades, como agentes do Ministério Público, que insistiram para ter acesso às informações, que não lhes eram necessárias; mas estas lhe foram negadas. “Não há nenhum dever do programa, do Executivo, de dar esse tipo de informação, porque ela é inútil, mesmo que se trate de uma autoridade do Estado.”
Hoje, o dono do bar não participa mais do ritual semirreligioso, não ouve mais as mesmas piadas, não escuta mais as mesmas dores e nem vende a mesma quantidade de chopps todas as semanas. Ele está longe, não é mais o dono do bar. O alívio só veio com o relato às autoridades. Mas, proteção exige colaboração. Foi preciso perder-se em meio à multidão. Foi preciso voltar a ser mais um.
[cena à parte]
Estava para acontecer a maior ação de prisão da história do Brasil. A fina garoa e o tempo frio não impediam os mais de 300 policiais de avançarem em direção à pequena casa no interior de Ibiúna, São Paulo. Lá dentro, os 800 estudantes estavam munidos de livros, cigarros e ideias perigosas. Lá fora, todos com armamento pesado: revólveres e metralhadoras. Exceto um policial. “Quem usa armas brancas é muito mais intrépido”, comenta Herwin de Barros, 45 anos depois. “Psicologicamente, é muito pior”. Foi assim que o policial surpreendeu Zé Dirceu, então presidente da União Nacional dos Estudantes: armado de um pedaço de pau e um ancinho.
Tido como mentor do maior esquema de corrupção já denunciado, o estudante preso naquele dia, que viria a ser deputado federal do Partido dos Trabalhadores e Ministro-chefe da Casa Civil, foi maldito e xingado por milhares de brasileiros. Mal sabem eles que aquele policial, armado de um ancinho, teve a vida de Zé Dirceu nas mãos. E a poupou. “Não cumpri as ordens de ‘interrogá-lo radicalmente’. Deixei-o na delegacia, pulei a janela e só reapareci três dias depois”.
Para Herwin, policial desde os 19 anos, em 1964 aconteceu uma mudança de regime, e não golpe. Os estudantes eram tumultuadores da ordem. E ele, como funcionário, não estava indo contra ninguém, apenas cumprindo sua função pública. “Mas não atendi àquela ordem porque ela era ilegal”, diz “Brucutu” (apelido dado pelos marginais que já prendera). “Minha ideologia é meu afeto. Pode escrever”.