Do Outro Lado da Linha, Por um Fio
Por Renata Hirota - Edição Anônimos - junho de 2013

“Você se lembra daquela menina que estava sentada no parapeito da janela, pronta para pular?”, disse a voz pelo telefone. Claro que sim. Ela havia ligado há algumas semanas, falando que estava triste e ia se matar. Só tinha ligado pra se despedir. Ele tentava ganhar tempo, conversava, mas ela só ria: “Não adianta, eu sei o que você vai me falar agora. Eu sei como vocês são, não adianta não”. E, de verdade, parecia mesmo adivinhar o que ia ser a próxima frase, cada tentativa de prolongar a conversa. No fim, depois de uns quarenta e cinco minutos no telefone, a linha caiu – e ficou sem saber se a menina também foi junto.

“Eu estou internada num hospital psiquiátrico”, começou a contar. E disse que a conversa daquele dia tinha sido muito boa, interessante. E explicou que, à noite, às vezes conseguia escapar do quarto e ia para o corredor do hospital, onde tinha um telefone. Foi assim que ela ligou para o CVV de madrugada e conversou com aquele voluntário de plantão, que também (não por acaso) era jornalista. Ficaram conversando mais de uma hora – enquanto isso, às vezes outras chamadas entravam, mas não dava para desligar e atender – e ela contou que estava melhor, obrigada, e gostou de ter conversado aquele dia. Não parecia a atitude de uma suicida, apesar de dar pra perceber que ela tinha, sim, algum problema. E se a conversa ajudava de alguma forma, ótimo.

E assim ia, madrugada adentro, da meia noite às seis da manhã: com o telefone tocando e histórias e mais histórias de pessoas que, na maioria das vezes, só se sentiam solitárias, e queriam alguém para desabafar e contar seus problemas, e uma voz amiga para consolá-las. Velhinhas viúvas que sentiam falta do marido e não conseguiam se acostumar à nova vida de xícaras vazias e refeições individuais, atores homossexuais que não tinham com quem falar e que muitas vezes – por que não? – flertavam com os voluntários, porque afinal quem não arrisca... Nem o fato de o plantonista ser um mero ouvinte impedia um “querido” aqui e um convite ali.

O Centro de Valorização da Vida salva vidas?

Para explicar o CVV, ou Centro de Valorização da Vida, voltemos ao século XX, à época da pós-II Guerra Mundial. Na Inglaterra, o reverendo Chad Varah já tinha uma preocupação com a queståo do suicídio desde o seu primeiro serviço religioso em 1935, o funeral de uma garota que se havia matado, por pensar que tinha algum tipo de doença sexualmente transmissível quando na realidade tinha menstruado. Mais tarde, percebendo o crescimento desses casos, e, após analisar o problema, criou em 1953 o Samaritans, um canal telefônico com a intenção de auxiliar pessoas desesperadas e ajudar na prevenção de suicídios. O CVV é uma herança dessa organização, que depois teve seu perfil modificado para um serviço de apoio emocional, ampliando mais seu foco. Em todo o mundo, há instituições similares que compõem o Befrienders Worldwide, com o objetivo de escutar as pessoas, sem julgar ou dizer o que devem fazer. E, no fim da linha, esse pequeno gesto pode ser a diferença entre a vida e a morte. Obviamente, as ligações são completamente anônimas e confidenciais.

“Olha, cara, nem sei quem você é, pode ser até um tira dando uma de samaritano, mas se for é até bom. Acho que estou ficando louco. As coisas que eu vejo não estão me deixando dormir. Não tenho coragem de contar para minha mulher. Quando olho as crianças dormindo me dá um medo muito grande. Já pensei em pegar todo mundo e ir para muito longe, sair de noite, escondido, mas acho isso covardia.” Era outra noite igual às outras na rua Abolição, único posto que existia em São Paulo na época. Aquele policial ligou desesperado, com tantas frustações e desilusões que não parava de falar, um problema atrás do outro. “Eu vejo colega viciado recebendo droga e grana de bandido, extorquindo famílias que não tem o que comer, delegado comandando quadrilha, gente apanhando nos camburões... Todo dia você vê isso e faz de conta que não vê, porque senão pode amanhecer transferido para o IML, vai mexer com defunto sem luva. Podem até desaparecer com você num acidente. Alguém te apaga e fica por isso mesmo.”

Já eram mais de duas da manhã – quando quem não consegue dormir por causa do desespero resolve ligar e deabafar, perguntar o que fazer. Mas essa não é a função desse tipo de serviço, apesar de muita gente chegar nessas instituições com a intenção, às vezes nem tão consciente, de “doutrinar”, ao mesmo tempo misturada com uma espécie de síndrome de super homem. “O senhor me desculpe, é que não tenho nem com quem falar. Meu delegado é um bêbado sujo que não cuida nem da sua higiene pessoal.” O jornalista voluntário continuava ouvindo atentamente, interferindo pouco, sabendo que o que tinha de fazer era escutar e deixar o cara extravasar. Às vezes anotava uma ou outra coisa, para lembrar depois na hora de escrever; afinal, tinha se metido nessa confusão exatamente para isso: escrever uma história, ou até mais, sobre essas pessoas que escolhiam abrir seus corações para completos desconhecidos, seja no desespero de um ato suicida ou na tentativa de encontrar algum consolo numa vida solitária. Mas nem o relato do policial, nem o da menina do hospital psiquiátrico, nem nenhuma outra história foi publicada. No fim, elas foram se acumulando no papel, e entrou também um dilema ético: a exposição dessas pessoas, mesmo que não identificadas, quebrava a condição de anonimato que a organização garantia, tanto por parte do voluntário quanto por parte de quem liga? O CVV perderia credibilidade por ter permitido que um jornalista transformasse dramas pessoais em matérias?

E o policial continuava: “Não somos bem vistos por ninguém. Nas favelas, eles te jogam pedra, te dão tiro. A gente não tem horário pra comer, pra dormir, pra sair com a família.” O plantonista tenta ajudar, diz que entende, que a vida é dura mesmo. E ele: “Tenho medo de um dia não aguentar mais e virar bandido também, porque nossa vida é muito próxima da do bandido. Mas fora da polícia, eu não sei fazer mais nada. No meu lugar, o que é que o senhor faria?” Essa era a pergunta mais difícil de todas, porque era impossível responder. E mesmo que desse para responder, simplesmente não podia – nenhum voluntário deveria encorajar quem ligava a tomar algum tipo de decisão: sua função é apenas a de escutar e confortar essas pessoas na hora do desespero. E nada mais.

Depois de explicar, insistir e explicar de novo, ele agradece, se despede, e vai dormir. Parece um pouco mais tranquilo. Certamente os problemas da polícia não foram resolvidos com essa chamada, mas pelo menos pôde conversar, o suficiente para conseguir dormir e aguentar o dia seguinte.

Mais tarde, quando o sono já batia, liga uma mulher. Era uma madrugada quente, dessas de verão que nem à noite o calor dá trégua. Ela ligou de um telefone público, disse que se chamava Sandra e que estava bem, apenas um pouco só -- mas isso tirava de letra. “Só quero conversar alguns minutos, tenho exatamente duas fichas, é tudo o que eu tenho na bolsa.” Pois é, na década de 80 ainda havia muitos orelhões nas ruas, e o cartão telefônico ainda não tinha substituído as fichas da Telebrás. Hoje, é muito mais fácil: o próprio CVV tem várias contas de Skype e um serviço de chat e e-mail, além do tradicional 141. “Essa angústia me aparece só à noite. Durante o dia eu engano bem, mas a essa hora não tenho a quem recorrer”, conta Sandra. “Me vêm imagens à cabeça, como um baú de recordações tristes... E, na solidão, me vejo ainda menina sentada num banquinho de madeira, diante de um braseiro imenso de ferros incandecentes. O ferreiro magro, de cara doente e avental sujo, me deixava ficar ali, espiando as chamas e ouvindo as marteladas. Morreu tempos depois, com os pulmões corroídos pela fuligem, e mais pobre do que nunca. A filha única, bêbada e prostituta, morreu esquecida. Quando essas imagens me vêm à cabeça, só tenho vontade de morrer. Fico dias e noites na cama com o cobertor na cara, até que o vizinho do lado bate na porta e ameaça chamar os bombeiros...” Ele não entende, pergunta o que a aflige tanto, o que significam essas imagens. Mas ela se dá conta de que o tempo vai acabando e se desespera: “Quero um conselho, um consolo, qualquer coisa, depressa. Por favor, diz alguma coisa que me faça voltar a acreditar na vida, me diga...” Chorando, pede ajuda, mas ele não sabe o que fazer, não sabe o que essa mulher tem, e, antes que pudesse dizer algo, a ligação cai. Não voltou a ligar, acabaram-se as fichas.

Chegam as últimas horas do corujão, e começam as ligações de quem se sente só ao levantar. Logo de manhãzinha, antes das cinco, toca o telefone e do outro lado da linha a voz triste de uma velhinha dizia o quanto a vida é inútil e angustiante. Perdera o marido há dois anos, e desde então vivia desconsolada, relembrando a rotina de todos as tardes: sentar-se na poltrona da sala, enquanto ele ficava no sofá lendo o jornal e resmungando as mesmas críticas: o governo, os políticos corruptos, a alta dos preços. Depois caía no sono, e, enquanto cochilava, ela recolhia o jornal, tirava seus óculos e ia fazer a janta. Cinquenta anos juntos, para terminar assim, sozinha, numa casa vazia. O que falar para uma mulher assim, como consolá-la? “Coragem, vovó, o teu velhinho está te esperando lá do outro lado. Não vai demorar muito não.” Foi a única coisa que ocorreu ao jornalista, numa situação que não tinha como contornar. Alguns casos são mais complexos de se lidar, apesar de, às vezes, serem uma situação comum como a viuvez. Dar motivos para o sofrimento e racionalizá-lo é uma coisa, mas ter que admitir que a dor é natural e inevitável, e que não há nenhum motivo para ela além da simples razão de ser das coisas, aceitando a impotência do ser humano contra a morte, é algo que pode ser extremamente frustrante ou liberador, dependendo de como se interpreta.

São seis horas da manhã, hora de o plantonista ir embora. Não houve nenhuma outra ligação que o atrasasse, algumas histórias parecem boas para escrever. Guarda o bloco de notas, arruma suas coisas, apaga a luz e sai. O sol ainda não nasceu, a cidade dorme no escuro, enquanto ele vai em direção ao portão e nota um carro parado do outro lado da rua deserta. Um sedan preto. Para, pensa, decide que não tem por que se preocupar, pensa de novo, a mão sua e o coração bate mais forte. Sente medo. Já na calçada, anda alguns metros, em direção ao seu próprio carro, estacionado mais adiante. O carro, lentamente, começa a andar -- e vai embora. Ufa.

Talvez seja só a curiosidade de saber quem é aquela pessoa do outro lado da linha, que ouve os problemas dos outros, está ali sempre que for preciso se a linha não estiver ocupada. A necessidade de dar cara a uma voz que parece entender um pouco e tenta ajudar, que pelo menos está lá, presente, no meio da noite. A cena do carro, conta o jornalista, aconteceu mais de uma vez, no mínimo duas, durante os dois anos que fez parte do CVV. Naquele momento, ali no centro da cidade, numa área em que, fora moradores de rua, não há uma alma viva àqula hora, o que se sente é um pânico silencioso. Ele nunca chegou a ver quem estava no carro, mas quem estava dentro provavelmente viu que aquela voz anônima tinha dono, de carne e osso, e era mais do que um simples serviço de apoio. Era uma pessoa, alguém por trás do telefone que também tinha uma história além do anonimato forçado pelas circunstâncias.

Minha ligação ao CVV

Numa noite de insônia, já tendo em mente que escreveria sobre o CVV, resolvi experimentar como era o atendimento atualmente. O depoimento que tive sobre o Centro era dos anos 80, e as histórias que surgiram dele eram muito interessantes, mas fiquei curiosa por saber como era ser parte disso, dessa espécie de confessionário. O objetivo talvez não fosse tanto saber como o CVV funciona ou como ele mudou ao longo do tempo com as inovações tecnológicas, mas sentir como é falar com um completo desconhecido sobre coisas pessoais.

Então, às 4h10 da manhã de um domingo, liguei o computador e procurei no site do CVV o contato do Skype. Liguei para a unidade do Jabaquara, simplesmente por ser um dos primeiros da lista, que continha 8 unidades físicas e 8 postos online com esse tipo de atendimento. Não foi na primeira, nem na segunda tentativa. Tentei em outros postos, e nada. Já estava quase desistindo, considerando ligar para o 141 mesmo, mas vamos lá, uma última tentativa -- e consegui!

Um homem, que, pela voz, não parecia ter mais de 30 anos, me atendeu e perguntou se eu estava bem. “Sim, estou bem. Bom, mais ou menos. Se eu estivesse não estaria ligando, eu acho, né?” Nervosa, tentei explicar: “Olha, eu só queria conversar com alguém porque não tenho certeza sobre uma decisão. É algo até meio bobo, mas para mim é importante.” Eu tinha decidido, antes de ligar, que não inventaria nada, para tentar ser o mais fiel possível a uma ligação de verdade. De fato, aquela era uma ligação de verdade -- não é muito normal eu estar acordada às quatro da manhã, a não ser que seja por algo que realmente me tire o sono. “O que aconteceu?”, pergunta o moço. Pergunta difícil. Eu queria responder: “Aconteceram muitas coisas, veja só. Eu nasci, cresci, fiz um monte de coisas, algumas delas deram certo e outras nem tanto, essas que deram errado foram se acumulando ao longo dos anos e, com 21 anos, já me sinto uma velha -- e ao mesmo tempo me sinto ridícula de um jeito adolescente por pensar tudo isso, porque, afinal, tenho 21 anos. Faz sentido?” Mas, em vez disso, simplesmente respondi: “Hm, é, então. Eu meio que tomei uma decisão que não sei se vou me arrepender depois. Fui aceitada em um emprego muito legal mas vou recusar, para tentar reconstruir um relacionamento. Quero dizer, meu namorado mora fora do país e eu vou viajar e ficar uns meses fora, em vez de aceitar o trabalho.” A cada palavra que saía da minha boca, a questão toda me parecia mais idiota e sem importância (e, escrevendo, parece pior ainda) e fui ficando com vergonha. Como que uma pessoa que eu não sei quem é, e que não sabe quem sou, poderia me entender? “Deixa eu ver se entendi, você quer esse emprego mas acha que aceitá-lo, e, consequentemente, não viajar, vai acabar com o seu namoro?” “É”, murmurei, pensando: “Dito assim, parece tão banal. Talvez seja. Por favor, só não me faça repetir. Acho que nem devia ter ligado.” Comecei a explicar de novo toda a situação vergonhosa, quando de repente a ligação caiu.

A princípio, nem percebi e continuei falando, até me dar conta de que estava falando sozinha. Depois de um minuto pensando, resolvi insistir e liguei de novo. Pelo menos não tive que explicar que eu estava na ligação antes, que caiu, etc, já que ele me reconheceu imediatamente. “Ah, era com você que eu estava falando, né?” Continuei contando o que tinha acontecido, que estava recusando um estágio na agência EFE, e em vez disso, iria para Madri por seis meses. Que parecia loucura, que eu nem acreditava que ia fazer isso, mas eu já estava decidida, só não estava segura. E aí, não sei o que aconteceu, mas, pouco a pouco, fui esquecendo aquela vergonha do começo, e fui me soltando. Quando vi, já tinham se passado mais de 15 minutos de conversa - ou, melhor dito, monólogo - sobre coisas que eu nem tinha pensando em falar. A morte recente da minha avó, problemas familiares, frustrações com a carreira e questões existenciais, tudo. Até que, novamente, a ligação desconectou, mas dessa vez eu percebi, e fiquei um pouco surpresa, sem saber o que fazer. Me dei conta de tudo o que eu tinha falado, e pensei que, se ele quisesse, poderia descobrir quem eu era, e me senti extremamente exposta. Mas, ao mesmo tempo, um pouco aliviada -- até a banalização do problema que eu mesma tinha feito no começo ajudou a diminuir minha preocupação. Nem pensei se ligava de novo ou não, desliguei o computador e dormi, satisfeita com o que tinha acontecido.



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