A ilusão está nos olhos
Por Clara Velasco - Edição U-turn - dezembro de 2011
Celso Luis de Lima Marcilio (Crédito: Clara Velasco)

Quem entra no sebo “Celsom”, em uma galeria comercial perto da praça da República, no centro de São Paulo, não imagina a história por trás do local e do homem que lhe dá o nome. Celso Luis de Lima Marcilio nasceu em 11 de abril de 1966 na capital paulista. Estudou contabilidade, mas se dedica há mais de dez anos aos aproximadamente 20 mil vinis que possui e que rodam pela loja. Conhece suas capas, nomes, gravadores e em alguns casos até as cidades em que foram feitos, e sabe exatamente onde eles estão. Isso não seria estranho se não fosse por um detalhe: Celso perdeu a visão em um acidente de trabalho há mais de 15 anos. E, ao contrário do que as pessoas podem pensar, hoje ele considera isso uma providência divina.

Quando entrei no sebo para conversar com Celso, fui cumprimentada cordialmente por um homem alto e simpático. Ele me apontou uma porta fora da sala de exibição principal da loja, pediu que eu entrasse e me seguiu. Descobri-me em uma sala menor, mas não menos repleta de vinis, que dava em um escritório. Neste local, a quantidade de discos era um pouco menor e dividida em prateleiras. Nas paredes, imagens de capas diversas e desconhecidas para mim – mais tarde, Celso me explicaria que ali estão os vinis mais raros, e que aquelas imagens mostram as preciosidades guardadas em um armário atrás dele. Celso se preocupou em pegar uma cadeira para mim, sentou-se atrás da mesa de escritório e aguardou pacientemente enquanto eu preparava meu equipamento de gravação.

“Bom”, comecei, meio intimidada diante da possibilidade de pedir a um homem que eu não conhecia que abrisse sua vida como um livro para mim. Mas nem precisei pedir. Celso gosta de falar. Muito - e ainda mais quando se trata de seus discos e sua trajetória profissional. E assim, ao som frenético da música tocando na sala ao lado, das pessoas gritando slogans de promoções na rua e do constante burburinho do centro de São Paulo, ele me contou a sua história.    

 


Conteúdo:

O antes

O durante

Vinis e mais vinis

E o depois


 

O antes

Na década de 80, Celso trabalhou em dois bancos. Ele cuidava da área de mercado de capital das instituições, dando suporte a todas as operações. “Eu mexia muito com matéria de exatas, cálculos e mercado financeiro. Tirava relatórios sintéticos e analíticos para fazer os ajustes contábeis”, explicou. Esta parece ter sido a época da sua vida mais convencional, por assim dizer, mas após oito anos na mesma área, o cenário financeiro do país lhe fez desempregado. O banco em que trabalhava iniciou uma série de cortes e de remanejamentos no governo Collor, e Celso foi uma das vítimas da terceira leva de demissões.

Falando com uma naturalidade incrível, que depois descobri ser uma característica inata sua, o paulistano contou como decidiu entrar no mercado das contas e dos números de outra maneira: abriu uma lanchonete. “Eu peguei um bom dinheiro do banco de indenizações de tempo de serviço e, no começo da década de 90, abri uma lanchonete no Tatuapé. Eu não tinha nenhuma experiência. Mas mesmo assim, consegui levar por um ano, um ano e meio. E ‘tava tão bom que acabei comprando outra”, contou.

Foi o segundo estabelecimento, porém, que levou Celso a ficar novamente sem ocupações profissionais. O local era voltado para um público mais noturno, e a vida dos jovens bêbados e animados acabou não lhe agradando. “Era estressante. Acabei enjoando disso, pois lidar com o público naquele estado era meio maçante. Tinha que ter uma paciência muito grande, são pessoas que bebem, então você quer fechar a lanchonete e elas não querem sair. Eu estava ganhando dinheiro, mas não estava aproveitando”, disse. Decidido, Celso vendeu um dos estabelecimentos para um conhecido e passou o ponto para outro. E estava mais uma vez sem rumo.

O durante

A demissão da vida de exatas e sua desistência da empreitada no comércio levaram Celso ao lugar em que iria perder a visão. Ele passava o dia sem fazer nada, tinha dinheiro na mão e começou a encarar a noite com um ar viciado. Essa é a época que considera como “um branco” em sua vida. Envolveu-se em jogatinas e passou a frequentar apostas de cavalos, bookmakers e bingos. Mas o dinheiro finalmente acabou, e a solução que lhe foi apresentada por um amigo foi trabalhar no próprio lugar que tinha lhe deixado pobre e que ia roubar seus olhos: um bingo. “Eu estava quebrando um galho como vendedor de cartelas, mas ia ser promovido”.

A promoção, porém, não chegou. Celso não parece hesitar em falar do dia em que sofreu o acidente que lhe deixou cego, mas sua voz fica mais baixa e profunda. É quase como se tudo estivesse passando como um filme em sua mente. “Eu tive um deslocamento de retina. Um armário emperrado no vestiário”, sentenciou. 

Quando pergunto como foi exatamente, ele conta que dividiu um dos armários de funcionários com um amigo. Só que um dia, esse amigo esqueceu a chave e arrombou o armário para pegar os documentos dele. “Só sei que depois a porta não fechava direito, ficou fora do esquadro por ele ter forçado. Aí um dia fui abrir, ela ‘tava emperrada e não vinha. Quando consegui apoiar o joelho no chão, ela veio no meu olho. Eu estava abaixado. Essa pancada causou o deslocamento de retina”.

Mas Celso não sabia disso na hora. Socorrido por funcionárias que estavam no vestiário vizinho, ele começou a ter flashes no olho direito e começou a sentir um pouco de dor. Colocou gelo e foi para um hospital. “Me examinaram e mandaram voltar no outro dia, mas aí já estava descolando a retina. Fizeram uma operação de urgência”, contou. A intervenção, porém, não impediu o dano. Celso fez uma segunda operação, mas então os médicos lhe falaram que mesmo que a retina voltasse pro lugar, a diferença de um olho pro outro ia ficar muito grande. Insistente, ele continuou o tratamento, pagando grande parte das despesas com o próprio bolso.

Depois de aproximadamente um ano e meio afastado do trabalho e em meio às cirurgias, a retina do seu outro olho deslocou espontaneamente. E ele voltou a cair na mesa dos cirurgiões. O resultado: nove intervenções cirúrgicas e dois olhos sem visão. “Aí me aposentei. Mas olha a minha situação: estava sem poder trabalhar e cego aos 33 anos”. Pergunto a ele como ele ficou, se teve depressão. Celso para, pensa um pouco, faz uma careta e diz que, encarando hoje, ele vê que ficou “meio estranho”, mas que não ficou depressivo.

Mas como uma pessoa não fica depressiva após ficar cega? Mesmo analisando e contando os fatos hoje, depois de tanto tempo, imagino que não deva ser fácil para Celso afirmar que a depressão pode ter acontecido antes do acidente, e não depois. “Eu tenho até medo de te falar, mas acho que minha vida teria ido para um lado complicado se eu não tivesse ficado cego. Comecei a frequentar a noite, e essa noite adulta envolve dinheiro, malandragem. O jogo é ligado a muitas coisas, é um pacote. Você não percebe, mas entra muito de cabeça. Eu estava em uma situação que talvez fosse uma depressão sem eu saber”.

Assim, é com simplicidade que ele conta que um dia, depois de perder a visão, descobriu o que realmente gostava de fazer - e “abriu” seus ouvidos para a música, que até então nunca tinha dado muita atenção. Era na área de comércio, mas agora tinha a chance de recomeçar um negócio que realmente lhe agradava e de se ver longe daquela noite que lhe atraía e que podia, ao contrário da cegueira, realmente acabar com sua vida. “Pensei que eu tinha que fazer alguma coisa. Então lembrei que, aos 16 anos, eu frequentava muitos sebos’”, contou. E assim sua jornada com os discos começou.

foto 2(crédito: Clara Velasco)

 

Vinis e mais vinis

Depois de cego, Celso começou a prestar mais atenção na sutileza das músicas. Os gibis, que eram sua antiga paixão, não tinham mais utilidade - mais tarde ele os venderia e compraria um apartamento com o dinheiro. A música, ao contrário, lhe pareceu mais rica. Mesmo focado, porém, ele percebeu que as dificuldades comerciais não tardariam a aparecer. “O investimento era alto. Eu estava aposentado, sem renda, e tinha gastado o que eu tinha e o que eu não tinha com as operações”, conta. 

Com a ajuda de alguns amigos e com doações de materiais pro sebo, o estabelecimento foi aberto no Brás. E apesar de ter durado de 2000 a 2004, os entraves administrativos foram muitos, por causa da sua falta de conhecimento e da cegueira. “Não sabia o preço de disco. Comprava por R$0,50 e vendia por R$3. Eu não tinha noção de preço. Aí quando uma pessoa me descobriu, ganhou muito dinheiro em cima de mim. Comprou muitos discos baratos na minha mão e revendia caro. Falam as más línguas que ele comprou uma chácara com os meus discos, com uma plantação de morango linda...”.

Além disso, Celso foi vítima de roubo duras vezes. “Um funcionário me roubou e tentou vender  quadrinhos para um amigo meu. Fiquei chateado pra caramba. Depois tive vários funcionários, mas não deu certo. Aí acabei fechando em 2004 porque me chateei muito, e eu não me dava muito bem com os livros”, resumiu.

A primeira versão do sebo acabou, então, naquele ano. Tudo foi vendido e ele foi trabalhar com um engenheiro colecionador. E lá foi sua grande escola com os vinis: “Fui trabalhar com ele como avaliador, só com compacto. Tinham várias funcionárias para me ajudar, eu as ensinava. Trabalhando em encomenda, vendendo e ouvindo música: foi onde eu aprendi bastante”.

Uma das funcionárias é que foi a grande responsável pelo toque que o faria abrir a loja que possui até hoje. “Uma menina que trabalhava comigo falou ‘Celso, não dá pra entender você trabalhando de empregado, você conhece muito’”. E com a mesma facilidade com que parece fazer tudo em sua vida, Celso se demitiu e abriu a loja perto da Praça da República – lugar que está até hoje, com sócios, reconhecimento e vinis de qualidade.

E o depois


Celso não tem pretensões de ficar rico, mas afirma que levanta todos os dias com vontade de fazer o que faz. Ele dá a entender que não pretende mostrar a sua vida como uma história de superação – bem como não pretende dar lição de moral em ninguém. Trabalha como tantos outros, tem seu próprio negócio e hoje entende o valor real dos seus vinis. É casado, cercado de amigos – ressalta que tem apenas uma amiga cega – e se sente bem tratado onde quer que vá. Usa uma bengala, é verdade, mas deixou de ter vergonha de usá-la há muito tempo, ao perceber que não tinha culpa por não poder ver.

Depois de conhecer a sua história e já prevendo a resposta, questionei se ele se considerava um deficiente. A resposta foi rápida: “Não, não me considero deficiente. Eu apenas tenho uma deficiência que me limita para muitas coisas. Mas todas as pessoas têm um tipo de deficiência, só que umas visíveis, umas invisíveis. Eu sou deficiente como os outros”.

 

foto3(crédito: Clara Velasco)


Celso acredita, na verdade, que a falta de visão lhe deu mais do que apenas um rumo na vida através da música - rumo esse que ele encara como “salvador” diante do que sua vida poderia ter se tornado caso não tivesse sofrido o acidente. “Eu tenho alguns defeitos que preciso melhorar, mas uma coisa eu aprendi sem a visão: o enxergar é muito mais do que ver”, disse. Ele explica que o verbo é o mesmo, mas que hoje percebe coisas que não perceberia caso enxergasse. “Eu fique mais centrado depois que eu perdi a visão. Porque a visão, eu acho que ela me fazia mal. Ela me iludia: eu só enxergava, não via. A ilusão ‘tá aí fora, e eu sei que eu era uma isca muito fácil. Então talvez foi uma providência divina que eu tive que passar pelo acidente. Por isso que eu nunca blasfemei”.

E ele não pensa na possibilidade remota de voltar a ver? “Eu não sei se estou preparado para enxergar. Não é assim. Como eu não estava preparado para ficar cego, não estou agora para ver. Às vezes eu acordo e não percebo que estou cego, pois saio da cama, vou pra cozinha, banheiro, tudo normal. Não tem a necessidade de enxergar pra achar o seu chinelo, a sua toalha. Você vai se habituando de uma forma que a visão fica irrelevante”.

Confesso que fiquei surpresa ao nunca ter pensado em tal ponto de vista: que um dia a falta de visão se torna natural. E, diante das suas palavras, comecei a me imaginar na situação daquele paulistano e me questionar se eu realmente passaria a “enxergar em vez de ver”, como ele fala. Celso, porém, ressaltou que não é preciso passar por um trauma como o seu para passar pelas mudanças que passou. Cada um tem o seu tempo e a sua forma de se conhecer. “O ser humano é muito inteligente, só que o ego deixa ele cego. O ego fica na altura da testa, justamente na visão. Ele infla. É claro que é muito gostoso massagear o ego, mas ele não pode ser mais que você, ele é só uma parte. Mas isso se aprende com o tempo. Ou às vezes não aprende. Tem que procurar. Essas partes a gente tenta melhorar todos os dias”. 



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