Nosso primeiro encontro com Sérgio Bispo acontece num posto de gasolina perto da Cooperglicério (Cooperativa de Catadores de Lixo do Bairro do Glicério). Ele chega com um sorriso tímido, a camiseta verde da Cooperativa e, antes mesmo de dizer oi, seu celular toca. Era um pessoal da Fundação Getúlio Vargas combinando como levá-lo até São Bernardo do Campo para participar de um debate com autoridades, acadêmicos e estudantes, parte da programação de um evento social. Ele, presidente da Cooperativa, é esperado por todos.
No portão da Cooperativa, que fica debaixo do Viaduto do Glicério, finalmente consegue desligar o telefone, desculpando-se. Com um trato gentil e fala simples, Bispo, como é chamado por todos, nos mostra seu local de trabalho. Faz questão de apresentar uma a uma as pessoas que estão ali trabalhando. É visível o orgulho que todos sentem da Cooperativa. Existe uma consciência forte sobre a importância do trabalho que executam – “pensa o que seria São Paulo sem a presença dos catadores, sem ninguém para recuperar essa quantidade de material. Não teria aterro que desse conta”, diz.
Cooperglicério
Impressiona a quantidade de material reciclável depositada pelos caminhões que chegam ali diariamente. Impressionante também são os quilos e quilos de objetos novos, frutos de desperdício: pastas cheias de papel em branco, livros de capa grossa que deveriam ter sido distribuídos por algum órgão público, coisas que nunca foram usadas...
Bispo tem uma sala simples e organizada. Todos os objetos, da cadeira ao computador, da impressora ao armário, foram recuperados do lixo e funcionam perfeitamente. Nem nos sentamos e o celular de Bispo toca mais uma vez. Ele atende, resolve o assunto e finalmente senta-se para nos contar o que queremos saber: como veio da Bahia até São Paulo caminhado, em 80 dias, buscando o que nem conhecia para fugir da miséria.
Conteúdo:
O socorro que não vem do Salvador
São Paulo não sorri para todos?
Ascensão social: o sofá de cinco lugares
Vende-se São Paulo
Sérgio Bispo era um rapaz de 26 anos e totalmente sozinho quando resolveu deixar a Bahia no passado, mais exatamente o lixão de Salvador e a vida miserável nas ruas da cidade, a desesperança - para correr atrás de um destino novo, diferente, escrito por ele mesmo. Numa tarde de quinta-feira, resolveu mudar de vida.
A força propaganda, das imagens da televisão, que vendiam São Paulo com todas as suas luzes e todo seu progresso pareceu um chamado convidativo, quase irresistível que trouxe Sérgio Bispo, nascido no ano de 1963 no município de Caculé, na Bahia. Com pouco mais de 20 mil habitantes, a cidade agora tem um portal na internet, com uma atualização das principais notícias, como chamar a atenção da população para o combate ao mosquito da dengue, a importância dos atletas caculeenses no Campeonato Brasileiro de Karatê e a audiência pública que resolveu destinar 600 mil reais em serviços de atenção às urgências e emergências na Rede Hospitalar, no ano de 2012. O máximo de interatividade é visto no canal “fale com o prefeito”. É possível enviar a sua pergunta e torcer para ser respondido.
Torcer para ser respondido, ter fé para continuar. Bispo nem imaginava que a sua Caculé ficaria multimídia, e muito menos que ele seria visto e ouvido.
A televisão dentro daquela loja. Vista da rua, as imagens traziam um brilho diferente e mostrava uma avenida chamada Paulista, emoldurada por fábricas, arranha céus e gente rica. Era pra lá que ele iria, não tinha a menor dúvida. “Mas com que dinheiro você vai pagar o ônibus até lá, rapá?!”, zombavam os colegas da rua. “Dinheiro nenhum. Vou a pé!”. E assim fez. O carnaval de 1989 tinha acabado de acabar quando ele saiu da cidade. Só perguntou para que lado ficava a Rio-Bahia, a estrada que ia para o sul, e para lá rumou levando a roupa do corpo e a vontade de chegar.
A jornada que então teve início vinha repleta de números: oitenta dias de estrada, mais de 1.900 km, centenas de cidades e pessoas. A mão da solidão se transformou na grande condutora no trajeto: “Imagina a estrada à noite, aquele céu enorme, cheio de estrelas bem encima de mim, eu completamente só.” A fome era aplacada com as frutas que encontrava no mato e restos dos cestos de lixo dos postos e restaurantes à beira do caminho. Uma vez, remexendo numa lata a procura de alimento, foi ofendido por um homem que lhe dizia, aos gritos, que restos eram para os cachorros, que ele não deveria buscar comida ali. Assustado, saiu correndo sem entender o motivo da agressão. Apesar de ter conhecido a miséria desde antes do nascimento em 1963, em Caculé, pleno sertão da Bahia, pedir nunca pedia, não sabia, não fora habituado, sentia vergonha.
Em Caculé, o casal Neide e Eduardo, seus pais, sobreviviam capinando roças de um e de outro em troca de um prato de comida ou de roupa para seus meninos. Dos irmãos, Bispo quase não tem recordações. Insistindo um pouco com a memória, cita dois nomes: Iara e Ricardo. A dificuldade da lembrança pode ser explicada pela pouca convivência, pois devido a dificuldades financeiras, seus pais foram distribuindo os filhos para outras famílias que estivessem em melhores condições e pudessem criá-los com dignidade.
Dignidade, palavra que só fez sentido para Bispo na vida adulta. Quando criança, ele diz não ter conhecido o carinho nem da mãe nem do pai. Resignado, não mostra ressentimento, apenas justifica dizendo que os pais não podiam dar o que não receberam. Impressionante as condições vividas durante a infância. Morou numa tapera, sem camas para dormir ou talheres para comer. “Ficávamos que nem bicho”, diz Bispo, numa frase cortante e direta.
Repetindo a história de milhões de brasileiros esquecidos desde sempre pelo poder público, em 1982, com a situação ficando mais e mais difícil na roça, Eduardo e Neide partiram com os três filhos para a capital do estado. Os 800 km que separam Caculé de Salvador foram enfrentados com bravura, mas a chegada está longe de ser um alento. Morando na rua até conseguir um barraco, cercados por um vazio de perspectivas, o restante da família começou a trabalhar em um lixão, do qual obtinham comida, roupa e o que mais a população descartasse virava material de primeira utilidade.
Com o tempo, os irmãos se dispersaram; o pai, dependente de álcool, logo faleceu e a mãe também não resistiu.
De explorador do lixão, o moço conseguiu uma carroça e passou a ‘catador de lixo’, como era chamado, pelas ruas de Salvador. Percorrendo a cidade nas usas andanças, descobria um mundo novo que ia muito além do que conhecia até então: pessoas nos restaurantes, comprando nos shoppings, turistas passeando na orla. Submerso nesse universo tão distante, interrogações lhe perturbavam: Por que eles têm tudo e eu não tenho nada? Por que uns jogavam fora enquanto outros sobreviviam de sobras?
Ao refugiar-se em banheiros sujos de postos de gasolina para passar a noite, era preciso ficar atento para não ser descoberto e expulso a safanões. Bispo nunca entendeu essas agressões, mas à força ia aprendendo outras durezas da vida. Mas às vezes o vento também sopra a favor, e Bispo encontrou acolhida na casa de uma família em Cataguases. Eles o abrigaram por três noites e três dias. Mais que um teto, poder dividir um lugar com pessoas que estavam preocupadas com seu bem estar, o que provocava uma sensação nunca antes experimentada e jamais esquecida. Embora agradecido e comovido com o que nunca havia recebido, não aceitou o convite para ficar. Precisava continuar seu caminho.
No caminho para São Paulo, Carangola era mais uma cidade à beira da rodovia por onde a viagem avançava. E bem ali, naquela pequena cidade mineira, Bispo encontrou Valdirene. A menina tinha apenas 15 anos e já tinha experimentado o gosto amargo de estar à margem. Grávida, passara por maus tratos e abusos e não tinha esperanças na vida. A identificação foi imediata, os dois se apaixonaram e não teve outro jeito. Bispo prometeu que chegando a São Paulo, mandaria dinheiro para ela ir encontrá-lo.
Entrevista com Márcia Scapaticio
São Paulo não sorri para todos?
O longo caminho até São Paulo passava pelo Rio de Janeiro. Ao contrário de todas as maravilhas cantadas à cidade, o que nosso andarilho encontrou se desenhou em violência e desespero. Dormindo na Central do Brasil, Bispo contabilizou mais um trauma: sofreu uma agressão física de pessoas que viviam no local. Não havia trégua, tinha que seguir seu rumo, continuar caminhando, chegar logo a São Paulo e buscar Valdirene.
E finalmente, em agosto de 1989, em pleno inverno paulistano, o menino de Caculé chega a pé à maior cidade da América do Sul, vencendo quase dois mil quilômetros e oitenta dias e noites de estrada. Venceu o medo, a solidão, sempre agarrado à coragem e determinação, traços fortes de seu caráter que delinearam sua vida e continuam guiando seu dia a dia.
Pois bem - em São Paulo já estava. A terra da garoa fria e fina o recebia de acordo com seu clima e sua rotina: Caótica, imensa de tirar o fôlego e concomitantemente acolhedora por meio das mãos de gente acostumada à realidade de migrantes que chegam diariamente em busca de uma chance de ser, de ser visto e de existir. “Cheguei e me orientaram a ir até os Franciscanos da rua Riachuelo, ali perto do Chá. Eu disse a eles que acabava de chegar do Norte, precisava trabalhar e que era ‘mendigo de rua’, como diziam de mim e eu repetia. Hoje a gente já entende que é melhor designar pessoas que estão passando pela humilhação de não ter um teto como ‘em situação de rua’”, diz. De lá o encaminharam para a Recifran, na época era ligada aos Franciscanos e que depois se transformou na Cooperglicério.
Mergulhou no cotidiano de um “catador de lixo”, expressão que era usada tanto no lixão de Salvador quanto em São Paulo. Nesse período, o verbo reciclar não era tão disseminado e quem trabalhava na função não tinha consciência da importância do papel que desempenhava. Depois de um mês de abnegação e esforço, Bispo conseguiu o dinheiro da passagem de ônibus para trazer Valdirene de Minas. Podia ser um aceno de um futuro promissor?
O teto
Quando Valdirene chegou, gravidez avançada, Bispo morava num albergue da Prefeitura que não tinha vaga para mulheres. Por regras internas, ainda não havia albergue para casal, os dois residiam em albergues diferentes. E assim, vivendo separados que a criança nasceu e imediatamente reconheceu seu pai. A expressão “deu a vida” poucas vezes teve uma conotação tão firme e certeira. Nessa roda viva e responsáveis por uma criança, ambos conheceram uma moça que fazia parte de movimentos de sem-teto. Conhecendo as questões relacionadas aos moradores de rua, já começava a enxergar suas mazelas passadas e presentes, como fruto de uma grande injustiça social. A consciência aos poucos tomava forma e, de repente, apossou-se dele. O movimento surgiu como uma oportunidade de luta coletiva, uma poder construído no coletivo, na luta diária de todos que partilhavam da mesma invisibilidade.
Ser invisível em São Paulo não é difícil. Cada um no seu ritmo, centrado no que precisa dar certo agora e o que não pode falhar amanhã. Isso não é novidade para quem vive a rotina da cidade, mas quem vem de outros estados? Qual é a fome de quem decide largar o pouco que tem para ser visto na grande metrópole? Tais meandros se revelavam em ritmo acelerado.
Anos depois Bispo seria um dos personagens de outro documentário de Mocarzel, À Margem do Lixo
Convenceram-se. O primeiro alvo: Prédio na rua Brigadeiro Tobias. Sem nenhuma experiência naquilo, Bispo não concluiu o seu intento e ainda apanhou muito da polícia.
Após a tentativa frustrada, cada um voltou paro seu albergue. Mas não foi uma volta qualquer. Já estavam se preparando para o nascimento do segundo filho do casal, Diovani. Quando o menino estava com seis meses, a segunda tentativa de ocupação deu certo. “Trabalhando na reciclagem eu fui aprendendo a ler sozinho. Recolhia muitos jornais e pouco a pouco consegui ir entendendo o que estava escrito. Aprendi o que era o ‘sistema’, como nasciam as injustiças e reconheci os meus direitos. Um dia eu li: “Todo cidadão tem direito a moradia, saúde, educação, alimentação. E fiquei pensando: Puxa, eu tenho tudo isso e to aqui!”
A ironia é que agora, tanto tempo depois, a família será proprietária de um apartamento no mesmo endereço, a rua Brigadeiro Tobias, palco da tentativa frustrada de ocupação.
Quando deu por si, já estava participando ativamente dos movimentos pró-moradia. Nessa época, diz que a cabeça ficou muito confusa. Começou a ouvir palavras novas como proletariado, burguesia, capitalismo, conceitos e questionamentos sobre o porquê de uns não terem nada e outros terem demais. E percebeu que queria, sim, ter as coisas, não queria mais passar pelas dificuldades que conheceu a vida inteira, pensava em dar o melhor para sua família. Decidiu ser o burguês da história, mas em vez de monopolizar, queria dividir. Isso era possível? Nesse conflito entre o que achava certo e o que desejava, Bispo começou a beber. Era o refúgio que o anestesiava e ajudava a não refletir, a ficar conformado com a situação.
Carrinho estacionado na Cooperglicério
“Minha formação foi o movimento de moradia, o MSTC (Movimento dos Sem-Teto do Centro). Lá aprendi muita coisa boa, mas também vi muita coisa errada.” Gente das lideranças que conseguia apartamentos para si, seduzidos por todo tipo de máfia, comprados por partidos políticos, pelo poder público. “O resto do povo continuava nas ocupações e a liderança dirigindo tudo do longe. Eu poderia estar nessa posição e sempre repito que escolhi pelo não”.
A essa altura, Bispo saiu do MSTC e, em 2001, entrou para o recém-criado movimento dos catadores. “Comecei a participar de inúmeras marchas e reuniões por todo o Brasil, a representar os catadores do país inteiro, a andar de avião... Voltei à minha cidade de avião! Como pode isso? Às vezes não tinha nada pra comer num dia e no dia seguinte participava de reuniões com artistas e políticos em hotéis onde os garçons me chamavam de doutor! Depois voltava pra rua puxando meu carrinho de catador”. A cabeça não deu conta de tanta contradição e a bebida o fisgou novamente.
No Fórum Mundial Social de 2004 em Porto Alegre, evento no qual vários catadores se reuniram, é apontado por Bispo como a maior virada da sua vida. Nem chegar a São Paulo a pé teve, para ele, a força do momento que optou definitivamente pelo que chama de não. Durante o Fórum ele teve grandes decepções com o movimento ao ver lideranças procurando vantagens pessoais em detrimento do sofrimento e da luta da maioria, sendo compradas de maneira fácil demais.
Como líder que se tornara, sentindo-se pressionando de um lado pelas lideranças e de outro pelos seus representados – mais de 200 catadores que tinham vindo com ele de São Paulo -, Bispo entrou numa crise profunda. No entanto, essa foi a motivação para defender o lado dos colegas catadores, a batalha com todos e para todos, e não somente para alguns. E com coragem e princípios, Bispo foi eleito presidente da CooperGlicério em 2011.
“A gente, quando é liderança, tem que escolher. Tem gente que escolhe o sim, eu prefiro escolher o não. O não aceitar favores, não aceitar ofertas de gente do governo ou das várias máfias por aí... Não aceitar melhorar a minha situação e deixar meu pessoal na mesma miséria de sempre. Eu escolho o não.”
Ascensão social: o sofá de cinco lugares
É domingo e estão todos vendo tevê. Ao lado de Bispo, a mulher Valdirene e os três filhos: Denis, o primogênito, estudante do segundo ano de Educação Física, Diovani e Dener. No colo, o netinho pequeno, Davi, filho de Denis.
A família foi toda chamada para inaugurar o belo e confortável sofá de cinco lugares que chegou no dia anterior. A chuvinha que cai lá fora é a deixa perfeita para curtirem o dia em casa. Bispo está calado, observa a esposa e os meninos, os sorrisos. Aquilo é mais que um sofá, é desejo acalentado desde sempre. No seu imaginário, um sofá grande representava família junta, reunida, diversão ou descanso, algo que jamais tivera quando criança e jovem, sensação de conforto e proteção. O sofá, logo virou questão de honra. E o sonho cumprido agora, dividido com família, enche os olhos de felicidade, representa uma história nova, escrita com Valdirene em São Paulo.
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