“Pode ser que hoje você faça uma coisa da qual vai se arrepender”, disse Leila para si mesma ao espelho. O encontro foi no parque, do condomínio fechado de alto padrão onde seu colega de trabalho morava. E, enquanto fazia amor pela primeira vez na vida, aos 28 anos, a moça percebeu que já não era mais testemunha de Jeová.
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Leila se converteu aos 17 anos. Na época, estava desanimada: tinha acabado o ensino médio sem amigos e perdera o emprego de auxiliar de escritório. Queria fazer faculdade, mas os pais não tinham dinheiro para pagar. Foi quando a irmã, também testemunha de Jeová, convidou colegas do salão para pregar em sua casa.
Aquelas pessoas falavam sobre o mundo futuro, quando a terra seria o paraíso; haveria comida para todos, ninguém mais precisaria dormir na rua. Leila aceitou participar dos estudos: era uma oportunidade de fazer amizades sadias, com gente boa, que lia a Bíblia. Logo decidiu ir ao Salão do Reino, o local de culto das testemunhas de Jeová.
O lugar era muito simples: abaixo do nível da rua, tinha cadeiras de plástico e palco de madeira, cortinas domésticas no fundo e o trecho bíblico tema do ano de 1999 em todos os salões do reino do mundo.
Leila foi recebida com aperto de mão dos homens e com beijnhos no rosto pelas mulheres. Voltou mais vezes para estudar a Bíblia com eles. Um versículo muito apregoado a emocionava: “E [Deus] enxugará dos seus olhos toda lágrima, e não haverá mais morte, nem haverá mais pranto, nem clamor, nem dor. As coisas anteriores já passaram.”
Era esperança, finalmente. Não importava o que acontecesse, tudo iria melhorar algum dia. O Paraíso espiritual já estava começando para ela, privilegiada por ter encontrado a verdade; logo, se instalaria aqui na terra. A sensação boa fazia a moça sorrir sozinha no quarto. E lhe deu ânimo para viver à altura dos requisitos de Jeová.
Primeiro, foi necessário se livrar de roupas: decotes em V e vestidos curtos foram banidos do guarda-roupa. Depois, era preciso se afastar de quem não era TJ – as más companhias destroem hábitos bons, diz a tradução bíblia utilizada pela Torre de Vigia. Leila isolou-se dos pais, com uma pontinha de frustração.
Obedecer aos anciãos, ou líderes religiosos, é fundamental. Um dia, a moça ficou conversando sobre tecnologia com um amigo, filho de um dos anciãos do salão. Seis dias depois, a mulher que lhe ensinava os preceitos básicos das Testemunhas de Jeová ligou em sua casa:
- Leila, você está ficando com o Pity ? - perguntou em tom inquisitivo. A jovem negou, mas as duas precisaram encarar um ancião do salão. Leila perdeu, tristíssima, o privilégio de bater de porta em porta para falar de Jeová. Depois, o pai do Pity acabou lhe devolvendo o privilégio. Ela terminou satisfeita.
Namorar pessoas de fora da Torre era tabu. Significava que a pessoa não cria que Jeová poderia lhe dar um namorado fiel: estava fraca espiritualmente. Por isso, o único encontro que teve em dez anos foi com um TJ. Mas parecia entrevista de emprego.
A jovem nunca mais comemorou aniversários: só Jeová pode ser o centro de uma celebração; além disso, em todos os aniversários mencionados na Bíblia uma pessoa morreu. Natal e ano novo são festas pagãs.
Durante um natal, ela estava dentro do quarto, usando o computador.
“Cadê a Leila?”, perguntou um vizinho do outro lado da porta.
“Ela não comemora”, ouviu a mãe dizer. A moça sentiu-se triste, mas satisfeita por ter feito a coisa certa.
A Torre de Vigia desencoraja o ensino superior; melhor é ocupar o tempo com assuntos de Jeová. Por isso, Leila sentiu-se culpada por fazer a faculdade enquanto havia mulheres no seu salão que pregavam o dia todo – completando até setenta horas por mês de serviço à religião, devidamente registradas no cartão de serviço. Leila tinha dificuldades para alcançar a média nacional de dez horas de serviço. Sentiu durante quatro anos que não estava à altura de Jeová; para isso, seria necessário tocar mais campainhas e dormir menos; fazer mais estudos bíblicos e não cogitar a pós-graduação.
Formada, resolveu recuperar o tempo perdido. Sabia falar espanhol e sentia que precisava fazer algum sacrifício. Por isso começou a ensinar duas vezes por semana nos salões com reunião em castelhano.. Sábado e domingo, saía para o campo às dez da manhã e chegava sete da noite à casa dos pais. Só não dedicava mais tempo à Torre por causa do emprego. Desistira de procurar namorado.
Foi quando chegou o cansaço físico. E a solidão. Porque enquanto Leila servia a Jeová, a vida afastou os amigos do grupinho ao qual pertencia: casaram, tiveram filhos ou mudaram-se para o exterior. De repente, notou que ninguém do salão parecia se importar com o que ela sentia.
Leila começou a faltar nas reuniões. Passou a gostar de assistir ao Caldeirão do Hulck e ao Campeonato Brasileiro com os pais. Foi o alerta: estava infeliz, mesmo servindo com todo o coração à única religião verdadeira da face da terra. Não fazia sentido. Pela primeira vez, ela se perguntava se não vivia um embuste.
Os anciãos estavam preocupados com Leila: ligavam com frequência, mas todos os dias a jovem pedia para a mãe inventar uma nova desculpa. Se queria sair da organização, também temia dividir a família. A jovem sabia da regra: caso saísse da Torre, todos os filiados à organização estariam proibidas de falar com ela. A conta incluía a irmã, os sobrinhos e as primas com quem crescera. Os poucos amigos também.
Enquanto isso, no trabalho, Leila ligava para um ramal que estava sempre ocupado. Quem atendia a ligação era um colega. Ele puxava conversa, perguntava onde a Leila morava, oferecia carona. Ela recusava.
Às véspera das férias – Leila ia para Natal, fugir por um mês das testemunhas de Jeová – o colega ofereceu carona mais uma vez. Naquele dia, aceitou. No fundo sentiu-se feliz por despertar interesse em alguém.
O homem era arrumadinho, mais baixo que Leila, inteligente e bem-falante. Convidou a moça para ver o lugar onde morava: um condomínio fechado na grande São Paulo. As casas de novela, a segurança, o jardim à beira do lago onde eles tomaram cerveja fizeram a moça sentir-se a empregada. E também em uma aventura. “Eu não deveria estar aqui”, pensava, sem peso na consciência.
Na volta das férias, os dois marcaram o encontro.
Naquela noite, Leila voltou confusa para casa. Comeu, sentou na cama, demorou um pouco para dormir. Não se arrependia, mas também não sabia qual o próximo passo. Queria livrar-se da Torre, daquele tédio cansativo, fervor triste, medo de ser destruída. Mas a organização era responsável por boa parte da sua identidade. Com excessão de alguns arroubos de independência, a jovem não tinha vontade própria. Ignorava quem era, além de uma ex-testemunha de jeová que perdera a fé.
Além disso, os anciãos não dariam a ela tão facilmente o direito de não ser testemunha de Jeová. Teria que ser expulsa. Leila resolveu conversar com eles. Quem sabe conseguisse ser expulsa rapidamente.
- Quero dar um tempo...
- Mas você não pode dar um tempo para Jeová.
- Estou cansada. Quero sair.
- Leila, você está saindo com alguém?
“Sair” é um eufemismo para fazer amor. O líder religioso percebeu tudo. Leila ficou dois minutos em silêncio, com frio na barriga. Chorou de incerteza. Mas disse que sim. Achava que seria expulsa ali mesmo. Porém os anciãos lhe deram a chance de se arrepender até o próximo domingo.
A comissão, uma reunião oficial de julgamento, aconteceu na sala anexa ao templo. Os três líderes sentaram-se em frente à moça e começaram o interrogatório:
- Quem é ele?
- Quantas vezes vocês saíram?
- Quando tudo aconteceu?
- Você se arrepende?
- Você pensou em Jeová na hora?
- Você faria de novo?
Leila disse que não tinha pensado em Jeová; e que faria de novo. Esperou sozinha a decisão no local de cultos. Era novembro, 2009 estava acabando e fazia quatro meses que ela não via o versículo mundial do ano. A jovem só pensava no relógio. “Vou me atrasar para o almoço de domingo e meu irmão vai me matar”. Enquanto entrava na sala, teve medo de ser perdoada e não conseguir se livrar da Torre.
- Decidimos te dissociar. Você tem uma semana para recorrer.
Ela começou a chorar na frente dos três homens. Eles a abraçaram afetuosamente. Leila retribuiu. Nem adiantava lhes explicar o que a tinha levado para fora da Torre: para os anciãos, era fraqueza espiritual. Para os outros, cegueira causada pelo diabo.
Leila (crédito: arquivo pessoal)
Leila é mulata, alta e esguia. Eu a imagino dirigindo até o almoço na casa do irmão. Está fanha, e não sabe mais como ocupar suas noites e sábados; está com fome e cansada. Segura o volante com uma mão só e esfrega os olhos vermelhos com a outra, enquanto solta forte o ar, aliviada.
É natal de 2009. Fazia dois meses que Leila deixou a Torre de Vigia. Ela passa em meio à avenida Paulista iluminada. Um coral canta na paróquia São Luiz Gonzaga e a moça entra numa igreja católica pela primeira vez em muitos anos. As vozes cantam música erudita natalina. A vibração e as cores deixam-na extasiada.
Aquele foi o primeiro fim de ano em que presenteou a família. Para si mesma, deu dois vestidos curtos, um deles com gola em V. E, mesmo agnóstica, Leila pretende voltar para ver o coral na avenida Paulista.
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