Contramão
Por Fabrício Lobel e Heloisa Fávaro - Edição U-turn - dezembro de 2011
Crédito: Marco Gomes / Creative Commons

O rosto colado na calçada imunda da Rua Rêgo Freitas era apenas um estado de transição. Talvez apenas mais alguns instantes. Mas também poderiam ser horas. Já chegara a ficar duas noites e um dia naquela posição. Precipitado. Mas daquela vez a espera seria breve. Em instantes, tudo se resolveria.

**** 

“E se seu pai falasse que o mundo ia acabar em 10 minutos, você acreditaria?”

“Eu não teria dúvidas.”

Quando Miguel escutou seu filho responder isso a um colega cético, o orgulho atingiu-o da cabeça aos pés. Pela primeira vez, viu reconhecimento no seu trabalho árduo para ser o pai de família forte e imponente. De fato, desde que Daniel era criança, qualquer pedaço de mundo teria de passar primeiro pela interpretação do pai. Só depois disso, ele acreditaria na informação sem medo.

O que parecia ser autoritarismo era antes de tudo confiança. Desde cedo, Daniel aprendeu que mentir só era necessário quando não existia a opção de falar a verdade. E, na família, sempre houve essa alternativa. Ele e sua irmã, Carol, esbanjaram de uma liberdade invejável no período da adolescência – e souberam desfrutar dela graças à educação dada pelos pais.

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Na rua, onde tudo é risco, Serginho trazia a solução. Sujeito esguio e de pele muito clara, Serginho parecia brilhar no escuro da noite. Ele se aproxima da figura em posição fetal que, debaixo do seu cobertor esgarçado, espera pelo convite. A regra é clara, sem convite não há partilha. E Serginho faria o convite. Não é possível que não fizesse. Colega de tantos corres não deixaria um amigo de rua na mão.

“Mateuzinho, tá aqui”. Mateus atende ao chamado e vê o amigo desembrulhar o pedaço de papel na sua frente. O produto não era bom, mas já era o suficiente para dividir. Mateus recebe a parte que lhe cabe e se esconde atrás de um tapume de obras da prefeitura. Durante a agitação provocada pelo produto, Mateus preferia estar sozinho. Não queria ser perturbado por ninguém. Nessa hora, optava pelo silêncio. Uma paulada rápida e... Tuiiiiiinnnn

Sem fome, sem sede, sem medo ou frio.  Teu sangue, tua gana, teu braço adormecido. Tudo agora é pulsante. Forte. Grande. Rápido. Superior. A formação do homem sério. Sério. Negócios internacionais. Grupo de operações. O lógico. A Tv. O rádio megahertz. Ahhh... “ISSO É MEU, CACETE”. A chave de fenda. A cola. Chapéu. Bicho solto, homem.  “Ó os homem, aê”. “Olha lá”. “Né não, louco”. “Corre, porra”. “Pára. Sai”. Tuiiiiiiinnnn

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Na idade de Daniel, Miguel era rotulado pela família como um rebelde sem causa. Sempre foi o bagunceiro da turma, que não se concentrava e não se encaixava nos padrões da escola. Era  muito curioso e inquieto. Não se contentava com pouco. Quando adulto, descobriu que sofria de hiperatividade em altíssimo grau e percebeu que a ansiedade não era mera “sem-vergonhice.”

Teve alguns problemas e encarou-os da sua maneira. Mas encontrou seu oásis na família que construiu. Conseguiu prestígio na profissão. Era um exímio representante comercial, com carisma e muita lábia. Habilidades essas que ajudaram a tornar realidade o sonho da casa própria. Pela primeira vez, Miguel experimentou uma estabilidade emocional e financeira, o que possibilitou pequenos e deliciosos luxos.

Já tinha se transformado em um ritual sagrado. Quando chegava domingo, as crianças acordavam o pai e a mãe, ansiosos para a melhor parte do dia. Chegavam à padaria, cumprimentavam os amigos e ficavam horas sentados, tomando café e conversando, em uma manhã dominical quase mágica. Se sobrava um dinheirinho, Miguel não tinha dúvidas.  Levava a família para jantar em algum lugar especial.  O prazer em comer bem não se justificava por si só. Era como um elo entre eles, uma autoafirmação da família perfeita e unida.

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Mateus é atormentado pelas fortes dores intestinais. Há quatro dias na rua, Mateus não sente fome. Apenas a dor na barriga o faz lembrar que só ingeriu cachaça, ultimamente. Na cabeça o plano do novo corre começa a se desenrolar quando sente a língua endurecer. O desespero bate e ele busca a colher que guarda no bolso. Colher de baixo da língua e com a boca ressecada, Mateus espera que a convulsão não o domine. Já com a colher na mão, a atenção de Mateus se volta para o colégio da rua de cima. É preciso reunir cada migalha de seu raciocínio para o que mais lhe interessa: conseguir outra paulada.

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Não importava a idade. Miguel se sentava com Carol, Daniel e seus primos para conversar sobre sexo e drogas. Talvez por isso, Carol é a única da sua turma que não engravidou na adolescência.  Miguel também explicava com detalhes o efeito de cada droga no organismo. E as consequências. Uma vez, quando andava com os filhos nas ruas de São Paulo, encontrou uma embalagem beirando a cesta de lixo. “Esse papel é pra cocaína, e é o mais fácil de transportar”, falou o pai, passando o  o pedaço de papel para as mãos dos filhos.

Daniel e Carol não precisaram pesquisar na internet ou nos filmes para passar a reconhecer um drogado na rua. A informação veio do pai, que sempre teve um diálogo aberto. Mais que isso, Miguel nunca escondeu o fato ter perdido os primeiros anos dos filhos por conta de um vício pesado em crack. Ele mal se lembra dessa época. Os filhos nunca se ressentiram disso. Pelo contrário, sentiam orgulho em ver seu mestre recuperado das drogas e recém-vestido de pai-heroi.

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O resultado do corre na porta do colégio foi produtivo. Com o valor conquistado, Mateus poderia voltar para a casa da mãe. Onde, enfim, dormiria e tomaria um banho depois de quatro dias. Mas antes, uma parada na padaria em que Serginho fazia  um bico. Ele queria recompensar o colega pelo presente repartido na noite anterior. Juntos, dividiram mais uma. 

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Daniel, hoje com 20 anos, tem como maior sonho ser o exemplo que seu pai foi. “Se não fosse pela educação que eu tive, eu usaria drogas”.  Contemplado pelo mesmo transtorno de hiperatividade do pai, Daniel é obcecado por saber de tudo. Sabe explicar todos os efeitos do crack como se fosse um usuário, sem nunca ter experimentado drogas. Tem um ar responsável e assertivo, mas a insegurança do adolescente que insiste em capturar risadas de quem está em volta. Trabalha com eventos, a mesma carreira em que seu pai alçou voo. A mistura da genética com a admiração pelo pai criou um elo verdadeiramente fraternal.

Quando era mais novo, também teve problemas na escola. Era o popular, da turma do fundão. Não estava interessado em estudar.  O pai, preocupado, aparecia mais na escola do que o próprio filho. Carol era mais velha e mais estudiosa, mas a atenção era igual. O pai fazia questão de levá-la todos os dias ao cursinho pré-vestibular. 

Os filhos sempre souberam que a combinação de família unida com a força de vontade do pai bastou para que a questão das drogas deixasse de ser problema para ser apenas referência. Sempre vaidoso, Miguel assumiu o papel de pai de família que o transformaria, e as próprias responsabilidades e as rotinas serviam de terapia para que ele tivesse satisfação completa.

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Chegando na Zona Norte, próximo da casa da mãe, Mateus passa pelo bar e compra um copo de pinga. Ele brinda com Pedro e João que, sob o efeito da droga lícita, já riam alto. As gargalhadas são interrompidas pelo silêncio do motor de uma blazer preta que descia a rua em ponto morto. Sentado na frente do boteco, Bola - cuja autoridade clandestina era incontestável no Jaçanã- dá o comando: “parô de beber, por quê, porra?”. A balbúrdia é retomada, enquanto a blazer vai em direção da Rua Maria Amália Lopes de Azevedo. Mateus olha para os amigos Pedro e João e lhes oferece o conteúdo das trouxinhas guardadas no bolso. A risada no bar continua e os três decidem ir embora.

Há alguns meses, a prefeitura havia construído um muro no alto do morro para que a ocupação irregular não tomasse a área de mata, próximo ao bairro da Vila Nova Galvão. Mas a construção de 10 barracos para além do muro era sinal de que o objetivo da prefeitura não foi um sucesso completo. Os donos dos  desses barracos, que eram mais modestos da região, acessavam suas casas através de um buraco no muro com um pouco mais de um metro e meio de altura. Foi por esse buraco que os três amigos passaram com suas pedras nas mãos. Mateus ainda pôde escutar o pagode no bar quando saltou pelo buraco.

Foi o tempo de uma paulada. Tuiiiiinnnn.... Pá pá pápá. Tiros no pé do morro. Os três correram para a passagem no muro e avistaram que homens de dentro da tal blazer preta atiravam contra quem estava no bar que acabaram de deixar. O toque rápido do coração empurrava Mateus para perto do bar. Queria ver, saber, gritar. Pedro o segurou. “Do jeito que você tá, vai acabar morrendo junto com os caras”.

No bar, oito mortos. O corpo de Bola ainda na cadeira na qual Mateus o viu pela última vez. Todos os tiros certeiros. Nenhuma bala na parede. No dia seguinte a chacina no Jaçanã estava no jornal.

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Miguel não tinha muito interesse pela Bíblia, mas a educação rígida cristã que lhe foi imposta ensinou o que acontece com quem desobedece. A lição era fácil de ser assimilada: um simples fruto poderia custar um paraíso e um olhar faria de todo um mundo sal. Mas o que ele não sabia é que, antes do pecado original de Adão e Eva e da desobediência da esposa de Lot, a mitologia grega soube universalizar como ninguém o defeito genuíno do ser humano: a insistência em explorar experiências além do limite.

Desde o titã Prometeu, que roubou o fogo de Zeus para provar a superioridade do homem, até Pandora, que abriu a caixa de todos os males do mundo, os gregos mostram que a mais fiel das características humanas é também a mais traiçoeira. Mas a curiosidade que tornou irresistíveis a maçã proibida, o fogo e a caixa de Pandora foi o mesmo instinto que incitou Miguel a a procurar novamente o prazer mais extremo que ele já vivenciou.

A perenidade tinha que ser substituída pelos picos, pelo extremo. O corpo pedia, o cérebro pedia. Se é curiosidade ou necessidade, isso não importa. A vontade é maior que qualquer coisa no mundo. O que fazer com a família? Estão todos trabalhando. Eles nem desconfiarão. Depois de doze anos limpo, não faz mal. Afinal de contas, é só uma paulada. Só por alguns minutos. Depois, tudo volta ao normal.

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A cabeça latejava e o zumbido não saia do ouvido. Mateus correu para a casa da mãe mantendo presa à mão a lata que lhe servia de cachimbo. Ainda atordoado pelos tiros e pela pedra, viu de longe que uma festa ocorria na garagem de casa. Mateus tentou recobrar a consciência e lembrar o motivo. Mas, por mais que esmurrasse a própria testa, só ouvia o pulsar ensurdecedor do crânio. “Aniversário de alguém?”. Mateus mal sabia em que dia estava.

De frente para a casa, Mateus viu Júlio entre a fresta do portão. Júlio era seu filho mais velho e se casaria em breve. “O casamento. O noivado!”. O pulsar do crânio cessou e Mateus pudesse relembrar as palavras do filho: “Pai, semana que vem, vou fazer o meu noivado aqui em São Paulo só para que o senhor possa nos abençoar. Eu quero muito que o senhor vá”.

O estômago de Mateus pareceu retorcer. A dor foi tal que ele se dobrou sobre o asfalto. O estrondo do próprio pulsar aumentou. O zumbido era agonizante. Vestido com a mesma roupa há quatro dias, sujo com os próprios excrementos, sem banho, magro, sob o efeito da última paulada, Mateus só pôde chorar e aguardar que todos saíssem da festa em que sabia que era aguardado.

Permaneceu no escuro até que todos se despedissem da dona da casa. O apagar das luzes deu o sinal. Mesmo fraco, Mateus pulou o muro da casa, onde agora só a mãe dormia. A porta aberta revelou na cozinha os restos da ceia do noivado. Sanduiches, pedaços queimados de uma carne fria, macarrão e uma melancia. Comeu apenas um pedaço de pão. A sede foi saciada com um gole grande de água. No quarto, com o teto um pouco mais alto do que a própria cabeça, Mateus foi vencido pelo cansaço.

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Inteiramente nu, tal qual um titã que desafiou a lei de Zeus, Miguel dominava o fogo que queimava o seu maior objeto de desejo. E logo passou a dominar todos os seres humanos, e todos os deuses do mundo. Por alguns minutos, ele foi o maior herói que a face da Terra jamais viu. Por alguns minutos. Depois, tudo voltou ao normal.

O normal já não era mais normal. O normal é fraco, é tédio. Vira depressão. O prazer extremo fez Miguel ficar anestesiado em relação a outros prazeres. Sexo, comida, banho, brincadeira. Amor. Era pouco. A solução estava na rua. Mais uma paulada e tudo ficaria bem. Mas e o dinheiro? “Se eu levar meu relógio, ninguém vai perceber”, ele pensava. Naquele dia, não foi trabalhar.

Esperou o efeito passar, tentou se restabelecer e voltou para casa. Mas tinha usado tantas vezes seguidas, que só depois percebeu que esse intervalo havia durado dois dias. Estava imundo e cheirava mal. Tinha dormido na rua. Quando abriu a porta de casa, não precisou falar nada.  Em um dos momentos mais lúcidos da sua vida, enxergou no olhar dos filhos a expressão mais sincera, dolorosa e inconformada da decepção.

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“Faz quase dois dias que ele tá aí. Eu já não sei o que fazer”. “Ele é violento com a senhora?”. “Não, comigo nunca”. Dona Marta abre a porta do quarto e encontra o corpo do filho deitado com a barriga para baixo. Sabia que o filho estava debilitado e, antes de qualquer sermão, precisava de uma noite de sono. Nessas ocasiões era comum acordar com o filho gritando enquanto sonhava. “Meu filho, esse é o pastor Marcos que eu tinha te falado”. O homem pergunta: “Mateus, você está com fome ou sede? Podemos comer juntos?”

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“Eu quero morrer.”

“Não fala besteira. Se você quisesse mesmo morrer, se jogava de um prédio e pronto. Você tá arrumando uma justificativa pro seu erro. Me fala a verdade.”

“É isso. Pra mim a vida não tem mais sentido. Tô fazendo uma operação suicida.”

Quando o isolamento e o comportamento estranho se tornaram rotina, Daniel era o único na família que tinha coragem de bater na porta do quarto do pai e tentar entender o que estava acontecendo. Mesmo assim, nunca saiu de lá com a resposta que queria.

Resposta essa que nem Miguel tinha. Pela primeira vez na vida, não soube se expressar por palavras. Os diálogos paternais repentinamente se tornaram silêncio. Miguel já não olhava seus filhos nos olhos. Sua expressão, outrora assertiva e segura, se deformava e a cabeça só conseguia ficar baixa. Olhos fixos no chão, no prato de comida, na TV. A vergonha era grande demais para dormir na mesma cama que sua esposa.

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A fome agora é quase insuportável. Mateus engolia toda a comida sobre a mesa mesmo antes que sua mãe, insistentemente, tentasse esquentá-la. Do outro lado da mesa. O Pastor Marcos, de traz de seus óculos grossos, parecia achar graça da fome do homem. “Eu também passei por isso, sabe?”- começa Marcos- “Fui viciado por dez anos. Sei o que é essa fome e o seu sono”. “Tem café, mãe?”. Marcos continua como se a interrupção de Mateus não tivesse existido: “Sabe que a gente tem uma igreja lá em Vinhedo que você iria gostar de conhecer”. “Agora não dá, eu tenho que voltar pro trabalho”. “Mateus, você sabe que precisa de uma ajuda. E a gente pode te ajudar”. “Eu sei o que vocês querem e vão pra puta que pariu”. “Filho!”. “Calma, dona Marta, ele só está cansado”. “Mateus, eu não estou pedindo por mim, peço pela sua mãe. Vamos conhecer a igreja. É só para conhecer.”

Mateus já sabia que isso aconteceria uma hora. Resolveu ceder para acalmar a mãe. Amanhã, voltaria para a rua.

“Dia 21 de janeiro. Este é o dia da sua virada, Mateus”

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As saídas para a rua, cada vez mais frequentes, começaram a ter maior duração. Dois, três dias longe de casa. O cuidado que tinha para não deixar seu vício explícito à família era anulado pelas expressões de dores intensas que ele sentia quando voltava. Não só as dores físicas, como as sequelas da abstinência.

Bastaram alguns meses de uso cíclico para que o pai-heroi passasse a ocupar um papel inédito na posição da família: uma mistura do primo problemático que está de favor na casa dos tios com a vulnerabilidade de um filho recém-nascido que precisa de vigilância e assistência por 24 horas diárias. O filho, a filha e a esposa começaram a administrar seus horários para tentar se revezar em casa. Nem sempre conseguiam angariar um vigilante, principalmente durante as tardes de dias úteis. Nessas lacunas de visitas, Miguel não tinha dúvidas. Era bem mais fácil suprir suas necessidades. Não precisava inventar histórias, como em outras situações.

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Mateus dormiu ao longo dos 190 quilômetros que levam à cidade de Leme, onde uma casa de reabilitação a dependentes de drogas é mantida por uma igreja evangélica. No carro, D. Marta escutava do pastor Marcos que aquela saída seria a mais acertada para o filho. Quando Mateus acordou, já estava nas dependências do que o pastor chamava de "casa". O prédio principal da tal casa era uma construção alta com um paredão  voltado para a entrada do sítio. Ao fundo, uma pequena horta e muitas árvores. De dentro do prédio, saíram cerca de 50 homens que olhavam para o carro onde Mateus acabava de chegar. Os homens, inteiramente vestidos, mesmo sob um sol de quase 30º inquietou ainda mais o homem.

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Assim como a lógica entre posição de pai e filho se inverteu, o mesmo aconteceu com a ideologia de Miguel. O homem que era referência aos filhos por valorizar a verdade, naquele momento, não se importava em manipular a família para conseguir a próxima tragada. A princípio, uma saída para consertar o rádio era verossímil, mas quando Miguel retornava sem o aparelho e o dinheiro do conserto, com as típicas expressões de dores, sua credibilidade ia se desfazendo.

Era uma manhã de domingo. Daniel e Carol acordaram para buscar pão na mesma padaria que costumavam ir em família. Já se acostumaram a evitar olhares e desviar o assunto quando os camaradas de outros tempos perguntavam sobre seu pai. Toda a vizinhança sabia. Poucos realmente se preocupavam. Para eles, a insistência em saber do pai era uma maneira barata de expor Miguel a uma plateia desocupada. E eles se isolavam cada vez mais.

Depois do café da manhã, o filho tomou um banho demorado e tentava esconder a ansiedade. Iria conhecer a família da sua recente namorada. Debaixo do chuveiro, imaginava com que palavras e que assuntos ele poderia impressionar o sogro e a sogra. Metodicamente, escolheu a roupa ideal para o encontro: sóbria, mas despretensiosa. Dispensou o colar grosso de prata que sempre usava nas baladas de hip hop, onde trabalhava.

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Nada poderia demover Mateus da certeza de que o seu destino ali seria apenas mais uma prisão. Depois dos anos de Febem e mais tantos outros no "sistema", Mateus não desejava ser um interno mais uma vez. Quis chorar, em vez disso, berrou. Apelou à mãe. Tentou com o pouco de forças que lhe sobrava debater-se contra um homem negro e com o dobro de sua altura que tentava lhe acalmar. Cedeu quando não tinha mais forças e viu a mãe o abandonando pela porta da tal casa. Outros tantos homens aproximaram-se e disseram que tudo se acalmaria. Chamaram-no de irmão.

Um sino alto tocou ao final da tarde e Mateus viu os homens seguirem todos para uma mesma direção. O fato pareceu reforçar a impressão de que aquilo era realmente uma prisão. Um dos "irmãos" explicou a regras da casa, confirmando o que Mateus imaginara. Acordar, trabalhar, almoçar, rezar, trabalhar, rezar, jantar, rezar e dormir: todas as atividades eram determinadas pelo rígido, insistente e estridente sino.

Aquele toque específico do sino chamou os internos para uma janta, que Mateus recusou. Viu os homens formarem uma fila diante do que parecia ser um refeitório. Antes de comerem, iniciaram um estranho ritual em quer todos começaram a gritar. Pareciam pedir algo, mas gritavam muito alto e cada um a sua maneira e com um pedido único. Pareciam línguas diferentes. Era um bocado de bocas gritando sem se entenderem. Cessaram de modo sincronizado e iniciaram uma oração que, esta sim, Mateus reconhecia.

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O problema veio logo em seguida. Assim que deu partida no seu Chevette, um presente antigo do pai, Daniel percebeu que não iria tão longe dali. Miguel fez o raio-X do motor do carro, falou qual era o problema e em que oficina deveriam ir. Já fazia uma semana que ele não apresentava sinais de uso de drogas. Talvez tivesse chegado o momento certo de ajudá-lo a se sentir útil e recuperá-lo dos complexos que o atraíram às drogas.

Miguel se ofereceu para levar o carro à oficina do Paulão, e assim foi feito.

“Quanto custou o conserto, pai?”

“Aquilo não tinha conserto, não, filho. Aí apareceu um cara que quis comprar... Sabe como é. Tava precisando quitar umas dívidas...”

“Que dívidas?”

“Umas aí, que eu tinha antes de vocês nascerem.”

“Por quanto você vendeu o carro?”

“400 reais.”

O heroi já não salvava mais ninguém.

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Em seguida, um homem gordo, trajado em bom paletó e carregando um livro debaixo do braço, desceu a escada que vinha da rua e acompanhava o paredão rosa. O tal homem sentou-se ao lado de Mateus e não tardou:

“Aqui a gente trabalha com Deus, sabe? A gente faz um trabalho de formiguinha. Mas o Satanás é o que está atrás disso”

“Disso o que?”

“Das drogas, ué. E isso tudo vem das plantas,né? Deus não fez isso para a gente ficar drogado. Mas Satanás mostra o uso errado. Mas você não quis comer, meu filho? A sopa de chuchu não está boa?”

“Não to com fome”“Tá sim, meu filho. Eu sei que está. Essa sopa tem tutano de boi, sabe? É para fortalecer”.

Depois de um breve silêncio, Mateus reuniu um pouco de sua raiva para se confessar ao homem:

“Eu quero é morrer, da forma mais rápida. Eu quero é dar cabo da minha vida”.

“Olha aqui, meu filho. Isso vai ser seu apoio”, disse o homem apontando o dedo gordo para um parágrafo no livro que trazia. Ele empostou a voz recitou os versos, enquanto Mateus o escutava.

"Ele, porém, foi ao deserto, caminho de um dia, e foi sentar-se debaixo de um zimbro; e pediu para si a morte, e disse: Já basta, ó SENHOR; toma agora a minha vida, pois não sou melhor do que meus pais.

E deitou-se, e dormiu debaixo do zimbro; e eis que então um anjo o tocou, e lhe disse: Levanta-te, come."

1 Reis 19:4-5

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Em momentos de lucidez, toda a inteligência de Miguel era canalizada para manipular pessoas e construir situações para conseguir a próxima pedra. Por outro lado, sofria com a reação da família e com a desconstrução do papel de pai. Para ele, o maior castigo que poderia ser dado a ele era a maneira indiferente com a qual ele era tratado. Gradativamente, as funções de aconselhar, tomar as decisões da casa e ajudar com as contas foi passado para Daniel. E era ao seu filho de 20 anos que ele deveria obedecer, sem pestanejar.

“Por que eles não desistem de mim, de uma vez por todas?”, era a pergunta que Miguel se fazia diariamente. No fundo, ele sabia que isso nunca iria acontecer. O abandono da família é uma situação cômoda para um dependente de drogas. Não há referências de certo e errado, de bem e mal. No caso de Miguel, a vergonha estava lado a lado, sempre apontando o dedo diretamente para ele e pedindo uma mudança de atitude. E ao mesmo tempo a vontade era tão grande...

Começaram as auto-mutilações. Miguel pediu para ser internado em uma clínica por um mês ou dois. Na profundeza da sua consciência, ele sabia que o problema não seria resolvido. Mas era uma forma de sofrer, como um mártir que só visava o bem-estar da família - e assim impressioná-la. Também queria aliviar a responsabilidade que seus filhos tinham com ele, para garantir o mínimo de dignidade paterna.

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Sete meses - e muitos Acordar, trabalhar, almoçar, rezar, trabalhar, rezar, jantar, rezar e dormir- depois do encontro, Mateus jura que foi por força divina que tornou-se um novo homem. E após uma hora e quarenta minutos de entrevista e 26 horas dentro do que ele insistia em chamar de casa, tive que admitir - mesmo sendo um agnóstico não praticante- que Mateus tinha a sua razão. E a fé parecia bastar para que ele se apoiasse e tentasse buscar ser um novo homem. Desejo sorte a ele.

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Mas, depois de algumas tentativas de internação, veio a frustração. O fracasso seguido da expectativa era muito mais letal. Nem ele, nem os filhos, e muito menos a esposa aguentavam a dor da decepção. E ficaram anestesiados. Não havia mais perspectiva, objetivos, terapias, punição. Era só cansaço. E apatia.

“Por que vocês três estão saindo juntos? Vocês vão me internar à força!”

“Não seja idiota. Ninguém vai te internar contra a sua vontade.”

“Então o que vocês estão aprontando?”

“Você quer saber mesmo? Então eu vou te falar. Estamos indo encontrar uma jornalista e contar o sofrimento que passamos dentro de casa”.

E, com uma ternura quase juvenil, os três me confidenciaram uma interpretação muito lúcida da personalidade de Miguel. “As pessoas usam drogas porque tiveram algum problema. E, pra mim, foi uma forma de lutar, de fazer alguma coisa. Pode ser da maneira errada, mas pelo menos eles tentaram. Talvez eles sejam mais herois do que as pessoas que se matam.”

Paradoxalmente à decepção, a admiração permanecia intacta quando os filhos tiravam a armadura que foram obrigados que construir.

Uma semana depois, Miguel pediu para ser internado novamente.

Ele permanece em tratamento.



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