Uma das doenças mais antigas de que se tem registro, a hanseníase é uma infecção bacteriana que ataca a pele e o sistema nervoso, chegando, nos casos mais graves, a provocar deformidades físicas. Durante longo tempo conhecida como lepra, denominação banida por lei em 1995, ela fora associada ao pecado e ao castigo divino em textos bíblicos. Essa fama fez com que, por anos, as pessoas acometidas por ela fossem alvo de preconceito e segregação. Hoje, porém, sabe-se que atinge apenas 5% da população mundial. O tratamento, realizado com medicamentos, permite controlar a sua transmissão, garante a cura completa e, se iniciado cedo, evita o surgimento das lesões.
Mas, entre as décadas de 1920 e 1990, a prática adotada pelo Brasil no controle da doença era bastante diferente. Os doentes eram privados do convívio social e internados em hospitais-colônia afastados dos centros urbanos. Essa prática, conhecida como isolamento compulsório e instituída por lei federal, determinava também que os filhos nascidos nesses lugares fossem separados dos pais e enviados a educandários. Estima-se que, em virtude disso, 40.000 brasileiros tenham crescido longe dos pais sem qualquer pista de sua origem.
As vidas de muitos desses filhos se confundem com a história de Maria Teresa da Silva Santos Oliveira, a que todos costumam chamar apenas de Teresa.
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Marisa e o outro lado da história
“Nascida... a 13 de maio... de 1956... à rua... Santa Leocádia... nº 15”. Eram essas as palavras que intrigavam a pequena Maria Teresa da Silva Santos Oliveira de onze anos em mais um dia de aula. E o que a incomodava não eram as letras invertidas das fotocópias da época. Nem o fato de estar apresentando à escola uma cópia de sua certidão de nascimento para se matricular no quinto ano preparatório para o ginásio, somente cursado por alunos com baixo desempenho.
Ora, se a mãe, Yolanda da Silva Oliveira, sempre lhe dissera que havia nascido na Maternidade São Paulo, por que ali constava o endereço de seus avós paternos? E por que o registro só fora feito em março de 1957, quase um ano após o seu nascimento? Tão incomum quanto o documento em si, fora a relutância do pai, Antonio Oliveira, em entregá-lo. Inúmeras perguntas assaltavam a mente de Teresa e a elas misturava-se a lembrança de conversas reservadas, que eram abruptamente interrompidas em sua presença, e de cochichos que, como passara a notar desde os nove anos de idade, a perseguiam aqui e acolá.
No mesmo dia, ao voltar para casa, na região de Santana, a menina teve de se contentar com a simples resposta de que a certidão era “assim mesmo” e aceitar a ideia de que, naquele tempo, era comum os registros serem realizados com atraso. Na concepção de muitos pais de então, crianças não mereciam muitas explicações, por isso, Antonio e Yolanda não entraram em detalhes, nem deram espaço a novas questões por parte da filha. Mas, para Teresa, aquele “é assim mesmo” não era o suficiente, muito menos justificava o excessivo zelo do pai para com o documento.
Não encontrando outro meio, nos anos que se seguiram, ela empreendeu, em sua própria casa, uma longa e solitária busca: quando os pais não estavam, Teresa corria a abrir gavetas com o auxílio de uma chave de fenda e a vasculhá-las à procura de tudo que pudesse trazer à tona uma história que, acreditava, todos insistiam em lhe esconder. A constatação de que a família não possuía fotografias de seu nascimento ou anteriores aos seus quatro meses de idade apenas reforçava as suspeitas e os comentários cada vez mais frequentes de que havia sido adotada.
Em uma dessas sigilosas explorações, então com treze anos, Teresa descobriu uma receita do pediatra que a tratava quando ainda era bebê e a guardou consigo. Aos quinze, com autonomia para andar de ônibus sozinha, procurou o médico, que confirmou ter cuidado dela somente a partir dos quatro meses. Não era o bastante. Foi ao Hospital São Paulo e não encontrou lá qualquer registro de seu nascimento. Enfim, podia quase afirmar que era filha adotiva de Antonio e Yolanda, mas decidiu não retomar o assunto com eles.
Seu Antonio com Teresa nos braços, Dona Yolanda (ao centro) e Clarice, a babá
A confirmação, porém, Teresa só ouviria da boca dos pais aos dezenove anos e em circunstâncias que até hoje lamenta. Certa noite, voltando do cinema em torno das onze e meia, ela encontrou a porta trancada. Imediatamente, lembrou-se de que o relógio de cabeceira da mãe havia parado na marca das três horas da manhã, mas o pai já a esperava do outro lado e começava a repreendê-la por conta do horário. Em meio à discussão que se seguiu, Teresa não se conteve: “vocês é que me devem muitas explicações, não eu, porque eu sei que eu sou adotada e vocês não contam”. Surpresos, os pais confessaram a adoção, disseram que aquilo, no entanto, nunca fizera qualquer diferença, que ela sempre fora “filha de coração” e... nada mais.
Embora esperasse mais do que a simples certeza, preferiu respeitar o silêncio dos pais. Imaginava que o tema fosse para eles bastante doloroso. Além disso, realmente, não podia se queixar de ter sofrido qualquer discriminação, afinal, sempre fora tratada por toda a família com muito carinho e atenção.
O tempo seguiu seu curso rotineiro. Teresa graduou-se em Serviço Social, Pedagogia e Administração de Empresas, mas, enquanto os colegas pareciam concretizar os seus planos futuros, casando-se, constituindo família, conquistando um bom emprego, enfim, descobrindo um sentido para suas vidas, ela acreditava ter ficado para trás. Dizia a si mesma: “não adianta: você precisa ter tido um começo, para fazer um meio e chegar a um fim”. Sentia que estava “no eixo errado: eu não estava vivendo a minha história, eu vivia uma história que eu tinha inventado pra mim”. O fantasma de sua origem continuava a lhe assombrar.
O que sabiam, Yolanda e Antonio levaram para o túmulo, a mãe em 1993 e o pai em 1994. O vínculo mais próximo que lhe restara era o irmão mais velho, Maurício Oliveira. Desconfiava que ele soubesse de algo, mas Maurício sempre evitava o assunto. A impressão de que ele lhe negava as respostas às dúvidas que a consumiam acabou por distanciá-los. Em 2000, Teresa muda-se para Barueri, rompe relações com os familiares e passa o Natal e a virada de ano longe de todos.
Em 2001, Maurício decide quebrar o silêncio e se reconciliar com a irmã. Apreensivo, conta a Teresa que, filha biológica de portadores de hanseníase, ela fora encaminhada com poucos meses de vida para a Creche Carolina Motta e Silva, que funcionava em Pinheiros. Diante da situação crítica em que se viam as instituições que acolhiam os filhos dos doentes, em meados da década de 1950, a imprensa dá início a uma ampla campanha de incentivo à adoção das crianças. Sensibilizados por um programa de televisão, Antonio e Yolanda resolvem visitar a creche no mesmo dia e, assim, têm o primeiro contato com a filha adotiva.
Segundo o irmão, aproveitando a oportunidade, a TV Tupi televisionara a adoção: enfim, Teresa entendia o motivo dos olhares, dos cochichos e dos dedos que, aqui e ali, apontavam para ela e para os pais. A emissora transmitia um quadro intitulado Clube do Papai Noel, que, além de contar a história toda, presenteou o casal com um jogo completo de móveis para o quarto da criança, à moda do que ainda fazem programas dominicais comandados por apresentadores como Gugu e outros. “Foi um acontecimento, um verdadeiro sensacionalismo... aquelas coisas que até hoje acontecem, quando a sua história vira entretenimento para outras pessoas em horário nobre e muitos pontos no Ibope, que envolvem milhares de patrocinadores, vendendo seus produtos enquanto eu era o produto”, considera ela ao avaliar tudo isso atualmente. O espetáculo estampara também as páginas da revista Intervalo, publicação dedicada ao universo televisivo, que a mãe buscou a todo custo evitar que chegasse aos olhos da filha.
A exposição do caso fora tamanha que chegou a provocar desentendimentos na família. O irmão de Dona Yolanda, à época sócio de Seu Antonio, se queixara de que a empresa havia aparecido nas gravações. Ele temia que a associação das imagens com a adoção de “filhos de leprosos” pudesse representar qualquer ameaça aos negócios. O casal tinha, assim, uma prova do preconceito que a filha poderia enfrentar e, desde então, buscando protegê-la, jurou segredo sobre a sua origem e decidiu que ela jamais teria de carregar aquele fardo. “Meus pais adotivos sofreram pra caramba por essa postura, essa coragem, mas foram em frente, até aonde eles puderam negar pra mim, eles negaram”, comenta Teresa.
Teresa e seu irmão Maurício
Em meio à narração, Maurício entrega-lhe um recorte de jornal, dizendo que ali ela encontraria mais detalhes da história.
A reportagem d’O Estado de S. Paulo revisitava os tempos do Serviço Nacional de Lepra e do isolamento compulsório dos portadores de hanseníase: desde a década de 1920, as pessoas acometidas pela moléstia eram privadas de sua liberdade e internadas em hospitais-colônia, conhecidos como leprosários. Essa prática fora, posteriormente, oficializada pela legislação federal e adotada em todo o território nacional. Até então, não se conhecia a cura para a doença e acreditava-se que ela fosse altamente contagiosa.
Os doentes, em geral, procuravam o serviço de saúde por vontade própria. Outros, alvos de denúncias anônimas, que não raro partiam de vizinhos, eram capturados pela polícia sanitária e escoltados até as autoridades competentes – em São Paulo, um camburão corria as ruas à caça deles. Confirmado o diagnóstico, os portadores de hanseníase eram imediatamente arrancados de sua situação estável e do convívio social, que, vez ou outra, já vinha se esfacelando por conta do preconceito em relação à doença. Perdiam suas famílias e seus empregos. Alguns chegavam, até mesmo, a ter as suas casas e seus pertences incendiados. Sem demora, eram embarcados em vagões especialmente adornados com o alerta Moléstia Contagiosa rumo aos hospitais-colônia. Lá, encontravam um mundo à parte, em alguns casos com seus próprios cinemas, teatros, cadeias, igrejas, cemitérios, prefeito e, até mesmo, moeda. Privados do contato com os familiares e com o exterior, não tinham muita alternativa a não ser reconstituir ali vidas tão artificiais quanto essas cidades. Assumiam postos de trabalho que, sem qualquer critério, lhes eram ofertados, se envolviam em novos relacionamentos e, comumente, tinham filhos.
Muitas vezes, a tragédia do internado se alastrava por toda a sua antiga família, tornando insustentável a sua sobrevivência e provocando a sua desestruturação: quando a mãe era internada, sozinho, o pai não dava conta de trabalhar e cuidar dos filhos, já quando o fado recaía sobre o chefe de família, a mãe não tinha condições de garantir-lhes o sustento. Além de crescerem longe de um ou, em alguns casos, dos dois genitores, muitas dessas crianças se viam obrigadas a partilhar, quando não dos mesmos, de semelhantes ou, às vezes, piores destino e exclusão que os de seus irmãos que nasciam nos leprosários: sofriam na mão dos novos cônjuges maternos ou paternos, eram discriminadas e expulsas da escola, encaminhadas para orfanatos ou pereciam na miséria.
Frutos de romances pregressos ou dos que tinham início no interior dos próprios hospitais-colônia, os bebês que ali nasciam eram higienizados, batizados e, imediatamente, encaminhados para educandários específicos conhecidos como preventórios. Diante do risco de contaminação das crianças, nem mesmo à mãe era permitido qualquer contato. Recém-nascidas, elas enfrentavam longas viagens de trem ou de caminhão. Algumas não resistiam, outras tinham a sua saúde gravemente prejudicada. Rejeitadas por seus parentes como potenciais vetores da infame doença, imortalizada na memória de todos pela Bíblia, na maioria das vezes, elas permaneciam nos preventórios mesmo após completarem seis anos de idade. Esse era o período mínimo de observação exigido como medida profilática, após o qual os familiares podiam buscá-las. As que ficavam, quase todas elas, eram disponibilizadas para adoção.
No estado de São Paulo, essa política sanitarista fora comandada pelo Departamento de Profilaxia da Lepra (DPL). Os principais destinos dos doentes eram o Sanatório Santo Ângelo, em Mogi das Cruzes, o Hospital Lauro Souza de Lima, em Bauru, o Leprosário de Guarulhos e o hospital-colônia de Itu. As crianças, por sua vez, eram enviadas a apenas dois lugares: à Associação Santa Terezinha, em Carapicuíba, ou ao Preventório de Jacareí, na cidade de mesmo nome.
A reportagem dizia ainda que, embora o isolamento compulsório tivesse sido legalmente abolido em 1969, na prática, ele perdurara até o final da década de 1980. Como exemplo, apresentava a história de Raimunda Juca Vieira, que fora internada no Sanatório Santo Ângelo em 1973. Com sequelas da doença nas mãos e sem o apoio de qualquer programa de reintegração ao núcleo familiar e ao convívio social por parte do Estado, ela não se readaptou à vida fora do hospital-colônia quando a partida fora autorizada. Para lá, Raimunda retornara pouco tempo depois, na década de 1990, ocasião em que a Secretaria Estadual de Saúde permitira o regresso dos ex-internos ao Santo Ângelo. Segundo o jornal, desde então, ela morava lá em companhia de pacientes remanescentes.
Buscando, assim como os pais, proteger a irmã adotiva e assumindo o discurso de sua profissão de médico, o irmão pede a Teresa que não visite os hospitais-colônia. Ciente da maior suscetibilidade dos filhos de portadores de hanseníase em adquirir a doença, ele temia que ela viesse a contraí-la. Mas a irmã já não lhe ouvia. Finalmente tinha uma pista e nada no mundo lhe impediria de resgatar o seu passado.
Contrariando o pedido de Maurício, em pouco tempo, Teresa já havia conseguido junto aoEstadão o contato de Raimunda, que aparecia na reportagem. Prontamente, telefonou para a moradora do Sanatório Santo Ângelo, explicou a sua história e pediu que ela procurasse por seu batistério no hospital-colônia. Raimunda concordou, mas precisaria de mais algumas informações: “como é mesmo o seu nome?”. Do outro lado da linha, estava prestes a responder “Maria...Teresa”, quando, inexplicavelmente, lembrou-se que Dona Yolanda sempre lhe dissera que o primeiro nome que havia escolhido para ela era Maura Regina, mas que optara por Maria Teresa por ser devota de Santa Teresinha. Intuitivamente, disse à prestativa senhora: “eu acho que devia me chamar Maura Regina”. Solicitou, então, que ela buscasse, por meio desse nome, o registro de batismo de uma menina nascida em 13 de maio de 1956.
No dia seguinte, Raimunda retribui a ligação, relatando que havia mesmo encontrado um batistério em nome de Maura Regina, mas a data de nascimento que nele constava era 12 e não 13 de maio de 1956. Teresa decide tirar a história a limpo, então, viaja até Mogi das Cruzes. No Sanatório Santo Ângelo, é recebida pela ex-paciente, que, além do registro de batismo, lhe apresenta o prontuário médico de Maria José Amélia, mãe da criança. Entre os documentos, havia duas fotos: “quando eu vi a foto da minha mãe biológica, eu não tive mais dúvida de que era eu”, recorda Teresa. Era mesmo Maura Regina e nascera exatamente ali, no Sanatório Santo Ângelo.
No hospital-colônia, ela encontra também pessoas que conheceram a sua mãe biológica e que lhe contam um pouco sobre ela. Maria José Amélia estivera internada de 1923 a 1988, praticamente a sua vida inteira. Tivera de abandonar a cidade de Guaranésia, em Minas Gerais, onde morava, para se tratar no estado de São Paulo, que oferecia melhor suporte, deixando para trás e aos cuidados da família seus dois filhos. Nunca se conformara com o destino que se abatera sobre ela, por isso, vivera nas ruas e buscara o consolo no álcool. Quando se via um pouco melhor, costumava fugir e só retornava nas situações mais críticas. Esse comportamento a fez percorrer diversos leprosários do estado. No Sanatório de Cocais, na cidade paulista de Casa Branca, dera à luz duas outras filhas.
Lá, Teresa conhece também Amezina Batista dos Santos, colega de quarto de sua mãe biológica. Ela relata que, quando deixara o Sanatório Santo Ângelo pela última vez, Maria José Amélia tinha a saúde bastante debilitada e apresentava lesões provocadas pela hanseníase no nariz e nos pés. Antes de fugir, a amiga lhe confidenciara que sairia em busca das filhas e que, caso não as encontrasse, sumiria no mundo e ninguém voltaria a vê-la.
Antes que Teresa retornasse a Barueri, Raimunda lhe fornece mais algumas pistas: as crianças que nasciam em Santo Ângelo eram enviadas para a Associação Santa Terezinha, em Carapicuíba, para o Preventório de Jacareí ou para Jundiaí. Em algum desses lugares, ela poderia recuperar mais uma parte de sua história. A sua jornada estava apenas começando.
Em julho de 2002, dando continuidade à sua busca, Teresa resolve começar pela instituição mais próxima de casa: a Associação Santa Terezinha. E acerta na primeira tentativa: Irmã Lina, a freira que a atendia, logo estava de volta trazendo-lhe não apenas o seu, mas também os prontuários de suas duas irmãs, Elza e Marisa. Mal podia acreditar que as respostas estivessem sempre tão próximas: “quando vou de trem para São Paulo, passo obrigatoriamente em frente à associação... passava ali pela Castelo e dizia: mas o que será que é lá, parece que tem uma igreja? Era lá, sabe?”.
Maria José Amélia escreve à Associação Santa Terezinha
Nos prontuários, encontrou também cartas que a mãe biológica enviara à associação, pedindo notícias das filhas e do seu paradeiro. Observações deixadas pela administração indicavam que poucas vezes Maria Amélia recebera respostas. Naquela época, os pais tinham pouco ou nenhum contato com os filhos. Os que raramente tinham a chance de visitá-los eram obrigados a se contentar em revê-los através de vidraças de proteção. As cartas dificilmente chegavam ao seu destinatário, pois, eram interceptadas e violadas pela direção dos preventórios, à qual cabia também julgar se o conteúdo era “nocivo” à criança e censurar denúncias de maus-tratos. Apesar de muitos pais se esforçarem para conseguir ao menos uma foto dos filhos, somente alguns sortudos que tinham amizade com funcionários dessas instituições alcançavam esse feito.
“Elza e Mariza”. No Sanatório Santo Ângelo, Teresa já descobrira que tinha duas irmãs. Com seus nomes, porém, tinha mais esperanças de encontrá-las.
Nos documentos das irmãs, Teresa descobriu registros de muitas adoções que não deram certo. Soube, então, que elas haviam tido uma infância muito diferente da sua: “elas permaneceram o tempo inteiro delas aqui na Associação Santa Terezinha e, daqui, quando elas tinham tipo nove, dez anos, elas foram rifadas, foram doadas para famílias que queriam empregadinhas”. Por alguns anos, Elza e Marisa conviveram lado a lado sem jamais saber de seu parentesco.
A princípio, Teresa hesitou em procurá-las. Não estava segura de que queria realmente ir adiante e desenterrar aquele passado triste e incerto. Tudo acontecera tão rápido que não conseguira assimilar toda a história e ainda se recusava a aceitá-la: “cheguei a ter pena de mim... escondi no armário os documentos que certificavam esta origem e tentei seguir meu caminho”.
Com o tempo, no entanto, Teresa reavaliou a importância do conhecimento de sua origem para a sua vida e teve a certeza de que sem isso não encontraria um caminho a seguir. Com sua convicção renovada, começou a buscar as irmãs por meio de sites da internet. Não obteve êxito, mas, em meio a suas pesquisas, acabou conhecendo o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), primeira organização no mundo formada, em 1981, por doentes, ex-doentes e voluntários a se dedicar à erradicação da doença e do preconceito em relação a ela. Imediatamente simpatizou com o movimento e sua luta pela reparação dos danos causados pelo isolamento compulsório.
As injustiças desencadeadas por aquela política sanitária continuavam a pesar na consciência de Teresa. Quantas famílias não teriam sido destruídas? Quantos, como ela, não teriam sido privados do conhecimento de sua própria origem? Quantos não teriam crescido longe dos pais? Quantos não teriam sofrido com adoções infelizes como suas irmãs? A quantos não fora negada uma vida digna? Por todos esses motivos, ela decide se inscrever como voluntária no Morhan. Além da exclusão sofrida pelos doentes, ela faria todos saberem que havia ainda outra história a ser reparada: a dos filhos separados. Encontrava, enfim, um caminho a seguir.
Ainda em 2002, Teresa engaja-se na defesa dos direitos dos isolados e contribui para a primeira grande vitória do Morhan: a conquista da indenização para os ex-internos de hospitais-colônia em maio de 2007. Comemora o feito, mas faz questão de lembrar aos colegas que aquilo era só o começo e que havia ainda outras vítimas a serem financeira e moralmente indenizadas: os filhos.
Em janeiro de 2010, na sede do Morhan, no Rio de Janeiro, sua persistência e seus esforços são coroados com o convite para coordenar a Comissão dos Filhos Separados pelo Isolamento Compulsório. “Janeiro mudou meu eixo... eu sempre disse que eu queria ter uma grande causa, eu só não sabia que a minha grande causa era a minha vida mesmo”, relata Teresa. Ela aceita a oferta, abandona o emprego, passa a dividir moradia com uma amiga e se entrega integralmente à coordenação. E as irmãs? As reencontraria quando o destino quisesse ou a causa, inevitavelmente, as reunisse.
Teresa discursa em reunião do Morhan
A busca por Elza e Marisa e o seu trabalho à frente da comissão pareciam se cruzar logo em seu primeiro projeto: um recenseamento dos filhos separados pelo isolamento compulsório. A coordenadora cria um formulário para identificação dos filhos, promove uma ampla divulgação e, posteriormente, chega a identificar 10.000 deles.
Nas visitas aos hospitais-colônia, ao lado do coordenador nacional do Morhan, Artur Custódio, Teresa percorre diversos estados brasileiros e se torna conhecida por quase todos os engajados no movimento. A partir daí, tem contato mais próximo com a hanseníase: “as lesões das pessoas me incomodavam e quase desisti”. Aos poucos, ela se acostuma e o que passa a lhe impressionar são os relatos dos filhos: “eu comecei a me assustar já lá no Rio mesmo porque eu sai da reunião e, assim, já vieram uns dois, três filhos conversar comigo, vir contar as histórias”. Surpreende-se com denúncias de abusos sexuais e outras humilhações pelas quais eles tiveram de passar nos preventórios espalhados por todo o país: “a história das minhas irmãs é light perto de tudo que eu já ouvi”.
De volta a São Paulo, Teresa funda o Morhan Barueri e dá continuidade à sua batalha pela indenização dos filhos separados. Em 17 de março de 2010, inesperadamente, recebe a notícia de que, por meio do formulário, uma de suas irmãs, Marisa, fora localizada.
Enquanto Teresa experimentava alegrias e frustrações como filha adotiva em Santana, na cidade vizinha de Carapicuíba, Marisa Luchetti completava 18 anos, a idade máxima de permanência no pensionato feminino em que vivia. Permanecera na Associação Santa Terezinha até os nove e do tempo que passara lá lhe restavam apenas recordações. Apesar de todos os problemas decorrentes de uma infância sem pais, fora no preventório que começara seus estudos e fizera grandes amigos. Naquele dia, além do pedido para deixar o pensionato, a assistente social tinha para ela outra novidade: Marisa só crescera como órfã porque era filha de “leprosos”.
Associação Santa Terezinha hoje, mudou pouco do que era na época de Marisa
“Eu tenho aqui o endereço do médico que fez o seu parto, ele pode te explicar melhor, você quer Marisa?”, perguntou-lhe a assistente. Imediatamente, respondeu que sim, queria saber mais sobre sua origem, afinal, daquela história não lhe restara muito. Em sua certidão de nascimento, descobrira que os pais se chamavam Paulino Luchetti e Maria José Amélia. Além dos nomes, no entanto, o documento só lhe informara a cidade natal do pai: Araraquara. Isso era tudo o que conhecia até então.
O médico conta a Marisa que, naquela época, São Paulo enfrentava uma epidemia de hanseníase e que, como não se conhecia a cura, os doentes eram isolados em hospitais-colônia. Seus pais estiveram internados no Sanatório de Cocais, em Casa Branca, e fora lá que sua mãe lhe dera à luz em maio de 1957. Segundo o médico, como muitas das crianças que nasciam nesses hospitais, Marisa fora enviada para a Associação Santa Terezinha e não tivera qualquer contato com os pais por causa do risco de também contrair a doença.
A princípio, a jovem de 18 anos até tentou encontrar os pais, mas nunca conseguiu. O tempo e a atribulada rotina que levava para sobreviver fora do pensionato foram aos poucos minando as suas forças e a sua vontade. Passou a duvidar de que seu maior desejo fosse descobrir o paradeiro da mãe: “eu pensava assim: pô, se ela nunca veio atrás de mim, por que eu tenho que ir atrás dela? Eu falava assim: bom, deve ser uma perdida aí no mundo aí, que fez filho no mundo e jogou... achou que o mundo tinha que me criar e me criou”. Por tudo isso, acabou desistindo da busca.
A vida seguiu seu rumo: Marisa passou em um concurso para trabalhar na Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, se casou e teve filhos. Anos mais tarde, em seu emprego, conhece Paulo, que viera de Araraquara, e conta a ele que a família de seu pai era de lá. Em uma de suas visitas à cidade, o colega se dispõe a procurar pelos parentes que ela jamais encontrara. Marisa aceita a oferta e, em pouco tempo, Paulo estava de volta com o endereço de seus irmãos.
Por insistência dos filhos, que viviam se perguntando se teriam avós, tios e outros parentes, ela decide procurá-los. Conhece, então, seus três irmãos por parte de pai: Mauro, Mário e Luís Paulo. Eles relatam que eram pequenos quando o pai fora internado, mas contam a ela o quanto sabem da história. Paulino conhecera Maria José Amélia no Sanatório de Cocais, em Casa Branca e, mesmo casado, se envolvera com ela. O pai passara em torno de um ano no hospital-colônia e, após voltar para Araraquara, se suicidou, tomando “formicida de tatu”, em novembro de 1956. A única evidência que os irmãos tinham do romance extraconjugal era uma foto de Maria José Amélia, que encontraram entre os pertences do pai após a sua morte. “Eles falavam assim que eu parecia muito com a minha mãe, tanto é que realmente, eu vi uma foto, e eu pareço mesmo”, comenta.
Com mais esperanças, Marisa volta a pesquisar o paradeiro da mãe: solicita informações ao necrotério de Casa Branca, consulta moradores e órgãos públicos da cidade. Mas, sem resultados, acaba desistindo novamente. No início de 2010, outro colega do trabalho, José Carlos, lhe apresenta o formulário do Morhan para identificação dos filhos separados. Também filho de portadores de hanseníase, ele crescera ao lado de Marisa na Associação Santa Terezinha. “Ele falou: ‘ah Marisa, vamos mandar, quem sabe?’”, recorda. A princípio, ela não se animou, mas “de tanto que ele insistiu, eu falei tá bom, vamos mandar”.
No dia 17 de março, ocupada com os afazeres do serviço, Marisa recebe um telefonema. Era sua irmã, Teresa, que ela nem imaginava que existia. Na conversa rápida que se seguiu, se perguntavam quando poderiam se encontrar pessoalmente. Teresa já tinha a resposta: se encontrariam durante a gravação de uma matéria para o Fantástico.
A transmissão pela Rede Globo viabilizaria os planos de Teresa em ampliar a visibilidade do movimento e da reivindicação pela indenização dos filhos separados. Por isso, ela aceitou prontamente o convite do Fantástico. Pensava: “a minha história tem que servir para essa causa andar”. O encontro com Marisa aconteceu em São Paulo cinco dias depois daquela ligação.
Certidão de nascimento de Teresa como Maura Regina não traz o nome do pai
Teresa pôde, então, conhecer seus cinco sobrinhos e trocar histórias com a irmã. Marisa sabia muito pouco sobre Maria José Amélia, assim, a irmã contou-lhe tudo o que descobrira no Sanatório Santo Ângelo, a ajudou a se livrar da mágoa que tinha da mãe e revelou-lhe que tinham ainda outra irmã a encontrar: Elza. Teresa, por sua vez, ouviu atentamente Marisa relatar o que escutara sobre a vida de Paulino Luchetti em Araraquara. Para preencher mais uma lacuna que faltava em sua história, já que em sua certidão de nascimento como Maura Regina não consta o nome do pai, Teresa decide considerar Paulino como seu pai biológico também.
Mas o destino reservava para elas mais uma surpresa: um mês depois, o Morhan já havia localizado Elza.
Elza Amélia chegou à Associação Santa Terezinha com dois anos de idade em 1956. No preventório, desde cedo, aprendeu o que é ter responsabilidades: “varrer, limpar os quintais, limpar o pátio, limpar o galpão, limpar o dormitório, a cozinha, o refeitório, tudo a gente que fazia aqui, todos nós... a gente tomava conta dos pequenininhos do berçário... eu e umas outras meninas, porque eles não colocavam moças adultas pra cuidar das crianças”. Com tantas obrigações, quando chegava a hora de estudar, ela só pensava em brincar: fugia das aulas, corria para o pátio e logo a freira responsável estava em seu encalço, pronta para lhe aplicar a palmatória e outros castigos.
Nos anos que se seguiram, porém, Elza fez daquele lugar o seu paraíso, seu porto seguro. Sempre ansiosa por visitas, pois sabia que muitos traziam presentes e balas, aos sete anos, fora levada do preventório por uma família que as freiras lhe apresentaram: “eu falei: vou conhecer pessoas novas, que bom”. Rapidamente, no entanto, descobrira que aquela não era uma adoção propriamente dita e que aquelas pessoas só estavam interessadas em fazê-la trabalhar. Sentia falta de suas companheiras e a única forma que acabou encontrando para retornar à associação foi chorar. Em pouco tempo, os que a tinham levado a devolveram à instituição. Durante boa parte de sua infância foi assim, passara por muitas dessas falsas adoções, mas sempre dera um jeito de retornar.
Elza Amélia na Associação Santa Terezinha
Entre os 14 e 15 anos, sem que ninguém lhe contasse qualquer coisa sobre sua origem, Elza deixa definitivamente a Associação Santa Terezinha para morar em Perdizes com um casal de italianos. A princípio, trabalhava de graça, pois, segundo os patrões, já recebia deles tudo de que necessitava. Ali, sofreu diversas humilhações e agressões da dona da casa: “até hoje dói...foi chute, eu tenho cicatriz nas pernas”. Como saíra do preventório sem qualquer orientação, só soube que eles não poderiam agir daquela maneira por meio da televisão. Foi também assim que conheceu seus direitos como empregada. Quando descobriu que havia uma delegacia perto dali, deu um basta às agressões, ameaçando denunciá-los. Com essa atitude, porém, não conseguiu pôr fim às humilhações.
Por volta dos 30, grávida, Elza deixa de morar com o casal. A patroa a mandara abortar, mas ela se recusara: “eu jamais vou tirar uma coisa que está dentro de mim, não importa o que ele é, mas ele é uma criança que não tem nada a ver com o problema da gente”. Passa, então, a viver com o marido, que viria a perder em 1993, quando o filho tinha apenas sete anos. Tempos depois, volta a trabalhar, e ainda hoje trabalha, para o mesmo casal: “eu perdoei, sabe? A gente tem que saber perdoar também”.
A vida acabara afastando Elza da busca por sua origem. De tanto a patroa lhe dizer que não tinha família, perdera as esperanças. Por isso, foi com desconfiança que recebera dela a notícia de que sua irmã havia telefonado naquele abril de 2010: “eu não tenho irmã, não tenho ninguém”. A patroa lhe entrega o número de Teresa e Elza liga para a irmã, que confirma a história e pergunta: “como a gente vai se encontrar?”.
Da esquerda para a direita: Marisa, Elza e Teresa
No dia 21 de abril, finalmente, as três irmãs se reúnem na casa da patroa de Elza. Teresa e Marisa lhe contam tudo que sabem sobre Maria José Amélia. Para Elza, que em lugar de amor de mãe conhecera apenas ordens de patrões, foi um alívio saber que não estava sozinha no mundo: “eu tinha até falado não vou chorar, essas coisas de chorar é besteira, que nada, quando eu vi, eu chorei, mas eu chorei muito”.
Reencontro de Elza e Marisa
Assistindo ao tão aguardado abraço de Marisa e Elza, Teresa percebe o quanto conquistou em oito anos de trabalho no Morhan. A busca por sua origem, que tivera início com as dúvidas sobre sua certidão, não apenas a levou até as irmãs, mas lhe deu uma causa e imprimiu um sentido à sua vida: “eu estou começando a fazer a minha história agora”. No momento, luta pela aprovação da indenização, que segue em estudo no Congresso, e para proporcionar o reencontro da família biológica aos milhares de filhos separados. Mas já faz planos para o futuro, ela quer também oferecer assistência psicológica aos que, até hoje, sentem as consequências dos abusos que sofreram: “essa história não tem fim...eu espero que os meus sobrinhos [biológicos] aprendam e amem a questão como eu porque eles têm a obrigação de resgatar a história das mães deles, dos avós, e continuar, pra que este trabalho que a gente começou não se perca”.
As irmãs seguem suas próprias vidas, mas se reencontram nas manifestações do Morhan pela reparação das injustiças cometidas contra os portadores de hanseníase e seus filhos.
Página eletrônica do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan): http://www.morhan.org.br/
Blog dos filhos separados pelo isolamento compulsório, administrado por Teresa:http://filhosseparadosmorhan.blogspot.com/
Histórias de ex-pacientes dos hospitais-colônia e informações sobre a doença:
Revista SESC SP, Edição 234, artigo 3667 [link]
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