Lanny Gordin está com fome
O maior guitarrista da Tropicália volta aos palcos após quase trinta anos de ostracismo. E os dedos continuam famintos
Por Martina Cavalcanti - Edição U-turn - dezembro de 2011
Lanny Gordin (crédito: Carol Mendonça)

- Lanny, tem comida no camarim...

- Tem comida, é?

- Tá bem bonita a mesa... Bem gostosa... Se você quiser mais tarde...

- Mais tarde eu como, mais tarde eu como...

- Ontem ainda eu fui comprar comida correndo, aquela mistura... Como é que chama? Granola. É, granola... O Lanny não tá comendo, sabe? Por isso tô perguntando se ele não quer comer. Ele só quer comer na rua. Mas eu ainda vou deixar ele gordo! Granola engorda, né? Eu ainda ponho sustagen e banana...

- Engorda mesmo granola?

- A dieta de granola dele... Cada meia xícara tem 250 calorias. Ponho uma xícara inteira, então são 300, 400 calorias... E ainda tem o copo de leite, a banana e a sustagen. Eu fico tentando dar para ele o máximo de calorias porque ele não completa as 1.800 calorias basais que ele precisa, né? Só come cafécompãocafécompãocafécompão. Me irrita, daí eu falo pra ele: ‘para de comer essa merda!’

- Uhum, uhum. Mas quando ela tá dormiiiindo e eu vou pras balaaaadas, eu como macarrão com frango, feijoada, lagosta, camarão, cabrito... Tudo de uma vez!

Enquanto aguarda o momento de entrar no palco do Centro Cultural Rio Verde, em Pinheiros, Lanny Gordin conversa com a sua mulher, Cristina, e o seu irmão, Tony. A apresentação deste dia 28 de novembro comemora os 60 anos do guitarrista, que já tem 46 anos de estrada.

O primeiro a subir no simpático coreto do espaço para tocar ao lado do lendário guitarrista é Olmir Stocker. Conhecido como Alemão, ele foi violonista do findado Brazilian Octopus, conjunto de música instrumental que gravou um único CD em 1968 e do qual também fez parte Hermeto Pascoal. Antes de tocar, Alemão faz questão de apresentar sua história ao lado de Lanny:

“ (...) Porém, na ocasião do Brazilian Octopus, a gente teve um primeiro conjunto do Hermeto Pascoal, que era eu, o Lanny, dois violonistas, o Dilon e o falecido Macumbinha (....) E o engraçado é que nós ensaiávamos e o Hermeto escolhia um tema, e a gente ficava tocando o tema o dia inteiro. Uma música só. Quando o Hermeto começava a tocar, pegava 30, 40 acordes. Chegava o ponto de: ‘ficou bom isso aí, ficou bom isso aí’. E o Hermeto e o Lanny se davam muito bem com o Macumbinha, então nos ensaios, eles ficavam conversando, riam, faziam piada e tal. Agora o que eu tenho que falar sobre o Lanny é que talvez eu seja 15 anos mais velho que ele e eu conheci ele muito novo. E eu diria foi um menino assim de ouro. Teve uma adolescência de ouro, passou por diversas dificuldades de família, aquelas coisas que não interessa a ninguém. Mas com todas essas coisas, ele sempre teve um grande sentimento de um ser humano. (...)”

Quando o depoimento do ex-parceiro musical chega aos oito minutos, Lanny começa a dedilhar suavemente a guitarra. O pedido silencioso do músico é atendido e, enfim, o instrumento passa a ser a única voz a ecoar no ambiente.

A apresentação segue com o Projeto Alfa e diversos nomes consagrados da música brasileira, como Péricles Cavalcanti e Edgar Scandurra, e músicos que recentemente ganharam a cena musical, como Criolo.

 

gordin no palcoAo lado do ex-parceiro Alemão, do Brazilian Octopus, Lanny não sossegou até ouvir só o som da guitarra (Crédito: Carol Mendonça)

 


Conteúdo:

Comendo na balada

Filé de frago

Pizza

O sétimo doce

Vomitando rock’n’roll

Praça de alimentação

Comedoria



Comendo na balada

Vestindo um terno preto e fumando o segundo cigarro, Lanny anda lentamente de um lado para o outro na entrada do Teta Jazz. As poucas pessoas que começam a chegar o olham de soslaio, duvidando se é mesmo um dos maiores músicos brasileiros que vai tocar no bar naquela noite de sexta-feira ou se a qualquer momento atravessará a avenida Cardeal Arcoverde para se juntar aos ilustres bustos do Cemitério São Paulo.

- Você é o famoso? Lanny não morreu?

- Éééhehehe...

- Vai tocar hoje?

- Éééééhehehe, vou sim...

- Tocar muita podreira, hein!

- Éhehehehe

Aos poucos que ousam se aproximar, o guitarrista responde monotônico, mas risonho e doce. Rebate os elogios com risos envergonhados, movendo os olhos do chão ao interlocutor e transformando a coluna vertebral em uma cadeira de balanço incessante.

Sozinho e pensativo, ele se distingue dos jovens músicos da banda Kaoll, que conversam e riem enquanto descarregam os instrumentos dos carros levando-os ao interior do bar onde o show deve começar dentro de duas horas com o guitarrista que dedilhou os acordes mais lisérgicos da Tropicália nos anos 1960.

Após alguns cigarros, Lanny entra no bar e para no balcão para comer, comer e comer. Toda vez que o guitarrista vai tocar lá, o dono do Teta, Zaca, faz um mimo a Lanny: oferece a ele comida de funcionários, com itens que não estão no cardápio, da mesma forma que acontecia quando tocava na tradicional Stardust, aos 16 anos.

 

 

Filé de frago

No seu primeiro disco solo, quase metade das músicas têm nome de comida: groselha, bife bossa, filé de frago (sic), amoras grape, jaboticaba... O álbum foi lançado em 2001, pelo selo Baratos Afins, do incansável Luiz Calanca, que o encontrou faminto em uma praça do centro da cidade um ano antes.

Após levar o músico a um bar e comprar um maço de cigarro, dois lanches e um Milk shake a Lanny, Calanca descobriu que o antigo “Jimi Hendrix brasileiro” estava dando aulas de guitarra por R$ 30 para pagar o aluguel da pensão onde morava e as costelas que comia pelos botecos da cidade – num deles, Lanny leu que o prato do dia era “filé de frago”, a graça da percepção inusitada lhe inspirou uma das músicas do disco solo.

Calanca arranjou então um novo professor de guitarra, que tocava sua campainha toda quarta-feira (e às vezes segundas e terças para comer com a família). A cada encontro, gravava as músicas e os improvisos de Lanny sob a justificativa de que aprendia melhor ouvindo as gravações depois das aulas.

- Por que você tá gravando? – perguntava Lanny, desconfiado

- Porque eu fico tímido de tocar na sua frente, você vai embora eu tento acompanhar.

- Ah, faz o que você quiser, você tá pagando...

De março a setembro de 2001, Calanca já tinha 23 CDs gravados. Ouvindo os discos, o aficcionado por música se convenceu de que o material que tinha era lendário e poderia ser gravado para impulsionar a carreira do guitarrista e seu selo. Pediu autorização para o pai de Lanny, dono da antiga Stardustonde o músico começou a tocar com Hermeto Pascoal quando tinha apenas 16 anos. A princípio, o pai se mostrou resistente à ideia - “O Lanny não toca coisa com coisa. Esse disco não vai vender nada” - até o momento em que se impressionou com a sinceridade de Calanca, que concordou que “não se ganha dinheiro fazendo música, mas explorando músicos”. Calanca reitera que, na verdade, não concorda com a afirmação do pai, mas só a aceitou naquele momento para não desmerecer o que o business man disse. A opinião momentaneamente compartilhada fez com que o pai de Lanny batesse o martelo, ordenando ao filho: “Faça tudo o que ele mandar”. Calanca, enfim, conseguiu o que queria: gravar com o grande ídolo.

Ao disco solo, seguiu-se uma gravação de quatro horas em estúdio com Guilherme Held na segunda guitarra, Fábio Sá no contrabaixo elétrico e acústico e Zé Aurélio na percussão que rendeu dois CDs do nomeado “Projeto Alfa”. O projeto não vendeu o suficiente para bancar os gastos, mas alavancou o disco solo, que passou a ser divulgado no boca a boca pelos frequentadores da loja Baratos Afins na Galeria do Rock que buscavam a espontaneidade do guitarrista.

 

lanny7Ao lado do contra-baixista Fabinho Sá, Lanny comemora seu aniversário tocando com o Projeto Alfa (Crédito: Carol Mendonça)

 

Em comparação com a gravação caseira e a execução das músicas com uma Ibanez – uma guitarra usada por metaleiros com microafinação, que não servia bem ao som jazzístico e lisérgico de Lanny -, a produção do novo projeto em estúdio e com uma guitarra Epiphone- que ganhou de Chico César após a sua Gibson Les Paul ter sido roubada -, com uma qualidade técnica superior, era perceptível.

Foi a qualidade presente nos discos do Projeto Alfa que voltou a atrair a atenção do produtor Glauber Amaral do selo Barravento Artes a Lanny. O empresário nem imaginava que dez anos após encontrar o guitarrista em crise viria a gravar “Lanny Duos”, distribuído pela Universal.

 

 

Pizza

Pensando em resgatar o músico e ansioso por ver frente a frente um dos maiores instrumentistas do país, em 2001, Amaral foi até o apartamento em que ele morava na Santa Cecília. Ainda dormindo, Lanny demorou a atender a porta. Vacilando pelo sono, resolveu finalmente acordar e pedir uma pizza. A conversa durante a refeição já foi suficiente para que o produtor concluísse que Lanny não estava preparado para voltar à ativa.

“Ele tava com problemas de medicação, de ajuste químico de medicação mal administrada, pessoas erradas ao lado dele, influências erradas ao lado dele. Ele não tava numa atmosfera libertária, ele tava numa atmosfera prisional. Então, não deu. Naquele momento ele tava cheio de dificuldades, não dava para corresponder, exigir que ele tocasse um show. Nem isso, muito menos gravar um disco com 15 artistas da música brasileira. Impossível”.

Os dois voltaram a se encontrar por acaso dez anos depois. Lanny estava assistindo a um show do trombonista Bocato quando reconheceu o produtor que também estava na platéia e marcaram um bate-papo. Antes do terceiro encontro, o empresário ouviu o Projeto Alfa Volume 1 e 2 e sentiu firmeza para investir em um trabalho com o guitarrista. “Nossa, isso dá pra gente começar um trabalho juntos.”

 

lanny carolTrajetória: decoração na festa de 60 anos de Lanny exibe álbuns clássicos dos quais o músico participou e os projetos recentes (Crédito: Carol Mendonça)

 

Com acompanhamento dos músicos do projeto Alfa, Lanny Duos promove reencontros entre o guitarrista e grandes nomes como Gal Costa, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Jards Macalé, Péricles Cavalcanti e Edgard Scandurra, além de incluir duetos com nomes recentemente mais conhecidos da MPB, como Max de Castro, Zeca Baleiro, Rodrigo Amarante, Fernanda Takai, Adriana Calcanhoto, Junio Barreto, Arnaldo Antunes, Vanessa da Mata e Chico César. O disco foi distribuído pela Universal e passou a ser divulgado em apresentações em unidades do Sesc.

Depois dos shows, Lanny se viu sem tocar novamente e sem grana para bancar a comida e o aluguel. Foi quando voltou a procurar Calanca, que produziu outro disco do guitarrista, dessa vez, com a jovem banda Kaoll. “Ele foi embora, voltou, já não queria mais ele, mas, coitado, ele é maluco, né? Tem um desconto. Ele é um maluco beleza, não é um cara que morde, é um doce de pessoa.”

 

 

O sétimo doce

- Doce não é alimento nada! Pra mim fez muito mal...

Depois de uma bad trip que teve com o sétimo LSD, Lanny não quer nem chegar perto das drogas. “O psiquiatra falou que o ácido pôs pra fora todos os meus problemas como esquizofrênico. Na época, eu nem sabia o que eu tava fazendo porque eu tava envolvido com os hippies, paz e amor, então eu tava envolvido com drogas. Mas teve uma coisa muito estranha porque a droga fez muito mal pra mim. Eu não quero mais nada com droga.”

O guitarrista tomou o primeiro ácido com hippies que conheceu durante uma turnê pela Europa com o cantor Jair Rodrigues e os Originais do Samba, no início de 1972. O mundo alucinado vivenciado por Lanny o levou a um nirvana em que a vida deixava de ser dura e passava a ter a atmosfera colorida do desenho animado Branca de Neve.

No retorno a São Paulo, Lanny continuou tomando os ácidos para tentar repetir a sensação do primeiro, até que no sétimo, em 1974, uma bad trip causou uma confusão mental tão forte que o levou a desmaiar. Após a terrível experiência, ele ainda participou de projetos musicais, mas sentia que não era mais o mesmo.

 

lanny6Lanny se deslumbrou com os efeitos visuais do ácido nos anos 70 (Crédito: Carol Mendonça)

 

Em 1980, veio a primeira internação em um sanatório, que durou seis meses. A essa, seguiram-se mais três, sendo que a última durou apenas dois meses, sinalizando a progressiva melhora do guitarrista.

A filosofia oriental, herdada da família, foi de grande importância para Lanny nesse período. Descendente de russos e poloneses, o pequeno Alexander Gordin nasceu em Xangai, na China, em 1951. Sua família chegou a morar alguns anos em Israel, até que decidiu se radicar no Brasil (primeiro Rio de Janeiro e depois São Paulo), em 1958. “Eu gosto muito da filosofia, da sabedoria oriental, que meu pai ensinou: ficar calmo, meditar, refletir, ficar introspectivo, pensar em Deus e nunca ter medo de errar.”

Foi através da experiência espiritual que Lanny teve acesso ao seu novo estilo musical, que o inspira a tocar até hoje. “Eu sou meio médium. Já conversei com o mundo espiritual – eles conversam por telepatia. Aí um dia eu entrei em estado alfa, entre o dormir e o acordar, e tinha o espírito de uma mulher falando pra mim: ‘Olha, Lanny, sua missão é ficar louco!’ Aí eu pensei: ‘Só Deus vai me ajudar.’ E ela falou: ‘É isso mesmo, você tem razão. Eu vou te passar pra um amigo meu, também espírito, conversa com ele, Lanny’. Aí eu ouvi a voz de um homem espiritual me perguntando o que eu queria. Aí na hora eu pensei: ‘Eu gosto muito de groselha’. Aí eu falei: ‘Você pode me arranjar um copo de groselha?’ E aí o homem espiritual falou: ‘Matéria a gente não pode te dar... Você quer ouvir um pouco de música?’ Aí ouvi uma música espiritual. Tem a ver com música clássica: violino, cielo, piston, trombone, tudo junto. Era uma música bem suave, bem harmoniosa, bem profunda. Aí depois que eu ouvi a música durante um ou dois minutos, eu acordei. O som me impressionou. Aí eu tô tentando tirar o mesmo som dessa música espiritual e eu tô conseguindo.”

 

Vomitando rock’n’roll

Nos anos 60 e 70, Lanny atraiu a galera da tropicália justamente pelo seu modo original de tocar, misturando diversos estilos, como jazz, rock e música clássica. Os acordes do braço de sua guitarra deram as trilhas do caminho pelo qual os músicos tropicalistas circularam.  Além da sonoridade rock’n’roll, o guitarrista é lembrado pelo visual psicodélico,composto por blusas apertadas, calças bocas-de-sino e uma cabeleira-beleza nos shows em que participou no ao lado de grandes ícones da contra-cultura, como Gal Costa, Gilberto Gil e Caetano Veloso.

 

old days lannyRock’n’roll: A performance de Lanny atraiu os tropicalistas (Crédito: Aquivo/Lanny Gordin)

 

O guitarrista Luis Carlini lembra que ainda vinte anos depois, no dia 8 dezembro de 1980 – coincidentemente, a emblemática data em que John Lennon foi assassinado - encontrou o guitarrista vestindo camiseta e jeans rasgados, na melhor expressão visual do rock’n’roll, em uma casa de shows na avenida Faria Lima.

- Carlini, o que você tá fazendo aqui?

- Vim fazer uma reunião com o pessoal da produção de um show aí. E você, bichô?

- Eu toco aqui, no andar de cima.

- Legal. Depois eu vou subir lá e vou te ver tocar.

Após a reunião, Carlini não pôde deixar de rir com uma cena inusitada: Lanny todo maltrapilho no contrabaixo ao lado de um pianista e um baterista de smoking tocando à luz de velas em um ambiente “bem finesse-careta-aquela-coisa-assim-de-executivo-com-a-secretária”.

- Pô, Lanny, é o seguinte: sábado eu vou tocar numa casa aqui do lado chamada Paulicéia Desvairada, vai lá pra gente se encontrar. É uma casa rock’n’roll, você vai gostar.

No sábado à noite, Carlini estava tocando com o Tutti Frutti quando avistou uma figura alta, esguia e soturna que se distinguia do “bando-de-roqueiro-louco-rasgado”. Sim, era Lanny Gordin. Mas Lanny Gordin de smoking. “Aí comecei a dar risada e falei: ‘Já sei! Fizeram ele pôr o smoking no outro bar e ele veio direto de lá!’”

 

stringsLiberdade total no braço da guitarra (Crédito: Camila Picolo)

 

Hoje, Lanny abandonou o estilo rock’n’roll e veste terno em suas apresentações. “Eu era mais jovem, veja bem. Eu tô com 60 anos, minha cabeça mudou, meu visual mudou. Tudo mudou”, explica. “Antes era época do rock’n’roll. Agora eu tô com meu novo estilo que não tem nada que ver com rock’n’roll nem com jazz, nem com nada. É a minha música. A música pura que eu encontrei. Liberdade total no braço da guitarra.”

 

Praça de Alimentação

A apresentação de Kaoll & Lanny Gordin no Teta Jazz começa com uma música calma e sem muitas progressões. Lanny reveza o olhar entre a guitarra e os olhares dispersos ao seu redor. A plateia entra, sai, conversa, ri alto: uma praça de alimentação que não “sabe aquele Lanny”. Um gringo sentado, quase grudado a Lanny, pede uma “Coca-Cola, porrr favorrr”, canta a garçonete – My facebook is blocked, but you can call me, responde a garota -, bate na mão do colega que está sentado à sua frente, comemorando grandes feitos anglo-saxões, e ao brindar, finalmente derruba seu drink no sofá que forma uma poça a poucos centímetros do guitarrista. Lanny boceja uma, duas, três vezes, até que os músicos atendem a seu pedido silencioso para uma pausa. “Vamo lá, o cigarrinho do Lanny”.

Na volta, a platéia continua disputando a gargalhas com os acordes do guitarrista. Após a última música, Lanny fuma novamente e pede para ficar dentro do carro enquanto os instrumentos são retirados e ele aguarda a carona que o levará de volta para casa.

“O Lanny é de lua. Esquizofrênico, né? Mas quando a plateia é maior, ele incendeia”, diz Bruno, guitarrista da Kaoll, ao final da apresentação que mostrou um Lanny coadjuvante tocando ao lado de músicos com muito pouco tempo de estrada. Bruno também tomou aulas de guitarra com o músico até resolver convidá-lo para se juntar à banda e grudar o nome do grupo ao do lendário “Lanny Gordin”.

Lanny discorda da preferência pelas platéias maiores. Para ele aquele foi apenas um dia ruim dentre tantos outros bons que já haviam passado e estariam por vir. “Eu gosto de tocar pra qualquer platéia. Como eu sou músico, tenho que agradar a gregos e troianos. O que vier, eu traço.”

 

Comedoria

Um mês depois, no final de semana que antecedeu seu aniversário, na Comedoria do Sesc Belenzinho, Lanny é esperado ansiosamente por uma grande platéia. Na fila de comes e bebes, os espectadores se aquecem falando sobre música e dedilhando air guitars à espera do ídolo que promete apresentar grandes clássicos e o que denominou como seu “estilo novo”.

É o segundo dia seguido de espetáculo no espaço. A primeira apresentação foi definida pelo guitarrista ao seu produtor como “a melhor de toda a sua vida”. Mas as expectativas para o show deste sábado são ainda maiores. “Hoje o Lanny vai estar mais calmo e tecnicamente o show deve ser melhor também”, prevê Ronaldo, baixista do quarteto que fuma antes de o show começar.

Lanny é recebido calorosamente pela platéia e senta-se com a sua Gibson FS135 – presente de Adriana Calcanhoto - no centro do palco acompanhado por outros três músicos experientes e mais inclinados ao jazz do que ao rock’n’roll (Ronaldo no contrabaixo elétrico, Fernando nos teclados e Ricardo na bateria). Na apresentação no Teta Jazz, as pessoas pareciam querer suprir a ausência de vocal do som instrumental com conversas paralelas. Já aqui, a guitarra impõe sua voz: grita, urra. A apresentação ainda conta com participação especial de Luiz Carlini e Pepeu Gomes, monstros da guitarra tupiniquim.

Apesar do acompanhamento de músicos reconhecidos, a genialidade de Lanny não é ofuscada; pelo contrário, sua guitarra ganha ainda mais força quando, na bela execução da clássica “Summertime”, as cordas dos três instrumentos, ainda que paralelas e inventivas, parecem se tocar no infinito.

Porém, quando Lanny toca sozinho – um banquinho, uma guitarra elétrica e um amplificador – o único instrumento se transforma em mil. A execução linear da música é invadida por improvisos que recortam a melodia, a qual é retomada sucessivamente arrancando o fôlego e os aplausos dos espectadores, aos quais o guitarrista responde sorrindo para a guitarra.

Lanny, que comemorou antecipadamente seus 60 anos com um dos shows mais emocionantes de sua carreira, continua com fome. Os quase vinte anos que ficou afastado dos palcos depois do surto esquizofrênico não o apressam e não são suficientes para afastar o sonho de uma carreira que apenas um gênio poderia trilhar. “Quando eu ficar rico, eu vou tocar sozinho”. “E isso vai acontecer logo, Lanny?” “Nããão. Falta dez, vinte anos...”

lanny-carolLanny e a fome de tocar sozinho (Crédito: Carol Mendonça)



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