“A Anita é minha amiga mais antiga”, afirma Laura sem hesitar. “Quando a gente se vê é exatamente a mesma coisa que era há quinze anos atrás. A gente fala de namorado, de trabalho, fala de mãe, de pai, fala merda”. Não necessariamente nessa ordem de prioridades, foram de fato essas mesmas disposições as quais, desde a infância, mobilizaram a curiosa empatia que aproximou de maneira decisiva a executiva Anita Stefani de sua melhor amiga, a fotógrafa Laura Sobenes.
Entre ambas, uma sólida cordialidade floresceu vigorosamente no período mais duro da construção de seus respectivos temperamentos. Hoje, ao 24 anos, ambas reconhecem com orgulho que a reciprocidade a qual partilharam na infância e na adolescência permitiu-lhes avançar muito além de suas ralas premissas iniciais. Cada uma, ao seu modo, ofereceu à outra o suporte emocional crítico para que marcassem, na história de suas vidas, um ponto de virada, um marco de inflexão da própria vontade o que, doravante, afetou resolutamente o rumo de suas jornadas pessoais.
“A gente era um ‘casal de amigas’”, considera Anita. “Fazíamos todos os trabalhos da escola juntas, estudávamos juntas, sentávamos próximas, íamos na casa uma da outra, brincávamos, trocávamos correspondência, mandávamos cartões de Natal. Ela era minha amiga-irmã”.
A definição é assaz pertinente. Pode-se afirmar, para além de qualquer dúvida que, no turbulento período no qual a amizade de Anita e Laura teve início, ambas compartilharam algo mais denso, mais duradouro, mais transformador do que triviais angústias juvenis.
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Anita Stefani e Laura Sobenes: amigas-irmãs
Conheceram-se na infância, quando estudavam no tradicional e definitivamente católico Colégio João XXIII, na Vila Prudente, um estabelecimento cuja origem se confunde com a do próprio bairro. Nenhuma das duas se recorda com exatidão das circunstâncias em que se tornaram amigas inseparáveis e muito menos porque deram então início a uma estima que desafiou o establishment escolar e as indisposições familiares, servindo de arrimo nos pontos cruciais de suas vidas. Desde o princípio, para todos os efeitos, parecia que não possuíam nenhuma afinidade pessoal particularmente notável.
Em algum ponto da infância – algo em torno dos seis ou sete anos – estiveram reunidas numa mesma classe escolar. Tinham, na verdade, personalidades tão diversas que aquilo que as atraiu remanesce até hoje misterioso mesmo para elas. “Eu sempre gostei de coisas maisjunks”, esclarece Laura. “Eu fumava e achava o máximo e tinha um namoradinho que era do movimento narcopunk e a Anita gostava de sair, de ir ao shopping, essas coisas”.
Provavelmente era a oposição de personalidades que tornava a atração fraterna quase inevitável. “Eu tentei pensar como foi a primeira vez que eu conheci a Laura e não consegui lembrar”, diz Anita. “Acho que o que me atraia nela era justamente o espírito livre porque eu era muito insegura”.
Laura, de fato, recebera uma esmerada educação libertária. Era uma menina precocemente arrojada, independente e propensa ao risco. Mostrava-se sempre inclinada a explorar territórios e experiências proibidas às demais crianças de sua idade.
Mesmo para os padrões flexíveis do século XXI, aos olhos do cidadão médio ela pode parecer hoje desregrada, inusitada, absurdamente imprevisível e mesmo extravagante, libertina, agressiva o que, em última análise, não lhe importa em absoluto. “Quero que se foda”, diz, dando de ombros, quando alguém lhe sugere um gesto de preconceito ou uma injusta palavra de desaprovação. Laura Sobenes é hoje a mulher contemporânea par excellence, uma delgada femme fatale hard core, mas despida de clichês.
Independência precoce: Laura aos sete anos de idade
Desprendida, loquaz, empática, tem sido uma espécie de favorita dos repórteres virtuais. Ainda que longe de integrar os rankings de uma previsível celebrity hunter, é possível mapear uma profusão de entrevistas protagonizadas por ela, do portal Ig à revista Brasil Atual. Sente-se à vontade discutindo francamente de tudo, do cicloativismo à crise erótica nos relacionamentos amorosos.
Sua existência é constituída de perpétuo movimento. Ela exsuda energia vital. Desde quando consegue se recordar, sua vida foi feita de liberdade de ação. Professa, ainda que elipticamente, uma irreprimível vocação para aventuras extravagantes e experimentos exóticos. Seu corpo franzino carrega as marcas de singulares experiências. No braço esquerdo ostenta uma elaborada tatuagem escarificada sob a pele. Já aos 18 anos era uma entusiasta da Suspensão, a prática de ser pendurada no teto com fios de nylon e ganchos cravados na carne. Tabagista incorrigível, é, paradoxalmente uma engajada cicloativista que perfaz com vigor pelo menos cinco quilômetros de pedaladas por São Paulo diariamente. Jovial e insolente, não demonstra paciência alguma com pessoas afetadas e recusa toda forma de autoritarismo. Ainda assim, é incapaz de guardar ressentimentos. “Tenho memória de peixinho dourado”, confessa com um sorriso maroto: “só me lembro das coisas boas”.
Não exatamente.
“Eu conhecia o lado do ‘pai legal’”, lembra-se Anita. “Só que para quem convive é diferente. A Laura conviveu com coisas bem difíceis. Eu lembro dela falando do pai dela chegar alcoolizado, de brigas, coisas bem tensas que ela presenciou”.
Laura se recorda de seu breve e turbulento relacionamento com seu pai de modo muito mais sumário. “Ter pai alcoólatra é uma merda”, dispara sucintamente e esquiva-se de entrarem detalhes. Também não reteve memórias expressivas da agonia que culminou em sua morte prematura. Lembra-se, todavia, com notável nitidez do dia do seu falecimento em 28 de novembro de 2000. Depois de acompanhar uma semana de agonia no hospital, Laura foi despertada às duas da manhã com um telefonema em sua casa. “Informamos o falecimento de seu pai”, ouviu, para o que respondeu trivialmente “Tá. Ei, mãe, o pai morreu”. Laura há pouco completara treze anos.
A cerimônia fúnebre resultou igualmente pouco impressionante e remota. “Todo mundo chegava em mim chorando e me abraçava e dizia ‘fica bem’, ‘você vai ficar bem’ e eu dizia ‘tá, quando é que sai a comida?’”. Colocada nesses termos, a recordação soa brutal, seca, quase sórdida, ressentida. Para Anita, naquele dia, em um abraço comovido, ela disse apenas “na verdade, estou aliviada”, o que resumia, ainda que cruelmente, um sentimento menos óbvio, mais duradouro e equânime. “Eu entendi”, afirma Anita, “porque fazia todo sentido. Era um alívio para todos os envolvidos”.
Mais do que isso, a orfandade significou um ponto de ruptura. Desde a morte de seu pai, Laura adotou o paradigma da máxima liberdade de ação. Elegeu para si um privilegiado modelo de comportamento, de autonomia e de assertividade – sua mãe, a eletrizante Norma Sobenes. “A minha mãe, que é uma hippie dos anos 70, que teve uma mãe que a prendia em casa e espancava os filhos, falou: ‘não, eu não vou fazer isso, vou criar minha filha para o mundo’. Minha mãe é isso tudo”. E, para Laura, isso é hoje tudo.
“A Laura era um exemplo do que eu mesma poderia vir a ser, era algo em que eu me inspirava”, considera Anita em retrospecto. “Ela tinha liberdade, segurança, podia ser o que ela era”. Em todos os sentidos Laura constituía o oposto especular de Anita.
Não que fossem de todo incompatíveis. Muito ao contrário. Nos bancos do colégio, reconheceram uma na outra, logo de cara, aquela incurável, incorrigível e tragicamente longeva vocação para a “nerdice”. “A Laura era muito mais ‘cdf’, muito mais nerd do que eu”, recorda-se Anita quanto à sua amiga, a qual, por seu lado, expressa exatamente a mesma opinião, só que ao contrário.
Fosse como fosse, uma vez juntas, Anita e Laura vicejaram numa prodigiosa profusão de canetas coloridas – uma cor de caneta para cada disciplina num cronograma de mais de 10 matérias por semestre – centenas de cadernos, estojos e mais estojos, fichários, pastas encadernadas, lápis de todos os matizes concebíveis, lapiseiras, réguas, borrachas e todo arsenal de equipamentos que as melhores papelarias do ramo oferecem para tais casos. As meninas, desde o princípio, reuniram seus neurônios num esforço concertado e triunfaram com vigor nas trincheiras das primeiras carteiras escolares dentro do competitivo mundo dosnerds. “Era muita nerdice, cara”, admite Laura com franqueza. “Era nerdice pra caralho”.
Incorrigivelmente nerds
Em breve, tantos e tais esforços renderam excepcionais dividendos estudantis. Anita e Laura eram aclamadas por todos os professores em desempenhos escolares marcantes. Tudo isso, ainda que resultasse recompensante no curto prazo, logo derivou em sentimentos coletivos um tanto inamistosos, quando não abertamente hostis. “A gente era muito zuada na escola”, reconhece Laura. “Muito zuada mesmo. Tinha aqueles meninos que faziam bullying pesado com a gente”.
Para esse e para os demais dilemas, nem uma nem outra encontrou apoio fosse na solidez católica da instituição escolar ou alhures. Respostas inexistiam também nas bíblias da erudição adolescente do final dos anos 90: as canções de uma então jovem e vibrante Shakira ou as composições dos intercambiáveis Backstreet Boys que ambas cultivavam com ardor. Não obstante, descobriram sem querer uma inesperada solução contra as reiteradas humilhações públicas numa comercialíssima produção B de Hollywood.
Jovens Bruxas, 1996 (divulgação)
Jovens bruxas (The Craft de Andrew Fleming, 1996) não constitui, nem de raspão, num clássico da Sétima Arte. Com incrível parcimônia conceitual e com as previsíveis concessões românticas, o filme versava sobre a ascensão e queda de um coven de garotas nerds em crise de identidade revidando o bullying escolar com os ensinamentos nada edificantes da feitiçaria pesada. Consistia, quando muito, naquela linha de comédia ligeira que sempre termina num nada surpreendente happy end.
Subitamente inspiradas por essa questionável peça cinematográfica mercantil, Anita e Laura resolveram dar cabo de seus desafetos numa solução um tanto deficiente de objetividade. Deixaram o mundo encantado da “nerdice” para trás numa radical reorientação de estratégia. Partiram de sopetão do dócil esquadrão das primeiras fileiras escolares em busca de um outro conhecimento. Decidiram se tornar praticantes de Magia Negra.
Ainda que o resultado de seus esforços não tenha ultrapassado o estágio de bruxaria de butique, se tanto, de uma hora para a outra, passariam a ser vistas não mais como nerds. Pareciam, ao menos para si próprias, agora, um tanto perigosas e, desse ponto em diante, tudo mudou para elas inesperadamente para pior.
“Minha mãe tinha um livro de Magia Negra com umas coisas muito trash”, lembra-se hoje Laura. “Coisas do tipo ‘pingue uma gota de sangue para reconquistar o homem amado’. E é claro que eu enfiei as minas nisso”. As “minas”, no caso, consistiam num grupo de garotas igualmente desajustadas, um trio de outcasts ávidas para ultrapassar a barreira da total invisibilidade – para não dizer nulidade – social que se juntaram às atividades transcendentais encabeçadas por Anita e Laura.
Investidas dos súbitos conhecimentos enciclopédicos do manual, o coven de feiticeiras partiu de imediato da decisão para a ação numa sucessão de espalhafatosos feitiços cujos proventos revelaram-se, todavia, assaz decepcionantes. “Então aquele menino, um tal de Pedro, apareceu com o pé quebrado”, rememora Anita com um sorriso significativo no rosto. Aos olhos de Laura “aquilo foi muito timing! Foi timing de Deus!”
Ainda que tenha remanescida duvidosa a intervenção do Todo-Poderoso no assunto, tratava-se, sem sombra de dúvida, do primeiro feitiço das jovens bruxas com resultados substanciais e, melhor de tudo, reconhecidos em público como tal. Da noite para o dia as opacas nerds haviam se transformado em sinistras feiticeiras especializadas nas abomináveis práticas do ocultismo e, na revoltante guerra de nervos do bullying escolar, assumiram uma afrontosa dianteira. Quando desafiadas pelos indóceis valentões podiam revidar com um clássico “Mano, você está louco? Olha o que a gente fez com aquele menino! Você quer que a gente faça o mesmo com você, quer?”.
Num cenário que evoca o clássico de Arthur Miller, As Bruxas de Salen, só que em escala mais farsesca, o subsequente pânico coletivo foi disseminado. Houve, nos corredores impregnados de fé católica do colégio, crises nervosas, surtos de pavor além de um patético caso de histeria noturna. “Teve aquele menino, o Thiaguinho, que era muito sensível”, lembra Laura. “Ele ficou com muito medo. Medo pra caralho”. Mais do que medo, foi um caso de paranóia. Segundo Anita, “ele começou a ter pesadelos à noite. Não conseguia mais dormir”.
Daí em diante, estava aberta a temporada de caça às bruxas.
A despeito dos anos, Laura ainda se lembra com sorridente indignação daquele período. “A mãe do Thiaguinho ligou para a escola e falou ‘Tem um bando de bruxas quebrando a pernas das pessoas’. Vê se pode esses pais”.
Que pseudo-adoradoras mirins de ofícios ocultistas tenham causado alguma celeuma (ainda que sob um inevitável véu de comicidade) numa tradicionalíssima instituição católica, não há grande surpresa. Em retrospecto, parece mesmo previsível que uma feroz e franzina Laura Sobenes, no vigor de seus onze anos, defendesse veementemente seu direito à livre expressão e reafirmasse, contra diretores, pedagogos e orientadores escolares, suas inabaláveis convicções – das quais ela própria hoje confessa não se recordar bem. Em meio ao fogo cruzado de repreensões, ameaças de expulsão e acusações recíprocas contra as breves “bruxas” na inquisitorial sala da diretoria, Anita minguava silenciosamente. Atordoada, sentia-se paralisada pelo medo, embaraçada na rede de suas inseguranças a qual, desde sempre, tolhia qualquer lampejo de iniciativa nos momentos que ela mais necessitava agir.
Ainda que erroneamente supusesse que todas seriam expulsas sob o signo da ignomínia do colégio num exemplar expurgo cristão – “e a gente nem estava fazendo bruxaria de verdade” – Laura mostrou-se disposta a arder na fogueira da desonra estudantil com aplomb. Seu empenho revelou-se desnecessário. Algo um tanto mais lamentável substituiu a expulsão sumária.
Enquanto as fogueiras não queimavam
Anita e Laura foram prontamente separadas. “A mãe da Anita me proibiu de a ver”, lembra-se ainda hoje com uma tristeza não destituída de ressentimento. “Você não vai mais ver a Laura”, informaram secamente Anita. “Não vai mais fazer trabalhos com a Laura, não vai mais falar com a Laura. Lembro-me que uma vez eu liguei para ela e minha mãe pegou a extensão e começou a gritar e mandou desligar. Aquilo virou uma coisa obsessiva”.
Mais do que isso, a ruptura era um duro e derradeiro golpe na autoestima vacilante de Anita.
Infância opaca: Anita aos 2 anos de idade
Ela é muito feminina, mas desprovida de qualquer afetação. Tem uma beleza pálida e seus grandes e penetrantes olhos castanhos enfrentam com inesperada firmeza qualquer interlocutor. As pessoas cultas, perspicazes e articuladas causam-lhe duradoura impressão. Seus amigos supõem nela o atributo de uma inquebrantável invulnerabilidade emocional, o que ela própria refuta com veemência. Considera-se apenas uma mulher buscando afirmar seu legítimo direito à autoexpressão. “Eu tenho orgulho de falar quem eu sou”, diz Anita sobre si mesma: “orgulho de ser quem eu sou”.
Movida por uma vigorosa disposição, seu dia-a-dia é constituído de uma claríssima ambição – realizar com precisão e esmero cada ato que considera imprescindível para sua afirmação como indivíduo. Professa uma franca aversão pelos desleixados, pelos autocomplacentes, pelos imprestáveis, pelos indolentes.
Pragmática, obstinada e sempre determinada a levar a cabo suas aspirações, não se confunde no labirinto de expectativas, fantasias e presunção que em geral acomete os jovens de sua idade. Sua disciplina a torna tão enfaticamente assertiva e segura de si mesma que magnetiza a atenção dos seus perplexos antagonistas e invalida de imediato o efeito dos gestos mesquinhos com os quais eles tentam minar a pertinência de suas convicções.
Pouco condescendente com suas próprias inabilidades, reconhece que integra aquela privilegiada camada de jovens favorecida por uma formação escolar e acadêmica invulgares, o que vem lhe facultando oportunidades profissionais muita além daquelas oferecidas aos arrivistas em início de carreira. Paradoxalmente, é impelida pelo inabalável ideal da justiça social em prol dos desfavorecidos. Impôs para si mesma o objetivo de efetivar suas convicções políticas e humanitárias, dedicando sua formação acadêmica e profissional à carreira na política partidária e na gestão pública. É, para todos os efeitos, uma daquelas raras e precoces wunderkinds do século XXI.
Graduou-se em 2010 como bacharel em Relações Internacionaispelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo com formação adicional na Universidad Complutense de Madrid. Já aos 19 anos, assumiu o posto de Assessora Internacional na Secretaria Municipal de Relações Internacionais da cidade de São Paulo, representando a prefeitura paulistana em Xangai. Aos 22 anos tornou-se executiva de contas da Futura Networks, trabalhando na promoção e financiamento da Campus Party em Madrid e, mais tarde,em São Paulo. Prepara-se para assumir um cargo administrativo no setor institucional da América Latina Logística (ALL). A confiança em si mesma no momento da execução de suas atividades faz dela hoje uma mulher surpreendentemente diferente da pessoa que foi um dia.
De sua infância, Anita se recorda com relutância. Foi para ela uma época particularmente opaca de sua vida, uma espécie de inexistência num limbo emocional. “Eu era uma menininha insegura e cheia de problemas familiares, cheia de problemas de autoestima e isso acaba deformando sua personalidade”, admite.
Durante seus primeiros anos de existência, viveu consumida pela frustração de ignorar sua própria origem. Perdera sua mãe biológica, Eliana Martinez, quando tinha três anos, vítima de um devastador câncer de pulmão. Desde então, o nome dela tornara-se um anátema dentro da própria família. Ao sentimento de solidão derivado da precoce orfandade materna, foi adicionada a desorientação do silêncio, uma espécie de desconhecimento primário sobre sua procedência. “Eu me lembro de pouquíssimas coisas de minha mãe”, comenta Anita. “Meu pai se casou de novo. Eu tinha seis anos. Desde então, aceitei completamente que tinha uma nova mãe”.
Nem tanto.
Eliana Martinez
“É como uma história infantil”, considera Laura, atribuindo à biografia de sua amiga algo de um conto de fadas brutalmente interrompido. “Era um casal perfeito, que tinha uma vida perfeita, filhos perfeitos e aí a mãe morre de câncer. Uma puta morte trágica. E você nem se lembra da sua mãe”.
A presença da madrasta, aos olhos de Laura, reiterava a força de uma alegoria quase fictícia na infância da amiga. Pouco propensa à autoridade e nada condescendente com qualquer cerceamento de sua liberdade de ação, a antipatia entre Laura e a madrasta de Anita começou cedo e se estendeu pelos anos afora. Descrita – ainda nos termos de uma breve fábula – por Laura como “uma mulher que prendia a filha adotiva no calabouço, que não deixava a Anita fazer nada”, a crescente inimizade entre a mãe adotiva de Anita e sua melhor amiga descambou, nos anos seguintes, em franca hostilidade.
Não que isso mudasse a perspectiva de Anita. “O relacionamento da minha mãe comigo desde sempre foi muito complicado”, admite. Reconhece sem restrições a diligência com a qual a mãe adotiva assumiu sua educação, o modo honesto como conduziu sua formação desde a infância. Ainda assim, jamais deixou de se ressentir pelo véu de silêncio que cercava a memória de Eliana Martinez e, durante anos, não superou a atração pela misteriosa mãe morta.
Podia idealisticamente supor que suas inadequações emocionais, suas dúvidas, suas angústias e perplexidades seriam menos pungentes caso sua mãe biológica fosse ainda viva. Era possível mesmo crer com um certo nível de propriedade que seria capaz de se compreender melhor caso compreendesse algo mais substancial sobre ela. “Minha mãe biológica, pelo que meus avós contavam, era muito parecida com o que eu sou hoje”, pondera. “Ela era envolvida politicamente, ela se formou na São Francisco. Na época da ditadura ela foi em manifestações contra o regime. Era algo que eu adoraria ter conhecido melhor e nunca me deram essa oportunidade”.
Até os treze anos, Anita jamais havia visto uma foto de sua mãe. Fora peremptoriamente desencorajada de visitar seu túmulo, uma precaução, ademais, de todo desnecessária: a menina nunca fora informada onde a mãe estava enterrada. O exato local da sepultura não era sequer aludido nas oblíquas conversas sobre a falecida. Com o passar dos anos, o silencio em torno de Eliana tornou-se exasperante, transformando-a numa presença prodigiosa, que desde sempre assombrava Anita e fazia sua solidão mais aguda. “Isso tudo tornou mais arraigada minha amizade com a Laura”, reconhece. “Eu depositei tudo aquilo que talvez tivesse de frustração nessa amizade. Depositava muita confiança, contava tudo para ela que também tinha problemas familiares. Ela absorvia tudo aquilo”.
Caso Laura não tivesse abarcado as hesitações de sua amiga, é muito provável que Eliana tivesse remanescido por anos como uma estranha, um fantasma indefinidamente insepulto, um indelével ponto de clivagem entre o passado e o futuro de Anita. Laura estava presente em um daqueles peculiares jogos de casualidade que resultam num lance de virada e para o qual sua presença revelou-se indispensável. Estava a postos quando Anita lhe telefonou para contar afoitamente que, sem querer, encontrara uma caixa selada, esquecida no fundo de um armário.
Movida por curiosidade, intuição e tudo mais, abrira a caixa e, correndo os olhos sobre fotos e papéis amarelados pelo tempo, reconheceu de imediato o significado daqueles mementos dispersos, aquilo que procurara durante toda sua adolescência. Desconcertada pela sua súbita descoberta, cerrou a caixa e, incapaz de seguir adiante, buscou Laura.
Laura e Anita desafiaram a proibição de se re-encontrarem. Cercadas de toda discrição, as meninas vasculhavam juntas as lembranças dispersas na caixa. Naquelas fotos a mulher desconhecida adquirira um rosto (o qual, para todos os efeitos, não era apenas expressivamente belo e vivaz, mas constituía uma assombrosa evocação dos traços da sua filha). “Eu podia ver a caligrafia de minha mãe”, rememora Anita com um olhar distante. Em meio às fotos, às cartas, aos poemas de amor, de um instante para o outro, ela adentrou na vida de uma mulher que, até então, subsistira apenas na sua própria imaginação.
Mais do que isso, Anita descobrira a essência da personalidade de uma pessoa a quem só lhe fora permitido conceber idealisticamente e, nesse exato momento, descobrira também algo que em absoluto esperava encontrar: a exata localização da sepultura de sua mãe.
A incansável Norma Sobenes, sempre inclinada a desobedecer os interditos, também estava a postos para um gesto adicional de transgressão. Colocou as duas adolescentes no seu propício fusca azul e partiram em direção ao Cemitério da Quarta Parada, conhecido como Cemitério do Brás. Ainda que um logradouro célebre, não obstante, levaram horas para localizar seu paradeiro – no calor do momento, nenhuma das três primou pelo senso de direção e, assim, foram e voltaram muitas vezes pelas ruas do Brás e do Tatuapé antes de encontrarem o lugar.
Uma vez lá, seguiam agora em silêncio pelas labirínticas alamedas de jazigos e mausoléus. Extraviaram-se numa profusa trama de tumbas, vacilaram de um lado a outro nos inextricáveis caminhos da imensa necrópole. Numa morosa irresolução, as três mulheres vagaram pelo cemitério enquanto o tempo dispersava letargicamente suas ansiedades. Em retrospecto, para Anita havia, naquela indecisão, algo mais substancial do que um mero adiamento da transgressão contra as determinações paternas e, ao mesmo tempo, mais intangível do que um monumental ajuste de contas com seu passado. “Foi uma coisa marcante para mim e a Laura estava lá”, resume. “É algo que eu certamente vou guardar para o resto da minha vida”.
Nesse estado de ânimo, repentinamente, deparou-se com a lápide que, na sua imaginação, tantas vezes havia visitado. Reencontrara sua mãe.
Diante do túmulo, a menina, hipnotizada, mergulhou num estado de imobilidade e placidez. Ajoelhou-se ao lado da tumba e, doravante, tudo o mais desapareceu sob um véu de quietude. Não houve nem júbilo, nem lágrimas de conciliação. Palavras de conforto, gestos memoráveis, reverências circunspetas, ritos, flores, penitências, mortificações, macerantes orações, nada disso teve lugar. Foram igualmente dispensadas homenagens fúnebres extemporâneas, dolorosas exéquias há muito negadas à mulher morta. Na sua hora mágica, Anita estava muito além de alguma longínqua dor.
Reencontro e transfiguração
Ainda que aquele instante perfeitamente silencioso tenha resultado breve, para a célere Laura, a exígua homenagem pareceu se estender por toda uma eternidade. Inclinada, por caráter, a enfrentar os impasses mediante a ação, Laura testemunhava uma transfiguração desprovida de gestos cuja profundidade podia sem dúvida intuir, mas a qual, não obstante, remanescia impenetrável. Naquele preciso momento, compreendia, ainda que obliquamente, um modo distinto de sepultar os mortos e seguir adiante. “Ela se ajoelhou no túmulo e ficou lá a maior cota! E eu do lado, morrendo de ataque cardíaco. Mas aí rolou um ‘ufa, tudo bem, eu sei que minha mãe morreu, eu vi o túmulo dela, agora eu aceito’”, interpretou com sumária precisão. “Ela enterrou a mãe”.
Muito mais do que isso, de um momento para o outro, Anita deitou à tumba não apenas a memória abstrata da mãe, mas também uma memória de si mesma. Sepultou as indecisões de sua vida pregressa, colocou terra sobre as inseguranças. Subitamente reconhecia nela própria uma pessoa distinta daquela que até então havia sido. Deixou naquela tumba algo da garota inócua, desajeitada, retraída, sempre atavicamente dependente do ímpeto alheio.
Novos caminhos
Quando avançou de volta pelas alamedas do cemitério, respirava uma plenitude diferente de tudo que conhecera até então. Toda piedade por si mesma, toda angústia da orfandade, a aflição, o desgosto, a angústia, tudo havia sido dissolvido. Rompera com um círculo de evasivas e rodeios, provera para si própria a aguda consciência da efemeridade de todas as coisas e, com isso, esvaziara a morbidez apática que desde sempre paralisava sua insuspeita potência vital e a tornava tão propensa à submissão. Ainda que então não soubesse, efetuara por vontade própria sua primeira e mais memorável transcendência. Surpreendida, fascinada com seu próprio feito, levaria anos para se dar conta de que, de uma hora para outra, havia se tornado a mulher que sempre sonhara ser um dia.
Ainda que tenham partido de premissas de todo distintas, a amizade coalesceu e matizou as qualidades de ambas que, hoje, parecem ainda muito diferentes, mas, ao mesmo tempo, inexplicavelmente similares. Ambas são arrojadas, destemidas, impetuosas, engajadas, loquazes. Arrastam tudo ao seu redor no rastro de um vigoroso entusiasmo. Transitam arrebatadamente, de um instante a outro, da paixão a ira e vice-versa. Hoje, assim como ontem, não fazem concessão alguma à brutalidade dos estultos e à idiotice dos subservientes.
“A Anita não tem nada a ver com o estilo de vida que eu levo hoje”, constata Laura. “Nada mesmo. E nunca teve”. À distância, podem admitir com alguma serenidade as assimetrias de suas personalidades. Reconhecem que não poderiam ter trilhado trajetórias mais distintas. Não obstante, remanesce entre elas uma espécie de cumplicidade, de intimidade que dispensa palavras de reafirmação.
A amizade de Anita e Laura, ainda que intermitente segue desafiando o tempo e uma jamais deixa de surpreender a outra. “Eu entrei um dia no Orkut dela e vi uma foto da Anita na China”, recorda-se Laura. “A mina não podia nem sair da Mooca e ela agora está com fotos na China”.
Pelos olhos de Laura; paixão pela arte (crédito: Laura Sobenes)
Os anos também maturaram aquilo que subjazia latente. “Era uma coisa que eu ainda não percebia nela: essa veia artística”, considera Anita. “Hoje ela é fotógrafa. Faz coisas sensacionais. É uma coisa muito bacana, porque ela escolheu seu próprio caminho. Isso dá muito orgulho.”
Orgulho é, entre muitas coisas, um termo-chave na percepção atual de uma amiga em relação à outra. “A palavra que eu tenho para a Anita é ‘orgulho’”, afirma Laura sem hesitação, “do tipo ‘puta que pariu’, hoje em dia ela é uma puta mulher sensacional”. Entre despedidas fúnebres, desafios ao establishment e uma ou outra bruxaria, não poderiam encontrar outro termo de referência. Do mesmo modo não poderiam ter elegido uma outra melhor amiga.
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