Uma caixa de lenços, de preferência ao alcance das mãos e que estas possam afagar o braço aflito daquele paciente, ambiente íntimo, um familiar por perto, olhos nos olhos, um não importar com o tempo que corre. São essas as etapas que um médico utilizará para dar a notícia do fato consumado de uma doença terminal.
Protocolo Spikes; seis passos que mudarão de forma irreversível a vida de uma pessoa. Não há definição mais simples e direta que crave o momento que marca a inexorável aproximação com o fim, o ponto de virada de uma vida: “A comunicação de qualquer informação que afeta seriamente e de forma adversa a visão de uma indivíduo sobre seu futuro” 1
A classe médica se esforça, desenvolve métodos, conceitos, estratégias para fazer de um momento tão delicado quanto o diálogo entre o profissional e o doente se dê da maneira mais natural possível, ou que agrida menos o doente. Mesmo médicos experientes, como o Dr. Ricardo Tavares de Carvalho, presidente da comissão de Cuidados Paliativos do Hospital das Clínicas da USP, ainda ficam consternados desempenhando o duro papel de interlocutores de más notícias. “Hoje eu consigo me dar melhor com isso, mas é bem difícil dizer que a gente lida bem. Perda, alguma perda, angustia muito. Saber que aquela mudança não é reversível, algum tipo de mudança na sua vida, eu fico chateado”, completa.
A realidade das doenças terminais, em números, tanto no Brasil quanto no mundo são parecidas. Câncer, doenças do aparelho cardiovascular, do hepático, do respiratório e síndromes de fragilidade são, nessa ordem, as maiores incidências entre pacientes com doenças terminais. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), quase nove milhões de pessoas morrem de câncer todo o ano. O número só cresce; em 2002, por exemplo, eram seis milhões. Um agravante, a mortalidade é maior nos países subdesenvolvidos.
Dr. Ricardo ressalta que muitos pacientes já chegam com uma situação crítica de cura, pois creditam normalidade àquela dor e quando procuram auxilio já é tarde demais. Apesar desses dados apontarem para uma maior necessidade de leitos hospitalares e profissionais treinados no que tange aos Cuidados Paliativos em países em desenvolvimento, como o Brasil, a maioria das pesquisas têm ocorrido nos países economicamente desenvolvidos, como os Estados Unidos.
Acredita-se muito que os Cuidados Paliativos apenas se dêem dias ou semanas antes da morte do paciente, o que é um equívoco. O câncer, em caráter terminal, demora mais ou menos seis meses até a morte do portador. As doeças do aparelho cardiovascular, cerca de um a dois anos e as outras síndromes, como o Alzheimer, podem levar muitos anos até que se feche o ciclo.
Importante, portanto, é fazer com que haja qualidade de vida ao paciente em todas as situações que ele irá vivenciar.
Um consenso entre os médicos é de que o paciente deve ter claro em suas ideias que a partir da comunicação da doença em caráter terminal, ele terá um “prazo” de vida e deve desdobrá-la nesse período de tempo. No gráfico abaixo temos ilustrado, de maneira simplificada, como evolui a doeça em um paciente, o momento em que as chances de cura se reduzem a zero e a condição de terminalidade é constatada. Neste momento, o médico especialista começa a desenvolver os métodos de cuidado paliativo. Um dos pontos nevrálgicos nessa etapa é estimular o portador a fazer projetos a curto/médio prazo, a realizar alguns desejos, incitá-lo a ter gana por aquele período de vida.
Conteúdo:
Ortotanásia x Distanásia x Eutanásia
Eles eram como pai e filho e se chamavam assim, apesar do pai ter menos idade que o filho nesta ocasião peculiar. “Seu Carlos” era um paciente amável. Levava presentes para o seu “pai”, tratava-o como tal. Essa relação durou anos; muitos. A frieza natural do doutor deu lugar à amizade, cumplicidade, companheirismo. Eram felizes.
Das provações que temos na vida, coube ao “pai” dar a notícia a “Seu Carlos” de que ele sofria de uma doença terminal no coração. Momento difícil e extremamente doloroso. Mas o “filho” não levou a recomendação do seu médico a risca. A família dele custava a acreditar que a partir daquele momento aquele senhor boa praça não faria planos para anos, talvez para um ano, mais provável para meses. E assim foi...
Seu Carlos foi internado, mais uma daquelas que ele detestava, tal qual seu “pai” que via naquele definhar, também o seu.
Mais uma alta.
Mas aquela seria diferente.
O “filho” estava feliz, contente, alegre, iria rever a família. Ele sabia que haviam armado uma enorme festa para comemorar aquela data. Levantou-se, vestiu a roupa. De repetente, não mais que de repente, o cardiopata sofre um mau súbito, uma morte súbita, totalmente inesperada naquele momento, dentro do hospital, com toda uma infraestrutura. Foi lá.
A festa de aniversário de seu “Carlos”, certamente a última de sua vida e certamente a que seria mais comemorada pela família e por ele nunca aconteceu.
Outro engano comum é associar Cuidados Paliativos a pessoas entubadas, em leitos de hospitais, agonizando em vida. A filosofia, desse ramo da Medicina, privilegia a qualidade de vida do paciente com doença terminal e isso não quer dizer propriamente a necessidade de um hospital. Dr. Ricardo Tavares deixa claro que em muitas situações é preferível que a pessoa “viva menos”, mas com mais dignidade.
Muitos pacientes chegam com uma gripe forte, uma pnemonia decorrente da baixa imunidade, por exemplo, e o médico sabe que, caso haja a necessidade de fazer a ventilação, uma sedação, muitas vezes ele nunca mais sairá daquela condição. Nesse ponto, administra-se com mais zelo essa “nova” doença a fim de mitigá-la.
Essa prática, de deixar o paciente “morrer naturalmente”, sem a perpetuação da vida pela vida é conhecida como Ortotanásia e foi considerada crime, no Brasil, até 2009, quando um projeto de lei mudou esse paradigma:
“Art. 136-A. Não constitui crime, no âmbito dos cuidados paliativos
aplicados a paciente terminal, deixar de fazer uso de meios
desproporcionais e extraordinários, em situação de morte iminente e
inevitável, desde que haja consentimento do paciente ou, em sua
impossibilidade, do cônjuge, companheiro, ascendente, descendente ou
irmão 3
A Distanásia, pelo contrário, é o prolongamento artificial da vida do paciente terminal. Os médicos a consideram extremamente angustiante, uma vez que há a distensão do sofrimento daquela pessoa acamada. Artificialmente, ela permanece viva, porém com poucas ou até sem nenhuma interação com o ambiente que a rodeia. Assim, trata-se uma conduta fortemente desaconselhada aos familiares.
Bélgica, Holanda, Áustria, Alemanha e Suíça já legislaram quanto à Eutanásia. No Brasil, ela ainda é terminantemente proibida, considerada pelo nosso Código Penal um crime de homicídio. Nos países citados há uma diferenciação quanto ao ato da eutanásia ser ativa ou passiva, ou seja, na Suíça, por exemplo é o paciente quem deve injetar uma dose letal nele mesmo, por exemplo.
Na Bélgica, havendo consentimento do paciente, os médicos podem fazê-lo.
Fato é que a eutanásia ainda é um ponto delicado na discussão ética e muitos médicos com quem a reportagem conversou, bem como pacientes, preferem não emitir opinião sobre o assunto.
“Deus, hoje, mais do que nunca compreendemos a existência de uma força maior. Sabemos que essa força só ajudou a seguir por esse caminho que chegou até aqui. Sabemos também que será essa mensagem de força que nos fará seguir sempre em frente por qualquer que seja o caminho, e eu sou testemunha disso. Amém!”
Com essas palavras, em um bilhete redigido no computador, pela falta de força nas mãos, dentro do bolso interno do paletó. Adalberto deixara essa mensagem para a família e amigos no terno que o vestiria na última despedida.
O “Zé”, apelido o qual brincava por ser o mais comum em nossa língua, era José Adalberto Krauss Reis, um professor de Geografia dos ensinos fundamental e médio, apaixonado pela sua profissão, que levava a finco desde que se formou pela PUC de São Paulo.
Ele nasceu em Passos, uma cidade a beira da bela represa de Furnas, no sul de Minas Gerais, mas se deslocou para o noroeste paulista, Santo Antônio do Jardim, onde fez carreira de professor em várias cidades vizinhas, mas uma em especial, Andradas.
Aos pés da Serra da Mantiqueira educou várias gerações da cidade. Era um ser humano iluminado, sempre rodeado de alunos que não queriam entender onde fica a jusante ou a montante de um rio, queriam apenas “trocar uma ideia” com o professor “Adal”.
O ano era 2003. A doença; um câncer de intestino. A perspectiva; cura. Em 2006, após três anos de dura batalha contra o tumor, depois de algumas cirurgias, a redenção. A cura animou a direção da escola, os alunos, os amigos. Os formandos da 8ª série do Ensino Fundamental e do 3º ano do Ensino Médio o chamam para ser o padrinho de formatura. Batalhador, Adalberto fez daquele ano um exemplo para qualquer ser humano que fraqueje diante das intempéries da vida. Por que? O acompanhamento através de exames não foi feito corretamente e o diagnóstico da situação de terminalidade da doença foi dada ao nosso “Zé”.
Ponto de virada; u-turn.
As aulas, antes suspensas por conta do tratamento quimioterápico, foram retomadas. Mesmo com a voz muito prejudicada, Adal pediu para que a escola comprasse um microfone para que ele continuasse a dar suas aulas. Assim o fazia religiosamente de segunda a sexta, das 7h às 12h. Mesmo magro, mesmo, debilitado, com dor, o professor não deixava com que seus alunos ficassem sem entender o relevo do Planalto de Borborema ou o fenômeno El Niño em todas as suas peculiaridades.
Em dezembro, após o fim das aulas e um lindo discurso de agradecimento a Deus na formatura do Instituto de Educação Alfa, o “mestre” parecia agora lívido, libertado, realizado, pronto.
Seu último pedido foi atendido e recebido com muita surpresa pelos seus admiradores.
Nem Passos, nem Santo Antônio do Jardim, o professor Adalberto queria ser enterrado em Andradas, na terra que deu a ele os seus alunos, sua vida, seus amigos.
Em sua despedida, a sua mulher chamou Henrique, um de seus alunos mais próximos, e disse que ele havia perguntado por ele dias antes de morrer. Lembrara da visita que ele fez em sua casa. De um café da tarde inesquecível. Da sensação de viver cada minuto intensamente e guardar essas memórias como o phaneron do porvir.
Era um sábado.
“Dia da Criação” (Vinícius de Moraes)
Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas, como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na Cruz para nos salvar.
Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como o tempo para passar
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal (...)
A demanda por cuidados paliativos em países os quais a população envelhece rapidamente, como o Brasil, é cada vez maior. Certos métodos usados pelos profissionais da medicina ainda são questionados por eles mesmos e não há um consenso a cerca de fases da doença terminal. Anteriormente costumava-se balizar a reação do paciente em cinco fases: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. O que diz a Medicina hoje é que não existe uma demarcação bem delineada dessas etapas. Segundo Dr. Ricardo a fluidez que permeia o processo é muito grande estando o doente ora bem, ora depressivo, ora contente, ora apático, por exemplo.
A literatura no que tange aos métodos paliativos aumenta a olhos vistos e o Congresso, tendo regulamentado essa prática, dá espaço para a pesquisa nesse meio.
Lidar com a morte, falar dela todos os dias, vê-la acontecer rotineiramente em suas mãos, faz com que os médicos tenham que procurar, obrigatoriamente, um acompanhamento psiquiátrico.
No Hospital das Clínicas, uma equipe de psiquiatras trabalha somente com a reabilitação, tratamento e prevenção de doenças em médicos expostos ao stress da morte todos os dias. O temor de que haja um recrudescimento dessas pessoas é muito alto, portanto, nessas sessões um dos temas mais abordados é a humanização do tratamento, o caráter solidário em assistir esse tipo de paciente, o escopo de cada atendimento.
Não se muda somente um doente quando o caráter terminal de uma doença lhe é comunicado, porém o médico, quando escolhe tornar a morte um habitué em sua rotina, também o faz.
O tema denso nos permite refletir sobre o caráter passageiro da vida. Sobre como todos nós podemos, em alguma medida, sermos atingidos por um u-turn, um ponto de virada irreversível. Que as histórias sirvam de exemplo da tão propalada “humanidade”, tão perdida na rotina “just keep going” a qual vivemos todos os dias. Pare e pense.
1 Buckman R. Breaking Bad News: A guide for health care professionals. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1992:15.
3 PROJETO DE LEI DO SENADO Nº 116, DE 2009. Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para excluir de ilicitude a ortotanásia
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