Dona Rita, mãe das meninas e presidente da ONG
Centenas de pessoas caminham diariamente na Avenida Maria Coelho Aguiar para ir ao Cenesp, Centro Empresarial de São Paulo, que “está em sintonia com as exigências das empresas mais dinâmicas, sofisticadas e criativas do mercado”. No entanto, poucas viram a cabeça para o outro lado da rua onde há um bairro repleto de favelas, no Jardim São Luís, extremo sul da capital paulista. O ritmo da vida diária faz com que não possamos ver o que há no outro lado da rua, ou apenas ver, porém sem prestar muita atenção. Provavelmente, muitos dos que por lá passam todos os dias não sabem que na rua da frente está a Associação Santa Cecília, muito mais modesto que o Centro Empresarial, mas que é um exemplo de evolução e aperfeiçoamento na luta diária dos moradores da comunidade.
A Associação de Moradores do Jardim Santa Cecília, que atua no Jardim São Luís e bairros do entorno, foi fundada em 1983 por Dona Albertina, uma líder comunitária do bairro que começou a fazer reuniões com moradores para melhorar a situação da comunidade. Não tinham luz, nem água, nem saneamento básico e tudo isso começou a mudar devido a liderança desta mulher e dos outros moradores que ajudaram a pressionar os órgãos públicos para ter condições básicas de vida. Nesses 28 anos de trabalho muita coisa mudou no bairro, que agora está diferente, mas continua tendo deficiências que a Associação Santa Cecília tenta solucionar no dia a dia.
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O papel das filhas de Dona Rita
No começo, o “Centro” era um lugar onde as crianças passavam o dia inteiro, seja pelo fato de que as suas mães trabalhavam e não podiam ficar com elas, seja por pura necessidade material. O centro proporcionava refeições para os que não tinham comida, e era também um lugar onde as crianças podiam brincar sem preocupações. Além disso, como parte da educação, as meninas também aprendiam a fazer trabalhos manuais, para que pudessem ajudar as mães nas tarefas domésticas. Assim, a formação das crianças era muito diferente do que o centro oferece hoje. O bairro evoluiu, e assim o fez também o centro.
Em 1992 as irmãs Juliana e Daniele Machado Olavo, ainda crianças com 10 e 9 anos respectivamente, não sabiam a importância que a Associação Santa Cecília, que dava suporte às crianças do Jardim São Luís, teria em suas vidas quando lá entraram pela primeira vez. A mãe das meninas, dona Rita de Cássia, era voluntária, e nesse ano se tornou cozinheira da Associação. Como passava o dia trabalhando passou a levar suas filhas para o Santa Cecília, para que não ficassem sozinhas em casa.
“Minha mãe já conhecia o centro, mas ela sempre trabalhou em casa como costureira. Então, ela foi chamada para ser cozinheira no almoço das crianças e não ia deixar as meninas sozinhas em casa. É foi assim que nós viemos parar aqui”, conta Juliana, a mais velha das irmãs.
Juliana em seu escritório
Assim como as outras crianças, Juliana e Daniele chegavam cedo à associação. Pela manhã tomavam café, brincavam, almoçavam e de lá partiam para a escola que ficava duas ruas acima. Nessa época, com quase 10 anos, a Associação Santa Cecília ainda engatinhava. A intenção era apenas de ocupar o tempo livre das crianças da comunidade que iam lá para brincar. A capoeira era uma das poucas atividades culturais desenvolvidas entre as pouco mais de 60 crianças. “Nós vínhamos para brincar e comer. Os meninos faziam capoeira e as meninas estavam muito ligadas às atividades artesanais e manuais”, lembra Juliana.
Hoje o centro cresceu, e se espalhou pela cidade de São Paulo, mais especificamente pela zona sul da cidade. Já são quatro unidades: três Centros de Crianças e Adolescentes, nos bairros do Jardim Ibirapuera, Santo Antonio e Jardim São Luís; e um Serviço de Assistência à Família e Proteção Social Básica no Domicílio (SASF), no Capão Redondo. As irmãs Juliana e Daniele, que cresceram junto com o centro, hoje fazem parte do corpo de cerca de 40 funcionários envolvidos no projeto, número ainda pequeno na opinião delas, já que cada centro atende cerca de 120 pessoas, entre crianças e adultos e 1000 famílias no SASF.
O maior problema para a contratação de novos funcionários é a falta de verbas já que o centro vive basicamente do apoio da prefeitura de São Paulo, na pasta da Assistência Social e de doações, que andam escassas pelo fato da organização não ser conhecida. Fundação Gol de Letra, Instituto Ayrton Senna, Fundação Abrinq, e muitas outras organizações de grande porte são mais atraentes para possíveis doadores. Essa dinâmica se torna natural na medida em que as doações para determinados projetos são vistos também como investimentos para as empresas. “Se a empresa X pode associar o seu nome a um instituto Ayrton Senna, por que ela se vai associar com a Associação Santa Cecília, que ainda não tem uma marca, por ter o departamento de comunicação muito pifio? Deixa de ser uma questão de causa e começa a virar um negócio”, diz Juliana. Apesar da grande “concorrência” a associação tem o apoio de outras instituições, de órgãos governamentais e de algumas grandes empresas, como a Alcoa Aluminio, através do Instituto Alcoa e a Procter & Gamble do Brasil.
Daniele é uma das responsáveis pela gestão da associação
Mesmo com o apoio escasso, muita coisa melhorou. Além de móveis e computadores, até mesmo coisas básicas, como os cardápios do café da manhã e almoço, mudaram. “Nós não tínhamos os recursos que a gente tem hoje, mesmo a alimentação não era de qualidade como é agora. Eu lembro até hoje que comíamos pão com patê de presunto o mês inteiro no café da manha. O almoço era sempre arroz, feijão e uma mistura de carne, e às vezes se não tivesse isso era uma farofa de ovo ou de frango. Era tudo muito precário, e só vinham para cá as pessoas que precisavam muito, algo diferente de hoje.”, conta Daniele.
Podemos dizer que muito dessa mudança tem a ver com Juliana. Em 2005, ainda com 22 anos, em seu último ano na faculdade de pedagogia, ela passou a trabalhar no centro e conseguiu colocar em prática muito do que aprendeu no curso. As crianças assistidas pelo centro continuam brincando, mas agora cada atividade tem uma intenção, um porquê: a socialização, a interação e o respeito ao outro são estimulados nos momentos de diversão. As crianças não estão lá simplesmente porque precisam comer ou porque os pais não tem onde deixar os filhos, mas sim porque o centro se tornou um lugar de aprendizado e de descoberta de potencialidades.
“Eu fiz Pedagogia, uma formação voltada para a escola, e entrei para trabalhar no centro tentando mudar o mundo. Eu era nova, tinha 22 anos, e aquela visão de estudante de que tudo é possível. Vi que a questão era outra que não era a educação formal da escola, e a gente foi mudando a nossa dinâmica de trabalho, o nosso modo de ver a coisas, de começar a planejar e apliquei o que aprendi no curso de Pedagogia atrelando à Política da Assistência Social. Toda atividade tem que ter uma intenção e tem que ser funcional. Até o brincar tem que ter um objetivo”, diz Juliana, hoje responsável pela gestão da associação.
O centro trabalha também no sentido de auxiliar as crianças a formarem projetos de vida, de enxergar a necessidade da continuidade nos estudos, de emanciparem-se. O centro atende crianças de seis a quinze anos deixando uma lacuna até a época de entrar na universidade. Quando as crianças vivem longe do centro é mais fácil perder o vínculo, mas Juliana acredita que vale o incentivo já que, em sua opinião, hoje está mais fácil ingressar em uma faculdade. Para ela, as oportunidades são muito maiores do que quando estudou.
Juliana, Dona Rita e Daniele com as crianças da associação
“As crianças tem vagas na escola, e o nosso trabalho é fazer com que entendam a necessidade de estudar. Eu acho que hoje a faculdade para eles é muito fácil. Aqui em São Paulo só não faz faculdade quem não quer. Nós temos bolsas do Governo Federal, provas para ingressar nas universidades, bolsas para estudar em universidades particulares. Basta fazer com queiram estudar. A possibilidade de que as crianças tenham uma formação é muito maior que nos nossos tempos”, diz a educadora.
A evolução do centro também é percebida nos resultados. Quando Juliana e Daniele estiveram lá como crianças às coisas eram tão diferentes que não perceberam nenhuma mudança significativa na vida dos amigos que passavam o tempo livre com elas na Associação Santa Cecília. “Poderia contar com os dedos da mão as pessoas que tiveram sucesso. Juliana e eu, fazemos parte dos poucos que estudamos e melhoramos a nossa vida” diz Daniele. As duas lembram emocionadas a infância feliz que tiveram, mas são conscientes de que para muitos dos seus amigos não foi possível conseguir o que hoje elas tentam alcançar com as crianças dos três centros.
“Agora até temos salas a noite de Movimento de Alfabetização de Adultos, além de cursos e projetos que se implantaram pouco a pouco, mas antes tudo era mais precário”, completa Daniele. Quando terminam seus períodos de passagem no centro a idéia é que as crianças apreciem diferentes valores e saibam o que é importante na vida, tenham seus vínculos familiares e comunitários fortalecidos. Para Juliana e Daniele isso é o que há de mais gratificante para as pessoas que trabalham na formação das crianças. “Confesso que há meninas que saem do centro e ficam grávidas com 16 anos, e existem casos de pessoas que terminam no mundo das drogas. Perdem o vínculo quando se afastam, mas o impacto que os nossos esforços geram é cada vez maior. A maioria dos meninos consegue adentrar o mundo do trabalho e continuar os estudos”, afirma Juliana.
Apesar dos casos dos que mesmo com a ajuda do centro seguem um caminho mais difícil, as educadoras insistem em tentar conseguir gerar mudanças na vida das crianças. O resultado de todo esse trabalho faz com que os centros sejam cada vez mais procurados, isso porque as pessoas do bairro também passaram a observar o trabalho que os funcionários fazem pela comunidade. A lista de espera só aumenta e os outros centros novos, construídos no ano passado, são necessários para cobrir as demandas dos vizinhos. Muitas vezes os próprios pais das crianças se animam a voltar a estudar o que faz com que existam famílias inteiras aprendendo juntas na associação.
Há quase 8 anos Juliana se tornou coordenadora da Associação Santa Cecília. Além dos conhecimentos adquiridos no curso de Pedagogia a diretora cursa hoje uma especialização em Gestão de Projetos Sociais, algo que se tornou necessário quando se tornou responsável pela gestão do centro.
A inspiração e o incentivo para a dedicação aos estudos das irmãs Juliana e Daniele tem uma fonte. Nascida em 1949, em uma pequena cidade do Ceará: Acarau, Dona Rita de Cassia largou os estudos aos 17 anos, no terceiro ano de magistério, quando veio para São Paulo sozinha para trabalhar. Depois pode voltar a estudar no ano 2000 para fazer o último ano de magistério e realizar o sonho de se formar. Dona Rita sempre lutou para dar uma vida diferente da sua às filhas e hoje se orgulha do trabalho que exerce junto com elas no centro. Dona Rita, atualmente é a presidente e junto com Dona Marinalva e Edinardo, respondem legalmente pela ONG. Juliana fala que a mãe sempre pediu para que elas se dedicassem aos estudos: “Ela queria que a gente tivesse uma vida diferente de sua infância e que a gente se formasse. Lutou para que isso acontecesse e sempre nos animou para melhorar a nossa vida”, conta.
Além de ter sido a principal influencia para as suas próprias filhas, Dona Rita trabalhou como voluntária e mais tarde como cozinheira na Associação Santa Cecília para ajudar as crianças. Ela considera que todas as horas passadas no centro tiveram a sua recompensa. Dona Rita viu muitos meninos entrarem, crescerem, e saírem do centro desde que começou a trabalhar lá, há 20 anos. Cada um deles tem a sua historia, a sua forma de ser, o seu caráter, a sua vida e ela sempre esteve lá vendo como as pessoas se transformavam e também como, ao mesmo tempo, melhoravam o centro ao qual ela dedicou a sua vida.
Com o passar do tempo, todos foram aprendendo a redirecionar o objetivo do centro misturando a experiência de Dona Rita com os conhecimentos das suas filhas. De uma maneira recíproca, a Associação Santa Cecília mudou a vida delas e estas três mulheres ajudaram para que a instituição também evoluísse. Após ganhar um caminho alternativo, um desvio oferecido pela associação, Juliana, junto à irmã e mãe, tenta trabalhar para oferecer a mesma alternativa aos moradores dos bairros atendidos. “O vínculo que a gente tem com a Associação Santa Cecília é muito forte, e é por isso que tentamos melhorar a cada dia. Faz parte da nossa vida”, finalizou a coordenadora.
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