Mulheres reais
Por Ana Carolina Alves - Edição U-turn - dezembro de 2011
Top model Fluvia Lacerda

“Na minha casa nem o cachorro é gordo”. Então, como se fosse a atitude mais natural do mundo, amarrou o indefeso e gordo cão para fora do carro luxuoso e saiu dirigindo rapidamente para que ele pudesse perder alguns quilinhos. O cachorro teve que correr - e muito - para recuperar a boa forma e, assim, poder voltar ao status de melhor amigo (magro) da dona. C. – 60 anos, corpo esguio de 30, rosto esticado almejando os 20 – contou a história a um grupo de pessoas, que teve que assentir frente a superioridade da chefe.  Assim que ela vira as costas, o burburinho de insanidade parece evidente a todos.

“Puta que pariu! Puta que pariu! Que delícia, que gostoso! Foda-se, foda-se! Depois eu faço uma lipo!”, gritava L. de sua sala enquanto se deliciava com um apetitoso e micro pastelzinho de Belém. Do lado de fora, todos faziam silêncio, mas seguravam o riso. A cena, afinal, não era inusitada: de tão preocupada em manter o corpo jovem e magro, por diversas vezes a refinada L. abria um chocolate, sentia seu cheiro, mordia e... cuspia. Apenas para sentir o gosto, mas não engordar. O terrível pecado de se render ao simples doce não era para ela. O ideal da magreza e, por consequência da beleza, era mais forte. Meio pecado, meio prazer.

As duas histórias traçam um perfil cada vez mais evidente hoje: grande parte das mulheres associa a ideia de beleza à ideia de magreza. Única e absolutamente. Para ser bonita, é preciso ser magra e ponto final. 14 das 21 revistas femininas na Banca Bruno, na Avenida Paulista, em São Paulo, possuem chamadas de dieta na capa. Essa ideia se tornou uma obsessão, uma via única de chegada ao tão sonhado patamar da beleza, mesmo que 42,3% das brasileiras estejam com sobrepeso (segundo dados do Ministério da Saúde no ano de 2009).
 


 Conteúdo:

Do outro lado

Esteriótipos x realidade

Cabide grande

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Do outro lado

Mas nem todas as mulheres querem se submeter a essa singular opção de felicidade. Elas desejam vestir roupas modernas, caras e com um bom acabamento assim como qualquer magra. Chamam-se de mulheres reais e não se importam em não entrar em uma calça jeans 38: querem apenas que exista a mesma peça no tamanho 48. São felizes e, melhor, saudáveis. E até ganham dinheiro com isso.

É o caso da carioca Fluvia Lacerda, única modelo plus size brasileira a alcançar o sucesso internacionalmente. Conhecida como Gisele Bündchen das gordinhas, Fluvia – que trabalhava como babá em Nova York – foi abordada dentro de um ônibus em Manhattan por uma editora de moda que perguntou se ela não tinha interesse em se tornar uma top plus size. Ela, que nem sabia que existia esse ramo na profissão de modelo, aceitou e não parou mais de fotografar. Tornou-se modelo contratada da agência Ford Models, uma das maiores do ramo, e neste ano de 2011 ganhou o prêmio de modelo do ano durante a Semana de Moda Plus Size em Nova York, além de fotografar importantes editoriais de moda para a Vogue Curvy, segmento plus size da revista de moda italiana e criado por sua editora, Franca Sozzani, em uma campanha contra a anorexia.

No luxuoso hotel Porto Bay em São Paulo, Fluvia aguardava a entrevista com um vestido leve e bastante colorido, em contraste com o esperado preto, exigido nos manuais de moda de “como se vestir bem e ainda parecer mais alta e magra”. Já pela roupa notava-se que ela seria diferente de mulheres que cospem chocolate.

 

Esteriótipos x realidade

Com 1,72 m de altura e vestindo manequim 48, Fluvia nunca fez dieta e respondeu com um quê de indignação quando a pergunta surgiu. “Nunca fiz dieta na minha vida. Acho que foi algo de criação, minha família nunca me cobrou para ser magra. Não havia essa associação de ‘preciso emagrecer para ser feliz’. Gosto de comer e não consigo me imaginar ficar contando as calorias ou pontos presentes em uma colher de arroz”, retrucou com estilo.

Ela, que sempre praticou esportes, leva uma vida mais saudável do que muita gente magra. “Na minha família sempre fui a mais cheinha e também a mais saudável. Não como frituras, alimentos processados, refrigerantes ou fast food. Não sou muito fã de açúcar também. Adoro comidas orgânicas. Em Nova York, onde moro com minha família, tenho uma bicicleta com uma cesta, para fazer exercícios físicos e já aproveitar para comprar alimentos orgânicos. Mesmo com a correria, tento manter uma alimentação saudável não para emagrecer, mas para cuidar da minha saúde”, continua. Ainda pratica Bikram Yoga e faz exercícios com a ajuda de um personal trainer, de duas a três vezes por semana.

A rotina saudável de Fluvia desmistifica a imagem de que uma pessoa fora dos padrões ditos ideais é um gordo preguiçoso que não quer emagrecer, que fica na frente na TV comendo salgadinhos o dia inteiro. Também não se trata de fazer um apelo à obesidade, como dizem alguns. É um grito para tentar fazer a sociedade enxergá-los como pessoas comuns, diferentes porque que não têm como prioridade de vida ter um corpo de capa de revista. São felizes do jeito que são porque são saudáveis e amam seu corpo desse modo. A terapia nutricional, novo ramo da nutrição, é uma das áreas médicas que tenta lidar com essa crítica. Dentro dela, um dos primeiros trabalhos com um paciente obeso é fazê-lo aceitar o corpo do jeito que é. “Quanto maior é o preconceito com pessoas obesas, maior é a ingestão de alimentos”, diz Manoela Figueiredo, nutricionista membro do Grupo de Estudos em Nutrição e Transtornos Alimentares (Genta). Para ela, a preocupação com a saúde do obeso deve vir sempre em primeiro lugar. “A perda de peso é consequência”, pontua.

“As pessoas olham para você e pensam ‘você gorda, você é doente’ ou ‘você é gorda, você é psicologicamente alterada porque não consegue parar de comer’. Não passa pela cabeça delas que é um prazer para mim comer. Não como por compulsão, como porque é um prazer”, ressalta a jornalista Juliana Romano, que come salada, bife, duas colheres de arroz e uma de feijão, “como todo mundo normal”. Com seu blog Entre Topetes e Vinis, Juliana se tornou um exemplo para garotas inseguras com o corpo – sejam elas gordinhas ou não – de que é possível usar roupas da moda com estilo independente do peso registrado na balança.

 

vogue curvyRevista "Vogue Curvy" e jornalista Juliana Romano



A jornalista nunca teve problema em ser a mais gordinha da turma do colégio. “Sempre joguei vôlei, nunca tive colesterol alto, pressão alta, nunca tive nada e sempre fui gordinha”, conta. Assim como Fluvia Lacerda, foi sempre muito saudável. “Exceto quando eu tinha 15 anos, que, aliás, eu não era nada saudável”. Vestindo blusa cropped e saia longa – últimas tendências de moda –, Juliana se lembra da única fase infeliz da sua vida: quando teve anorexia e bulimia no auge da adolescência. O culpado? Um remédio para acne tarja preta chamado Roacutan, cujo um dos efeitos colaterais é a depressão. “Vomitava que nem uma maluca. Fiquei magra dos ossos saltarem no quadril, nos ombros... Horrível”. Chegou a comer em um dia inteiro só um gomo de mexerica: achava que a fruta tinha muitas calorias e que ela inteira deveria durar uma semana. “É um negócio que você não sente que está fazendo errado. Para mim parecia tudo muito certo”. Além de tudo, na época Juliana malhava 8h por dia e achava que não estava emagrecendo. Comprava uma barrinha de cereais, dava uma mordida e jogava no lixo, para não ter perigo de dar outra. “Não sei como não morri e como tive coragem de fazer aquilo comigo mesma”. A mãe médica percebeu a diferença de peso e de atitude da filha e não a deixava levantar da mesa antes da hora, nem correr para o banheiro. Antes disso, Juliana jura que nunca tinha sido uma pessoa infeliz. A única fase depressiva que se lembra foi essa. “Agora estou na fase mais gorda da minha história e continuo numa curva ascendente. Mas não é uma preocupação para mim porque toda vez que me lembro da fase que eu era magra, lembro da fase mais triste da minha vida”, relata. Ela não se pesa desde então, mas estima que esteja com uns 30 kg a mais.
 

Cabide grande

Outra grande dificuldade em ser gordinha é encontrar roupas bonitas que sirvam. “Mesmo estando bem mais magra do que estou hoje - por ter quadris e ossos largos e coxa e bunda grande - eu tinha uma dificuldade absurda de achar roupa. Era uma saga comprar calça jeans. Eu saía com um desânimo e comprava todas as peças que cabiam em mim, porque sabia que possivelmente não ia achar outra que coubesse”, conta a jornalista Juliana Romano.

A reclamação de Juliana não é singular: ela divide as mesmas ideias das leitoras de seu blog, a maioria delas também gordinha, e de muitas outras mulheres excluídas da moda por não terem o corpo considerado perfeito. O que elas dizem é que as marcas aumentam o tamanho da peça, mas se esquecem da modelagem do corpo gordo. “Não adianta aumentar 10 cm na largura da roupa e não aumentar 10 cm no braço ou na perna da roupa. As marcas ou fabricantes acabam deixando de lado as características da gordinha e as roupas acabam ficando disformes no corpo”, relata.

Juliana costuma adquirir suas roupas em lojas de departamento, mas quando se fala em roupas mais caras, o problema fica ainda pior. “Fico inconformada que empresários do País ainda não tenham explorado o mercado plus size, já tão difundido no exterior, e que mulheres brasileiras tenham que importar da Europa roupas de qualidade de tamanho extragrande justamente pela falta de opções”, critica a modelo GG Fluvia Lacerda. Segundo ela, no Brasil a maioria das roupas grandes ainda é de malha, sendo ignorado o público que tem dinheiro para adquirir peças com tecidos mais finos, como seda e linho, por exemplo. Sua declaração em 2010 de que toda vez que vem ao Brasil morre de medo de perder a bagagem, porque nunca encontraria roupas da mesma qualidade aqui, enfureceu fabricantes e lojistas de marcas GG. Resultado: tornou-se persona non grata em eventos com o Fashion Weekend Plus Size, realizado em São Paulo.

Até bem pouco tempo, a única escolha da mulher gordinha era se contentar com roupas velhas, de estampas e tecidos feios. Mas isso tem mudado aos poucos, muito pela influência internacional. Segundo dados da Global Purchasing Group, o mercado plus size movimenta 27 bilhões de dólares pelo mundo. Grifes de luxo como Chanel, Marc Jacobs e Valentino começaram a criar peças com numerações grandes, talvez também por influência dos números absurdos: de acordo com a Organização Mundial da Saúde são pelo menos 1,6 bilhão de pessoas obesas no mundo, sendo de 2,3 bilhão a projeção para 2015.

 

coversNo sentido horário: Beth Ditto na capa da "Love", Adele na capa na "Vogue" UK, Dita Von Teese e Christina Hendricks na "Esquire"



Para a jornalista Juliana Romano, o leque de opções só se tornou visivelmente mais vasto de uns dois anos para cá, apesar de algumas vendedoras ainda rirem com o canto da boca quando ela pede alguma peça com informação de moda em um tamanho grande. Entretanto, o que mais a incomoda é o fato de o segmento plus size ser tratado exatamente como o nome diz: um segmento, e não algo natural que faz parte de um todo. “As meninas gordinhas que eu converso pensam a mesma coisa: por que quem veste do 38 ao 42 é normal e acima disso é um segmento?”, questiona. Para ela, o fato de existir um grupo plus size é errado, até mesmo porque quase metade das mulheres brasileiras está nesse grupo. “É um preconceito não querendo ser preconceituoso. É como se dissessem: ‘olha, a gente não quer falar que você é gorda, mas você está no segmento plus size’”. A jornalista ainda conta de uma coleção com tempo limitado feita em 2010 pela rede de lojas C&A chamada “Special for You”, a qual uma parte ia do tamanho 44 ao 52. “De certa forma, ela está sendo isolada da coleção inteira – a gordinha faz parte de uma coleção especial para ela. Se faz uma peça 36, faz uma peça 46 também, qual é o problema? É a mesma peça com tamanhos diferentes. Não deveria ter o segmento plus size e o mini size, entende? Por isso que eu falo que queria muito ver modelos grandes e gordas no São Paulo Fashion Week. Eu sei que as modelos são um cabide, mas por que elas não podem ser um cabide grande?”, continua.

É possível pensar que o padrão de beleza mudou. Antes mulheres rechonchudas pintadas por Renoir eram as mais belas, hoje essas são consideradas muito gordas, muitas vezes por uma imposição de um padrão midiático irreal. “A televisão coloca a brasileira como gostosa, o mundo coloca a brasileira como gostosa e a brasileira se cobra em ser gostosa. E não gostosa do jeito que ela é, mas gostosa em um padrão que as pessoas acham que tem que ser. Mas na verdade nem é a real, porque eu nunca fiquei com um cara que não gostasse do fato de eu ser gordinha. Inclusive as meninas do blog falam a mesma coisa: que os namorados adoram apertar, puxar, falar vem cá, morder...”, conta Juliana Romano. Prova disso é a curvilínea Christina Hendricks, da série Mad Men, ser considerada em 2010 a mulher mais sexy do mundo pela revista Esquire; é ver o rosto angelical da cantora Adele nas principais capas de revistas do mundo; é querer copiar os estilos das irreverentes Beth Ditto e Dita Von Teese. O fato é que um padrão, seja ele qual for, é algo totalmente questionável. “Na verdade, o padrão quem cria é a gente”, atesta a gordinha e orgulhosa Juliana. No fundo, cabe a cada uma decidir se vale a pena saborear o chocolate ou se é melhor cuspi-lo fora de vez.

 

http://updateordie.com/blog/2011/10/10/playmates-sobrepostas-e-o-ideal-feminino



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