Bicho do asfalto
Permacultura, ecovilas, paz, amor e alternativas para viver melhor na metrópole sem virar “bicho do mato”
Por Bruna Escaleira - Edição Metrópole - junho de 2011
Ana Paula e seu filho Micah na Morada da Floresta (Foto: Bruna Escaleira)
Numa rua residencial comum da zona oeste paulistana, uma casa se sobressai entre as vizinhas. Aparentemente, nada de especial na construção, a não ser pela vegetação, que escorre muro abaixo e vai beijar a calçada, passando pelos coloridos coletores de lixo reciclável abertos à comunidade. Não fosse o asfalto da rua, seria possível dizer que a ecovila Morada da Floresta fica, de fato, no meio da mata. Ao subir as escadas em direção ao quintal, vê-se um homem brincando tranquilamente com seu filho, em plena quinta-feira de manhã. Ele é Cláudio Spínola, e não está ali à toa, aquela é sua casa e também seu local de trabalho.

“A morada tem 12 anos e começou como uma república de estudantes da USP que tinham em comum uma busca pela ecologia”, explica Ana Paula Silva, moradora e sócia fundadora do Instituto Morada da Floresta. Ela conta que a construção da ecovila foi um processo de desconstrução de conceitos e hábitos comumente urbanos: “começamos com acordos básicos, como a não-violência através da alimentação vegetariana, o não-consumo de multinacionais, a realização de compostagem de todo resíduo orgânico produzido aqui, o reaproveitamento de materiais de construção usados para reformas e o plantio, iniciado com o Cipó Jagube e a Rainha, plantas de origem amazônica usadas para o preparo do chá Santo Daime, que inspiraram nosso nome”. O local não é um centro ou “igreja” do Daime, este é apenas uma prática dos moradores, que seguem a “linha espiritual unificada”, reunião várias correntes de espiritualidade ligadas à concepção de que tudo e todos estamos ligados, já que cada ser vivo é uma parte do planeta.
 
 
Jardim no muro da Morada da Floresta
Qualquer espaço pode ser aproveitado para um jardim, como o muro da Morada da Floresta (Foto: Bruna Escaleira)

Apesar de, hoje, contar apenas com uma família moradora – Ana Paula, Cláudio e seus dois filhos - a Morada da Floresta é considerada uma ecovila por ter acumulado experiências reais de vida ecológica coletiva. “Muitos moradores passaram por aqui e fomos aplicando práticas de vida em comunidade, como decisões por consenso e dinâmicas de grupo”, conta Ana Paula, enquanto observa seu filho caçula brincando entre as plantas, os gatos e as borboletas do jardim. Mais que exemplo de convivência, a casa se tornou um centro de troca de informações e cursos relacionados a ecologia e permacultura. O próprio desenvolvimento da família acrescentou novas discussões e propostas à morada, como a ecologia feminina e infantil. A casa também busca interação com a comunidade próxima, disponibilizando coleta de lixo reciclável e realizando a compostagem dos resíduos orgânicos da feira de rua do bairro em um terreno baldio cedido pela prefeitura.
 
Inicialmente um movimento alternativo “puro”, sem ligação direta com as estruturas burocráticas e econômicas da cidade, a morada viu a necessidade de se institucionalizar para poder ampliar suas ações.
 
Em 2009, foi fundado o instituto, hoje uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), que promove cursos, vivências e programas educativos, bem como a empresa Morada da Floresta Soluções Ecológicas Ltda, que comercializa produtos ecológicos fabricados na própria casa – como composteiras domésticas (ou minhocários) e empresariais, bioabsorventes femininos e fraldas ecológicas – ou importados – como o Okoball, que ajuda a reduzir o uso de sabão nas lavagens de roupas e o coletor menstrual Mooncup.
 
 
Coleta seletiva aberta à comunidade na Morada da Floresta (Foto: Bruna Escaleira)
Coleta seletiva aberta à comunidade na Morada da Floresta (Foto: Bruna Escaleira)
 
 
Institucionalizar ou não?
 
A escolha pela institucionalização divide os ativistas da área ambiental, pois submete ideias alternativas ao sistema dominante, contra o qual eles mesmos lutam. Para Gabriel Moulatlet, pós-graduando em Ecologia no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, “entrar no sistema” criando uma entidade como uma ecovila pode ser perigoso, porque “algumas delas surgem como condomínios onde, não necessariamente, as pessoas buscam uma vida de equilíbrio pessoal e integração com a natureza, tem síndicos e empregados terceirizados. Assim, a relação dos moradores com a cidade acaba sendo como a dos condomínios: as pessoas usam a cidade para trabalhar, consumir e se fecham em suas vilas, não criam uma relação de construção e melhoria do espaço comum, e sim de uso em benefício próprio”.
 
Já Ana Paula crê que a institucionalização não alterou os ideais e objetivos da Morada da Floresta. “Trouxe muita mudança, porque a formalização demanda bastante trabalho, ainda mais quando se quer fundir uma proposta alternativa a uma maneira de se comunicar com a sociedade, por meio de um instituto e uma empresa. Mas tivemos resultados muito positivos, porque nos deu mais seriedade e quebrou preconceitos que muitos tinham diante do nosso trabalho”, conta. “Também aumentou a possibilidade de crescimento das nossas ações, pois temos uma linguagem mais acessível para nos comunicar outros setores da sociedade; conseguimos chamar a atenção de empresas grandes, como a Faculdade Mackenzie, onde montamos um sistema de compostagem que poderá inspirar um número muito maior de pessoas”, comemora.
 
Devido à dificuldade de interação no meio urbano sem formalização, alguns ecologistas acreditam que a questão esteja mais relacionada aos atores que propõe certos empreendimentos e suas intenções do que à institucionalização em si. “O mercado é especialista em conhecer as vontades das pessoas e trazer um produto para suprir essa demanda”, diz Fernando Neme, advogado ambiental, permacultor e nucleador de ecologia da ONG Ecobairro. “O marketing já entendeu que os paulistanos estão cansados de viver em cubículos, precisam de um jardim, é uma tendência. Por isso, muitos empreendimentos, realmente têm um apelo de ecovila. Mas a verdadeira ecovila é um estilo de vida, um modo de relacionamento consigo mesmo, com os outros e com a natureza, que tem uma série de regras, estatutos e regulamentos”, explica.
Talvez, o maior problema da disseminação de ideias ecológicas “sustentáveis” no meio empresarial seja a banalização do termo. “Acho muito ruim a exploração da sustentabilidade por empresas que de sustentável não têm nada, pensam apenas no viés econômico”, diz André Fossaluza, biólogo e permacultor. “É claro que comprar um produto ecológico é melhor do que consumir um convencional, mas acho que a reflexão deve ser mais profunda. Não adianta nada comprar produtos verdes e continuar sendo consumista, por exemplo, isso é apenas uma troca de pacote tecnológico: agora a moda são produtos verdes, depois azuis, depois vermelhos e assim por diante”, comenta.
 
No entanto, é impossível não admitir um aumento na visibilidade e acessibilidade a informações sobre questões ambientais desde que mercado “absorveu” o tema. “Isso é um ponto positivo, mas não basta para conscientizar a maioria das pessoas. Acredito que a questão deveria ser trabalhada através do ensino, desde a educação básica nas escolas, e não colocando a economia como centro do debate”, diz o biólogo. A opinião é compartilhada pelo biólogo, educador e membro da campanha De Olho nos Mananciais, Cesar Pegoraro. Para ele, o maior problema do ensino nacional é a falta de educação para a cidadania e o incentivo à competição, em lugar do trabalho coletivo e da preocupação com o bem estar e a ética.
 
“Não temos a tal da educação ambiental, por isso, na cidade, ninguém se sente parte da natureza, animal é xingamento e preservar o meio ambiente significa olhar pra Amazônia, longe, não para a minha rua, pro ar que eu respiro. Posso jogar lixo, porque é problema da prefeitura e o coletivo não me pertence. É um problema de percepção cíclica, de não considerar que tudo e todos estamos interligados”, diz Pegoraro. Pergunto-lhe qual considera o maior empecilho para a instituição da educação ambiental nas escolas e o educador é categórico: “falta de educação novamente”.
 
 
Eco, com ou sem vila
 
A história da Ana Paula, da Morada da Floresta, não é a mais comum entre os ecologistas urbanos. Ainda há poucas experiências de ecovilas em grandes cidades e seus próprios moradores e simpatizantes admitem que as possibilidades de vivências ecológicas coletivas são maiores no campo ou em cidades menores, onde se pode ter acesso a mais recursos naturais para a produção de seu próprio alimento e a terrenos maiores para a união de mais pessoas com o mesmo propósito, por exemplo. Contudo, montar uma ecovila rural não é nada fácil, exige muito diálogo e disposição para chegar a acordos comuns, além da disponibilidade de um capital inicial para a compra coletiva de um terreno. “Quer sossego, sai da ecovila”, brinca Fernando Neme.
 
“Não se pode esquecer que as ecovilas são escolas de convivência, são experiências muito recentes, sistemas embrionários”, lembra o advogado. Por isso, são propostas como exemplo para suscitar a reflexão e inspirar outros “urbanoides” a repensar conceitos e mudar seus hábitos, ainda não se colocam como modelo a ser seguido por todos. Além disso, mesmo fora da cidade, uma ecovila não consegue e nem pretende cortar todos os seus vínculos com o meio urbano, a maior parte delas fornece alimentos orgânicos às cidades próximas e promove cursos relacionados a ecologia e sustentabilidade.
 
No entanto, ele garante que você pode aplicar os ideais base de uma ecovila à sua rua ou seu bairro e criar um “ecobairro”, como propõe a organização da qual faz parte. “Fazendo adaptações simples à sua casa, como clarabóias (furos no teto para aproveitar a iluminação solar) ou aquecedores solares de água, mudando hábitos como o consumo excessivo e incentivando a interação e a solidariedade entre os moradores, você cria um sistema de alegria e colaboração”, propõe Fernando, que se interessou por ecologia ao visitar o sítio de um tio e praticar esportes radicais; ele se diz muito mais feliz depois de ter aplicado estas medidas em sua casa, além de aderir a técnicas medicinais alternativas. A ONG vai ainda mais longe e propõe a formação de uma “ecovila cósmica” que envolva todo o planeta Terra. “Pode parecer utópico, mas ninguém está muito preocupado em remar contra a corrente, só em viver de forma diferente para se sentir melhor. É um encantamento consigo e com o mundo inteiro. Mude você, que o mundo melhora”, comenta entusiasmado.
 
O princípio do Ecobairro é semelhante ao do movimento das Transition Towns (Cidades em Transição), criado pelo inglês Rob Hopkins com o objetivo de transformar cidades em modelos sustentáveis, menos dependentes do petróleo, mais integrados à natureza e mais resistentes a crises externas econômicas e ecológicas - ou, simplesmente, a concepção de que uma cidade que reduz seu consumo de energia e recursos naturais pode se tornar, ao ser adequadamente planejada e estruturada, um sistema com maior capacidade de recuperação, mais abundante e mais harmonioso do que antes.
 
Infelizmente, ainda não se pode dizer que São Paulo seja uma cidade em transição ou tenha um ecobairro, apesar das iniciativas, hoje, mais presentes em bairros como a Vila Mariana e a Vila Madalena - mas, para o advogado, “se a cidade vier a ter um deles, o primeiro será a Mooca, porque lá existe um censo de comunidade muito forte”, aposta. “Não vejo um ecobairro paulistano em pouco tempo, mas já vejo muitas políticas públicas neste sentido, como o Programa de Metas que a prefeitura passou lançar anualmente, graças à pressão da sociedade civil, através de movimentos como o Nossa São Paulo”, comemora.
 
Cesar Pegoraro é outro entusiasta das iniciativas “verdes” urbanas. “Pelo fato de estar na cidade, temos mais provocações para encontrar maneiras sustentáveis de viver”, diz. Sua inspiração veio de berço, “meus pais são do interior e sempre tiveram relação com a terra, apesar de termos vindo morar em São Paulo. Mas essa relação só passou a fazer sentido pra mim muito tempo depois, na época da faculdade, quando passei a ter contato mais intenso com o dia-a-dia urbano; de pequeno, achava a preocupação ecológica deles muito chata, odiava ter que transportar o lixo orgânico de casa, que deixávamos compostando a semana toda, até o sítio no final de semana, era muito fedido”, conta.
 
Hoje ele trabalha como professor de permacultura na escola de educação infantil Grupo Oficina e coordena voluntariamente o projeto “Parque Linear do Córrego Água Podre” junto a seus vizinhos do bairro do Rio Pequeno. “Parque Linear é uma readequação de fundo de vale, que deve ser preservado, mas geralmente passa a ser área de ocupação irregular”, explica. A organização dos moradores conseguiu alterar o projeto da prefeitura, que preservaria apenas uma parte do córrego, e será o primeiro parque linear da cidade a envolver desde a nascente até a foz de um rio.
 
 
Planta mostra área de influência do Parque Linear do Córrego da Água Podre (Imagem: SVMA)
Planta mostra área de influência do Parque Linear do Córrego da Água  Podre (Imagem: SVMA)
 

Partida da Expedição Pinheiros Vivo; o riacho Água Podre foi um dos visitados (Foto: Cesar Pegoraro - ver mais em http://aguasclarasdoriopinheiros.org.br/expedicao/home2/)
Partida da Expedição Pinheiros Vivo; o riacho Água Podre foi um dos visitados (Foto: Cesar Pegoraro - ver mais em http://aguasclarasdoriopinheiros.org.br/expedicao/home2/)
 

Ave visita margens do Córrego da Água Podre (Foto: Helena Salgado)
Ave visita margens do Córrego da Água Podre (Foto: Helena Salgado)
 
 
 Malabarismo radical de jovem em meio ao lixo acumulado no córrego Água Podre (Foto: Cesar Pegoraro)
Malabarismo radical de jovem em meio ao lixo acumulado no córrego Água Podre (Foto: Cesar Pegoraro)
 
Em sua casa, aplica os conceitos ensinados a seus alunos, como a compostagem do lixo orgânico e a criação de pequenas hortas orgânicas. “Também quebrei o muro do meu terreno para conectá-lo ao vizinho, meu irmão, e ter uma vivência mais coletiva”, conta. Entretanto, logo começou a sentir a insustentabilidade de uma vida totalmente ecológica na metrópole: “aqui o custo de vida é muito caro e é bem difícil conseguir se manter trabalhando só de casa, o que exige grandes deslocamentos, e a circulação está impossível na cidade. Além disso, a distribuição de alimentos orgânicos ainda é muito reduzida, o que encarece muito esses produtos, e temos que bancar, porque não é possível plantar todo alimento que consumimos aqui no quintal”, lamenta.
 

Crianças separam o húmus produzido nos minhocários da escola Grupo Oficina (Foto: Cesar Pegoraro)
Crianças separam o húmus produzido nos minhocários da escola Grupo Oficina (Foto: Cesar Pegoraro)
 
 
Cesar Pegoraro prepara a horta orgânica em forma de mandala com as crianças do Gurpo Oficina (Foto: Fabiana Midea)
Cesar Pegoraro prepara a horta orgânica em forma de mandala com as crianças do Gurpo Oficina (Foto: Fabiana Midea)
 
 
Cesar e seus alunos em dia de colheita na horta em mandala (Foto: Fabiana Midea)
Cesar e seus alunos em dia de colheita na horta em mandala (Foto: Fabiana Midea)
 

Ana Paula também mudou de vida depois de um contato intenso com o cotidiano caótico da cidade. Antes da Morada da Floresta, a paulistana foi vendedora e financiadora de carros em uma multinacional. “Mas eu sentia um enorme conflito interno, não estava fazendo o que gostava. Então, senti que a chave era transformar meu trabalho em algo que fizesse bem pra mim, pro planeta e pro próximo. É preciso muita coragem e confiança pra ‘largar tudo’, mas posso dizer que hoje sou muito mais feliz e que cada experiência valeu a pena, foi um processo de transformação”, afirma.
 
Para ela, uma das experiências mais importantes foi sentir-se
mais integrada à natureza, sem mudar para o campo, por meio da aplicação de sistemas simples, como a captação da água da chuva para reuso não potável e um aquecedor solar de água. “Estas medidas não trazem uma grande economia financeira, mas economizam água, eletricidade e, sobretudo, aumentam nossa noção de ligação com a natureza, porque quando chove aqui, ficamos felizes, já que estamos captando água e nossas plantas estão sendo regadas; quando faz sol, também nos alegramos, porque ele aquece nossa água”, conta.
  
  
Alternativa da alternativa
Longe da metrópole, mas ainda no meio urbano, André Fossaluza vive uma alternativa à moradia individual e às ecovilas rurais – onde, geralmente, cada família vive em sua casa, mas todas convivem intensamente. Estudante de Biologia na Unesp de Botucatu, ele mora em uma “república ecológica” com amigos da faculdade que buscam uma vida coletiva e mais contato com a natureza, sem se isolar do meio urbano. Cinco anos atrás, sua vida era completamente diferente. Morando em Americana, sua cidade natal, sempre comia fast food e churrasco e não ligava muito pra esse negócio de sustentabilidade. “O contato com esse tema veio muito por acaso. Através de um colega de classe, conheci o sítio Beira Serra, da família dele, que trabalha com permacultura e me identifiquei muito”, conta.
 

Casa com telhado verde projetada pelo arquiteto Vitor Lotufo nos moldes ideais da Permacultura, Sítio Beira Serra, Botucatu – SP (Foto: André Fossaluza)
Casa com telhado verde projetada pelo arquiteto Vitor Lotufo nos moldes ideais da Permacultura, Sítio Beira Serra, Botucatu – SP (Foto: André Fossaluza)
 
O primeiro passo para virar um “permacultor” costuma ser o Curso de Design em Permacultura – PDC (sigla do inglês, Permaculture Design Course), uma vivência intensiva de 9 dias que chega a custar mais de 800 reais. No entanto, a partir de uma parceria entre os estudantes de Biologia da Unesp e o sítio Beira Serra, André ajudou a montar o projeto de Extensão Universitária “Moradia Estudantil Agroecológica”, que organiza o curso todo ano, por cerca de 100 a 200 reais, e pode fazer seu PDC. “O curso é de design, mas no sentido de planejamento de uma propriedade mais harmônica com o meio, além de levar em conta o cuidado com as pessoas, por isso, seus princípios podem ser praticados por qualquer um e em qualquer lugar”, explica o biólogo.
 
 
Coletor de resíduos orgânicos para compostagem distribuído na Moradia Estudantil da Unesp; carnes e alimentos industrializados devem ser evitados (Foto: André Fossaluza)
Coletor de resíduos orgânicos para compostagem distribuído na Moradia Estudantil da Unesp; carnes e alimentos industrializados devem ser evitados (Foto: André Fossaluza)
 
 
André Fossaluza e participantes de uma vivência em Permacultura na Moradia Estudantil da Unesp de Botucatu; design permacultural mostra como cada área de uma propriedade sustentável deve ser pensada (Foto: André Fossaluza)
André Fossaluza e participantes de uma vivência em Permacultura na Moradia Estudantil da Unesp de Botucatu; design permacultural mostra como cada área de uma propriedade sustentável deve ser pensada (Foto: André Fossaluza)
 
 
Além de funcionais, a Permacultura propõe desgns estéticos, como esta horta orgânica espiral de ervas condimentares e medicinais (Foto: André Fossaluza)
Além de funcionais, a Permacultura propõe desgns estéticos, como esta horta orgânica espiral de ervas condimentares e medicinais (Foto: André Fossaluza)
 
 
A república onde morou por um tempo, conhecida como “Caverna do Dragão”, passou a ser um verdadeiro laboratório de aplicação desses princípios, ideia repetida na Moradia Estudantil da universidade, onde vivem cerca de 60 pessoas. Quase todos passaram a ser vegetarianos, foi montada uma horta orgânica, sistemas de compostagem e de reaproveitamento da água da chuva, além de conhecerem os banheiros secos - isso mesmo, nem todo banheiro precisa de água e dá pra reaproveitar o próprio cocô. A técnica é muito simples e, ao contrário do que se imagina, não tem nada de nojenta. Depois de cair na “privada”, as fezes vão para um compartimento de compostagem análogo aos minhocários que formam as composteiras de resíduos orgânicos alimentares, com um sistema de ventilação. A maior diferença do banheiro comum é que, em vez de uma descarga de água, são cobertos por um punhado de material orgânico seco rico em carbono, como serragem, que favorece a produção de húmus e inibe o odor. Alguns dias depois, o material pode ser usado para adubar as plantas.
 

Banheiro seco no Sítio Beira Serra em Botucatu – SP (Foto: André Fossaluza)
Banheiro seco no Sítio Beira Serra em Botucatu – SP (Foto: André Fossaluza)
 
 
Alienação do próprio corpo
 
Além de economizar água e reaproveitar as fezes com os banheiros secos, também é possível reaproveitar o xixi, simplesmente, trocando o banheiro pelo mato, já que a urina é rica em nitrogênio e amônia, ótimos para as plantas. Para aderir a essas técnicas, é preciso somente se desvencilhar dos preconceitos contra o funcionamento do próprio corpo e dos ciclos da matéria no meio ambiente. “A primeira mudança é na sua capacidade de observação da vida, de como você é parte do meio e qual seu impacto, porque isso fica muito mais visível quando você lida com seu próprio lixo, em vez de ter a falsa noção de que pode escondê-lo ao jogá-lo numa sacola – afinal, essa sacola vai parar em algum lugar”, diz André.
 
Outro ciclo natural comumente “camuflado” atualmente é o ciclo menstrual feminino. “O absorvente descartável traz a sensação de que a menstruação é lixo, enquanto é uma substância cheia de nutrientes e poderia até gerar uma vida humana”, diz Ana Paula. “A noção de que nosso próprio sangue é lixo foi criada no inconsciente coletivo há muito pouco tempo, porque até quase a metade do século XX, não existiam absorventes descartáveis. É impressionante como nos tornamos dependentes de coisas que foram introduzidas há tão pouco tempo e criamos o tabu de lidar com nosso próprio corpo”, defende. Mais que uma noção deturpada do próprio corpo, os absorventes descartáveis, comprovadamente, alteram o cheiro da menstruação e aumentam sua intensidade, além de causar alergias em muitas mulheres.
 
Neste sentido, surgiram grupos de ecologistas femininas como Ana Paula, que passaram a optar por processos naturais, como o parto normal humanizado, e a confeccionar absorventes de pano quase como as “toalhinhas” das nossas avós, mas com design mais anatômico, prático e revestido com tecido reciclado de garrafas pet, que impede vazamentos. Elas garantem que os bioabsorventes podem ser lavados facilmente ao serem deixados de molho na água; esta, por sua vez, pode ser usada, para regar as plantas, pois fica rica em nutrientes e hormônios naturais – conforme a alimentação da mulher seja saudável. Uma tecnologia semelhante é usada para a confecção de fraldas ecológicas para bebês, também fabricadas na Morada da Floresta.
 
 
Ecologia hippie

Os “impulsos” que levam urbanoides comuns a trilhar um caminho de vida mais natural são diversos, e não poderiam faltar aqueles inspirados em movimentos de contracultura como o Hippie. Foi assim com os idealizadores da Casa Jaya, uma casa em Pinheiros, sempre aberta ao público, que oferece cursos, palestras, vivências, biblioteca, espaço para relaxar e o restaurante vegano “Nectare”.
 
Ao entrar pelo portão sempre aberto, não encontrei recepcionista, mas um grupo de familiares e amigos. Um deles percebeu minha cara de perdida e veio me atender. Perguntei pela vivência de meditação coletiva e, Pedro ou Pedrishna, como costuma ser chamado, disse que ela não ocorreria naquele dia, porque seu “facilitador” havia acabado de chegar de um mochilão pela Bolívia e estava reencontrando a família e os amigos. Disse que tinha vindo para conhecer a casa para uma reportagem e ele me levou até um salão nos fundos do quintal, onde o mochileiro esparramava dezenas de gorros, chapéus, ponchos, instrumentos musicais e “Pau Santo”, uma espécie de incenso natural, que trouxe da viagem para presentear a todos. Logo, começaram a brincar com os souvenires e montaram uma roda de música. “Isto aqui é a Casa Jaya; jaya quer dizer ‘felicidades’ em sânscrito”, disse Pedrishna.
Ele contou que o projeto começou quando algumas famílias adeptas a movimentos de contracultura e terapias alternativas se conheceram por meio de seus filhos, amigos de longa data. Uma dessas famílias herdou a casa de seus familiares Luiz e Laerte Morrone, artistas que atuaram em correntes alternativas no começo e meio do século XX. Para aproveitar o espaço e torná-lo centro de disseminação de conceitos sustentáveis e alternativos, o grupo morou alguns anos ali, até conceber e organizar a ideia de abri-la ao público e transformá-la num ganha pão para alguns deles. Hoje só um caseiro mora lá, mas a casa fica o dia todo ocupada pelo restaurante e pelos cursos, que vão de yoga a “vivências de riso”.
 
Os integrantes da Jaya, com certeza, conseguem fugir um pouco do estresse que acomete a maior parte dos habitantes da metrópole. Nas férias, costumam fugir também da civilização “babilônica” (como chamam a sociedade atual), participando do “acampamento natural” Rainbow, “Encontro da Família Arco-Íris”. Trata-se de um encontro de “tribos” alternativas do mundo todo realizado em vários países, que tem uma edição anual no país, geralmente, na Chapada dos Veadeiros. Inspirado em uma profecia de antigos nativos norte-americanos – segundo a qual, quando a natureza estivesse entrando em colapso, um grupo de pessoas de diferentes cores, classes e credos chegaria para tornar a Terra “verde” de novo; essas pessoas seriam conhecidas como “guerreiros do arco-íris” -, é um acampamento onde se tenta viver da forma mais natural possível, são proibidos produtos industrializados e aparelhos eletrônicos, salvo lanternas. Depois de cerca de um mês de acampamento, mais duas semanas são dedicadas à limpeza do local, para reduzir ao máximo qualquer impacto ambiental.
 
Infelizmente, esta realidade ainda está muito distante da maior parte dos metropolitanos, afinal, o mercado ainda não oferece espaço para tantas alternativas e são poucos os que têm acesso a uma casa como a Jaya. Mas nossos ecologistas entrevistados não desanimam. Ao perguntar-lhes se acreditam que é preciso derrubar o sistema atual e “começar do zero” para que modos de vida ecológicos sejam regra, não exceção, todos concordam: o ideal seria mesmo começar de novo, mas isso seria violento demais e causaria muito sofrimento. Por isso, acreditam em uma mudança gradual, através do “trabalho de formiguinha” de cada um para a conscientização de todos - só não se pode desanimar!



SAIBA MAIS

História das ecovilas
O termo “ecovila” foi criado em 1995, na floresta de Findhorn, no Reino Unido, que abriga a mais antiga comunidade deste tipo de que se tem notícia. A experiência de Findhorn começou em 1962 com apenas três pessoas morando em um trailer estacionado numa área degradada da floresta ao norte da Escócia; hoje conta com mais de 500 moradores de várias nacionalidades. Além do reflorestamento da área e de modelos de habitação sustentável, a comunidade privilegia a solidariedade entre seus membros e conta com uma moeda própria, o ekos, para fortalecer a economia local.
 
Findhorn inspirou a organização de ecovilas no mundo todo e a criação de uma rede para troca de experiências entre elas, a “Global Ecovillage Network”. No Brasil, iniciativas semelhantes se multiplicam cada vez mais. Mas se o movimento aqui ainda é muito recente, já existem ecovilas em outros países que chamam a atenção por sua amplitude, como a “cidade universal” Auroville, na Índia, que propõe “recompor a unidade humana” e Damanhur, na Itália. Com mais de mil moradores, esta experiência italiana foi eleita pela ONU como comunidade sustentável-modelo e escolhida como a ecovila mais bonita do mundo pela revista norte-americana Communities.
 
Em Damanhur, a espiritualidade tem um papel especial e estão sendo construídos, de forma subterrânea, os enormes “Templos da Humanidade” (Temples of Humankind), que não homenageiam nenhuma religião, mas a “energia escondida dentro de cada ser humano”. Além de moeda, leis e escolas, a ecovila conta também com polêmicas técnicas próprias de medicina alternativa, como as “selfs” e “selficas”, estruturas de metal enrolado, líquidos e tintas especiais que prometem restabelecer o equilíbrio e a saúde corporal, além de beneficiar também o ambiente.
 
A partir de experiências em ecovilas de todo o mundo, foram desenvolvidos vários instrumentos para a construção de comunidades “intencionais”, como técnicas de permacultura, bioconstrução, energias renováveis, economia solidária, governança circular, comunicação não-violenta e resolução pacífica de conflitos. A união dessas pesquisas formou os cursos da Educação Gaia, que foram aplicados pela primeira vez em ambiente urbano no Brasil, em 2006, pela Universidade Livre do Meio Ambiente e da Cultura de Paz (Umapaz) da Secretaria do Verde e Meio Ambiente da prefeitura de São Paulo.
 
 
O que é permacultura?

Criada na Austrália no final dos anos 70, tem como princípio a observação da natureza, para o desenvolvimento de técnicas de design aplicáveis a pequenas, grandes propriedades e até a cidades inteiras, levando em consideração os aspectos típicos de cada região e comunidade. Cada técnica deve estar em constante desenvolvimento, por isso o nome permacultura, “cultura permanente”. Nas palavras de seus praticantes, permacultura significa “cuidar da vida, da terra e das pessoas”, tendo sempre como base ética e sustentabilidade.
 
Suas principais caraterísticas são:
 
- A agricultura deve ser orgânica
- As relações pessoais e profissionais devem ser baseadas no cooperativismo e na formação de redes de apoio mutuo
- Sem a permanência de cultura, a sociedade perde a seus vínculos com a terra
- Cada ecossistema e comunidade têm características próprias como um organismo vivo
- O homem deve conviver com todos os seres vivos e reduzir ao máximo seu impacto natural
- Defende educação ambiental, não só nas escolas, mas com toda a comunidade, para valorizar e fortalecer a integração das qualidades típicas de cada região
- Incentiva o uso de tecnológicas apropriadas para evitar ao máximo a poluição e despoluir
- Defende o reflorestamento e o plantio de agroflorestas com envolvimento das escolas e da sociedade
- Incentiva pequenos agricultores a utilizarem o manejo orgânico e que venda local de suas culturas seja promovida, para aproximar e integrar toda a sociedade em um ambiente socialmente mais saudável


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