Ponto de ônibus da rua Cardeal Arcoverde, bairro de Pinheiros, São Paulo. A analista de sistemas Elaine Dalalana diz a sua opinião sobre Itaquera ser a possível sede da abertura da Copa do Mundo de 2014. “Isso é um horror, uma vergonha. É um lugar muito perigoso, com muita violência. Um lugar de gente pobre, gente feia”, comenta. Caso Elanie queira assistir ao jogo no “Itaquerão”, precisará dar uma olhada no Google Maps antes. “Nunca fui para lá, nem sei para que lado fica. Mas quando me falam de Itaquera, a vontade é de sair correndo, que eu vou ser assaltada, que é o fim do mundo”, acrescenta a analista, que mora na Lapa, bairro que fica para o lado noroeste da cidade.
Vivendo a expectativa da construção do estádio do Corinthians, o mais cotado para ser a sede de São Paulo no Mundial, Itaquera se encontra entre uma série de planos de desenvolvimento e esperança, ao mesmo tempo em que tenta combater a imagem de ser “um fim de mundo”. Os moradores do bairro com quem conversamos têm uma coisa em comum quando falam sobre Itaquera: é um lugar com os mesmos problemas que se pode encontrar em diversos outros locais da capital.
“O que você conhece de Itaquera? Qual é a Itaquera que você vê?”, pergunta Francisco Carlos, o Fran, em meio a uma conversa sobre sua entidade, a Associação Esportiva e Cultural Kauê Itaquerense, e o seu site, o itaquera.com.br. “Há muito tempo, não tinha metrô, não tinha hospital, mas hoje tem tudo isso. As pessoas têm que tomar cuidado antes de falar que aqui é o cu do mundo, como a Rita Lee falou [a cantora usou a “sutil” expressão em seu Twitter]. Falam de Itaquera, mas não vieram para cá, não sabem como é aqui”.
O atleta e “webmaster” de Itaquera
Com 39 anos, Fran sabe como poucos o que é Itaquera, já que é um dos principais ativistas sociais do bairro, nasceu e cresceu por lá. “Falam para mim que eu teria ficado rico se tivesse montado o moema.com.br”, brinca. Ex-jogador de futsal, Fran pintou uma “pista” de atletismo na rua e ensina 60 crianças a correr há mais de dez anos de graça. Dois de seus pupilos treinam hoje no Pinheiros e estão entre as principais esperanças brasileiras no atletismo.
O esporte foi o caminho que Fran encontrou para sair de uma vida da qual seu pai não fazia parte e o dinheiro era escasso. “Quando eu tinha 16 anos, minha mãe nem sabia que eu treinava. Era meio solitário. Cheguei em casa com um salário, porque assinei com um time, e minha mãe quis me bater. Ela não tinha noção que me deram aquilo porque achavam que eu tinha potencial. Queria que eu devolvesse o dinheiro! Tive que ligar para o meu treinador para explicar a situação. Tento passar essa vivência também para as crianças”, contra Fran.
Muitas delas têm os mesmos problemas de pais ausentes que Fran sofreu no passado. “Tem criança que me fala que queria que o pai fosse que nem eu e isso me deixa triste. O ídolo tem que estar na casa delas, não na rua. Uma hora eu vou sair da vida dessas crianças”. Fran conta que há alguns familiares que acabam não acompanhando as provas de seus filhos e, inevitavelmente, ele acaba ocupando um papel paternal na vida deles. “Quando eu era pequeno, precisava de alguém que me desse um caminho. Eu as vejo correndo e saltando e me vejo anos atrás. Quem vai fazer isso por eles? Se eu não fizer, quem vai fazer?”.
“Meus amigos dizem que eu sou sonhador e idealista. Mas é triste, porque começam a colocar seu caráter em dúvida, perguntar por que você faz isso. Sou elogiado por ter montado uma pista de atletismo na rua, mas na verdade eu sou um idiota! O que eu queria é ter uma pista de verdade para colocar 300 crianças lá”, lamenta Fran.
Enquanto três jovens batem em sua porta e avisam que vão usar um pouco os aparelhos de academia da associação, Fran nos explica por que nunca tentou dar mais um passo e tentar carreira política. Assédio não faltou. “Quando começamos a sair na mídia, na TV, um monte de gente veio atrás, querendo tirar foto. Não tenho relação com políticos, porque Itaquera não tem nem vereador nem deputado. Isso é uma vergonha. Aqui virou uma casa de prostituição política. Eles vêm aqui de outras regiões, usam para obter votos e voltam depois de dois anos nas eleições. A população tem que acordar para isso, senão o pessoal garimpa voto e leva para a região dele”.
“Já pensei muito (em entrar para a política), já pensaram por mim. Mas eu não faço nada sozinho. Para se eleger, você precisa de tempo, dinheiro e conchave. Eu arrumo tempo, mas não dinheiro. E se for para fazer conchave com gente errada, é melhor não fazer. Prefiro ter o respeito da minha comunidade ao invés de ser taxado de ladrão”, afirma Fran. Para o ex-atleta, a política inevitavelmente compromete quem a pratica. “Infelizmente, é uma coisa de troca, voto em você, mas tem que dar algo de volta. Parece voto de cabresto. Quando me falaram que preciso de R$ 2 milhões para uma campanha, disse que, se tivesse esse dinheiro, colocava no banco e, só com juros, ajudava muito mais as pessoas do que sentado numa cadeira de vereador”.
De qualquer forma, Fran já tem muita coisa para cuidar. Além da associação, do site e do emprego como consultor de informática, ele tem dois filhos. Um deles é o Kauê, que deu nome ao projeto do pai e já é um adolescente. Para a tristeza de Fran, ele não quer seguir os seus passos esportivos. O mais novo é o Luca, também conhecido como Garoto Centenário. O motivo é óbvio: o bebê nasceu em 1º de setembro de 2010, quando o Corinthians completou 100 anos e um dia depois do aniversário do pai.
“Na madrugada do meu aniversário, estava na minha festa aqui na associação. A família da minha mulher disse não podia nascer, eles são palmeirenses. Mas ela veio falar à noite que a bolsa tinha estourado. Aí foi festa, já pus a camisa do Corinthians, meu irmão também. Indo para o hospital, encontrei os corintianos voltando da festa do centenário e a gente contava para todo mundo que ia nascer o Garoto Centenário”, lembra Fran, que deu a seu filho um presente inusitado: um troféu escrito ‘campeão da segunda corrida de espermatozoides da família Ribeiro e Silva’.
O estádio que pode mudar tudo... ou não
Quando o “Garoto Centenário” estiver mais velho, poderá ir aos jogos do Corinthians sem precisar se deslocar até o Pacaembu. Após anos de projetos fracassados, tudo indica que o clube de maior torcida da capital finalmente construirá seu estádio num terreno ao lado do metrô Corinthians-Itaquera. Com o apoio dos governos federal, estadual e municipal, o presidente do clube, Andrés Sanchez, conseguiu colocar o local como sede de São Paulo para uma possível abertura da Copa do Mundo de 2014 na cidade.
A decisão de ter um dos eventos mais importantes do mundo em Itaquera foi uma grande surpresa e deu esperança à população do bairro de ganhar dinheiro com isso. Porém, Fran acredita que não será tão simples. “Outro dia, numa reunião, disseram para mim que a moça que vende coxinha ia faturar com a Copa. Mas ela nem vai conseguir chegar na porta do estádio, a FIFA não deixa. Um amigo meu diz que vai alugar sua casa por US$ 3 mil. Tive que falar a verdade, que gringo não quer dormir no chão, quer ar condicionado, boa comida. Ele fala que ia fazer churrasco, roda de samba, mas temos que mostrar a realidade, para as pessoas pararem de sonhar. Alguns acreditam que vão ganhar dinheiro para se aposentar”.
Segundo Fran, há uma grande possibilidade que cerca de 300 famílias da Comunidade da Paz, perto do futuro estádio, sejam retiradas até 2014. “Já falam mal da (avenida) Jacu Pêssego, que é até arborizada, imagina uma comunidade que tem favela. Vão querer tirar de lá. Fiquei sabendo que vão mandar para Itaquaquecetuba, uma cidade legal, mas que não está ao lado do metrô e a 40 minutos do centro, como aqui”, protesta.
O governo estadual não quer investir diretamente na construção do estádio, – o principal motivo para a obra não ter começado – mas prometeu mais de R$ 470 milhões para desenvolver a região. Fran pensa que, se esse investimento tivesse sido feito antes, Itaquera teria mais condições de receber o Mundial. “Se eu fosse presidente, já teria investido muito mais na Zona Leste, para dar melhores condições aos que acordam às 4h, 5h e atravessam a cidade. Estamos 10 anos atrasados. Teríamos diminuído os problemas pelos quais a mídia ataca o bairro”.
Com o atraso das obras e as exigências que a FIFA faz, todos os gastos seriam para coisas provisórias, deixando um problema nas mãos de Itaquera assim que a Copa acabar. “As pessoas não querem tirar daqui, porque não querem perder votos. Mas a Copa dura 30 dias e precisamos de estrutura para depois disso. O que fazer com cinco hotéis aqui?”.
A Copa deverá trazer uma situação praticamente inédita para Itaquera, deslocando pessoas para o bairro ao invés do fluxo rotineiro, no qual os moradores saem para fazer suas atividades diárias no centro e voltam à noite. Essa é inclusive uma característica de toda a Zona Leste, por isso a Linha Vermelha do metrô (Leste-Oeste) é considerada a mais superlotada do mundo, com média de 11 pessoas por m² nos horários de pico. A partir de 6h30 da manhã, já é quase impossível entrar sem ter que ir primeiro à estação de Itaquera, de onde partem os trens vazios. Apenas a partir de 8h30 que o fluxo começar a cair. Na volta para casa, o “caos” acontece das 17h até as 19h, o que motivou o Metrô a montar a operação “Embarque Melhor”, responsável por organizar os passageiros em “baias” na estação Sé, sentido Itaquera, para diminuir os riscos de acidente na hora de entrar no trem. Carro também não é uma boa opção, já que a Radial Leste é uma das vias mais congestionadas de São Paulo.
“Se houvesse uma verdadeira política de desenvolvimento, essas pessoas poderiam estudar e trabalhar aqui. Vocês (Fran aponta para nós, repórteres) saem da Zona Leste para estudar na USP e o efeito seria contrário com desenvolvimento”, afirma o ex-atleta. Além da FATEC praticamente pronta entre as estações Penha e Carrão, há outra sendo construída em Itaquera, abrindo possibilidades de ensino superior público, já que a grande maioria das opções na Zona Leste é em universidades particulares.
Um dos colaboradores de Fran em sua associação é o empresário Marcos Falcon, que nasceu e cresceu em Itaquera e reafirma os problemas apontados pelo ex-atleta. “Diria que 3/4 da mão-de-obra de Itaquera trabalha fora. Você chega antes indo a pé do que pegando a Radial Leste. Ou seja, a questão do transporte é crítica, por que há um gargalo na estação. Para resolvê-lo, construíram a Jacu Pêssego, viadutos, túneis”, explica Falcon.
“Não há oferta de trabalho suficiente na região para atender a demanda, por isso ainda é um bairro dormitório. A área que foi de colônias japonesas recebeu incentivo fiscal para indústrias, mas é incipiente”, aponta o empresário. “Também faltam prestação de serviços, laboratórios, hospitais. O Santa Marcelina é pouco, assim como o shopping não é suficiente para o consumo. É preciso incentivar a chegada de empresas e indústrias para fixar a mão-de-obra no bairro”.
No entanto, Fran insiste que os problemas de Itaquera são os mesmos que outros bairros da cidade também têm. “O pessoal fala que é fim do mundo, mas o que está sendo feito nos outros bairros então? Você precisa de infraestrutura na cidade inteira, para o cara da Zona Sul ter um jeito fácil de chegar aqui. Se o Morumbi fizer a Copa e não melhorar um monte de coisa lá, dá na mesma”.
O nascimento da “pedra dura”
Se por um lado os moradores querem ser vistos como outro bairro qualquer, por outro, Itaquera tem uma história bastante particular e ligada a importantes momentos da cidade de São Paulo. Marcos Falcon é o especialista no assunto.
Para começo de conversa, ele nos explica que Itaquera significa pedra dura e o nome, de origem indígena, veio por conta da pedreira que existia no centro do bairro e servia a construção civil paulistana na virada do século XIX. A necessidade de transportar as pedras para a “cidade” foi suprida com a construção da estação de trem, em 1875, ainda com nome de São Miguel, a época, a Vila mais próxima dali.
“A estação foi o inicio de tudo. As pessoas chegavam a Itaquera pela estação e as pessoas que saíram de Itaquera para o mundo, saíram pela estação”, diz o empresário. Aos poucos, pequenos grupos de pessoas foram se instalando na região, em volta da pedreira, e no início da década de 10, quando a estação já levava o nome de Itaquera, famílias espanholas chegaram ao bairro.
“Minha avó veio para o Brasil a convite do governo, quando a Catedral da Sé começou a ser construída. Os espanhóis eram especialistas em construção em pedra. Pouca gente sabe disso, mas as pedras que construíram a catedral da Sé vieram de Itaquera”, conta Marcos Falcon.
Mesmo com o trem, a região que vivia da pedra continuava isolada, não tinha asfalto e a população era formada basicamente pelas famílias que ali se fixaram no começo do século. A primeira grande mudança do bairro aconteceu na década de 20, quando as primeiras famílias de japoneses se instalaram em terrenos extensos e começaram a produção de pêssego, que seria a marca de Itaquera nas décadas seguintes.
“Itaquera passou a ser o maior produtor de pêssego do Brasil. Todo ano tinha a festa do pêssego, durante 15 dias, com festival, shows que lotavam Itaquera. O primeiro movimento turístico para o bairro foi visitar as chácaras dos japoneses”, relata Falcon.
Até os anos 50, quando Marcos nasceu, as famílias se dividiam em grandes chácaras. “Era comum cada quintal ter 1000, 1500 metros quadrados”. Na Itaquera em que o empresário passou a infância as pessoas se referiam ao centro de São Paulo como “a cidade”, reflexo das características interioranas do bairro. Hoje empresário, Marcos veio ao mundo em 1951 pelas mãos de Dona Natividade, a única parteira da região a época.
“Não tinha hospital nem nada. Todo mundo que nasceu em Itaquera nas décadas de 40, 50 e 60, nasceu das mãos dela. Dona Natividade é a mulher mais importante da história de Itaquera,”, diz Marcos, que no ano passado ajudou a eleger o nome da parteira para a Casa da Mulher de Itaquera.
Com pinta de novela de época, Itaquera também tinha apenas um médico, que atendia em casa e ás vezes era pago com uma galinha. O transporte de mais urgência era feio por Seo Gabriel, dono do primeiro táxi. “Quem podia ia até a casa do Seo Gabriel, pegava a Dona Natividade de táxi e levava para fazer o parto, mas quem não podia ia a pé mesmo. No meu caso, meu irmão foi busca-la a pé na Vila Santana e eles vieram com um lampião de querosene para fazer meu parto”, relata.
Gabriel Maltoni foi além do táxi e montou a primeira linha de ônibus no bairro, chamada popularmente de Poeirinha, por conta da terra levantada quando os carros passavam nas vias sem asfalto de Itaquera . “A primeira linha ligava plantação de pêssego ao centro de Itaquera. A segunda ia até o Parque Dom Pedro. Ele chegou a ter 5 ou 6 ônibus, não mais que isso, mas podemos dizer que foi o pioneiro do transporte em Itaquera.
No entanto, essa cara de cidadela do interior foi se alterando na década de 60, quando os japoneses começaram a dividir e vender os terrenos. Como havia a estação que ligava ao centro da capital e os terrenos eram mais baratos, a procura foi grande e aqueles quintais enormes foram ficando escassos. Morador do morro do querosene, último lugar a ter eletricidade na região, Marcos viu estas transformações enquanto transformava sua própria história no Colégio Prof Emiliana de Paiva Meira, melhor colégio estadual do país então, no centro de Itaquera. “Minha mãe era costureira, meu pai carpinteiro e, na minha vila, da minha geração, o único que estudou além do curso primário fui eu. Minha mãe tinha essa consciência. Havia um processo seletivo muito duro. Era como entrar em medicina na USP, hoje me dia. E ainda tinha que competir com os japoneses, que eram todos CDF’s”.
O estudo levou Marcos ao primeiro emprego, numa multinacional, o London Bank in South America, e ele passou a ter condições de sustentar os pais. Ainda em Itaquera, o empresário conheceu sua esposa, mas foi transferido para São José dos Campos e deixou o bairro quando este passava pela mais significativa mudança de sua história.
Nos anos 70, a recém criada Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo levou a Itaquera seus conjuntos de prédios, as famosas Cohabs, e a população deu um salto. “Foi um boom. Itaquera perdeu aquela cara de bairro provinciano, onde todos se conheciam. ¾ da população era nova e aí começaram os problemas de transporte.”
Não só de transporte, mas também de infraestrutura, saneamento básico e até mesmo de segurança e moradia. As Cohabs não suportaram a demanda do restante da cidade, o que ocasionou uma chegada desenfreada de população, principalmente na Zona Leste da capital.
Quando Marcos Falcon voltou para São Paulo foi morar no Campo Belo, Zona Sul, mas ainda visitava a família. “Ia pra Itaquera todo final de semana. Fazer o que, não sei, mas é lá que estavam as raízes.”
Quando seus pais faleceram, ele se afastou do bairro por mais de 20 anos, só voltou a ficar mais próximo da comunidade há três anos, a pedido de Fran. “Eu vi uma realidade totalmente diferente: pontos de droga, bairro abandonado. O campo de futebol que tínhamos estava abandonado. Aí eu percebi que deveria dar algo ao lugar em que tanto fui feliz”.
Hoje, além da participação direta, Falcon ajuda a Associação do bairro levando empresas com quem tem contato para incentivar o projeto, mas, segundo ele, ainda são muitas as carências. “O ponto principal é a infraestrutura do transporte, mas também precisa de saúde, de mais um centro universitário grande para os jovens. É necessária uma escola técnica que forme os garotos, porque se ele não tem pra onde ir, vai para o tráfico, vai ficar na rua de bobeira, ou vai pra um subemprego, mas não vai estudar”.
Mulheres de Itaquera
As poucas opções de estudo superior para os jovens levam a uma consequência simples: falta emprego para aqueles que estão entrando no mercado de trabalho. “A maioria trabalha fora, lá no centro, não temos muita opção de emprego, ainda mais para os jovens. Eu mesmo já tentei e não consegui”, conta Kaoma Martins, 16 anos.
A garota também tem outra reclamação que é recorrente entre os moradores. “Não temos área de diversão, barzinhos, baladas. Tenho que ir pra zona norte, zona sul, porque aqui em Itaquera mesmo não tem”, diz Kaoma, que está no coração de uma das poucas opções de lazer do bairro. Ela é neta de Leandro, que dá nome a conhecida escola de samba do bairro.
A Leandro de Itaquera nasceu na casa da avó de Kaoma, e toda a família vive para o samba. “Tudo começou aqui dentro. Ensaio, reuniões, confecção de fantasias, tudo era aqui. A história da família Martins é a história da Leandro de Itaquera” diz com orgulho Anny, uma das três filhas de Leandro.
A Escola foi criada em 1982 e a ideia surgiu quase que despretensiosamente na festa de aniversário de outra filha, Karin, que pediu uma escola de samba como presente para o casal de comerciantes Leandro e Marilene Martins.
“Num um aniversário aqui em casa, apareceu um tio de uma amiga nossa, vindo da Bahia. Ele nos contou sobre o carnaval, os trios elétricos e tudo mais. Foi aí que nos encantamos e surgiu a ideia da escola de samba”, conta Marilene, hoje aos 61 anos.
Mãe de Kaoma, Karin, é porta-bandeira da Escola e chegou a desfilar com a filha na barriga quando estava grávida. Agora, a adolescente dá sequência a tradição familiar e desfila desde os 8 anos como passista de ouro. “A família toda faz parte da escola, mas não entrei por pressão. Eu sempre gostei de desfilar”, diz Kaoma.
A partir de agosto de todo ano, a quadra da Leandro fica movimentada com ensaios em todos os finais de semana. “Quando é época de carnaval nem lembramos de ir a outros lugares, ficamos na Leandro. Todos os nossos amigos estão lá. Carnaval não é só naquela hora do desfile, é uma diversão antes também.”
Hoje, a Escola está no grupo de Acesso, a segunda divisão do carnaval paulistano e apesar do lema “a mais simpática”, a agremiação por vezes sofre com o mesmo julgamento que a população de Itaquera. “Eu vou em festas das outras Escolas com amigos de lá, sou bem tratada, mas quando chamo pra ir na Leandro me enrolam. Não vêm porque dizem: Credo, Itaquera é muito longe”.
Mesmo assim, Kaoma não deixa o bairro por nada. “Não troco Itaquera por nada. Se saio é mais pra diversão, é passageiro, mas não quero morar fora daqui. Eu não iria conseguir. Aqui é a casa da minha avó, na rua de baixo já é a da minha tia. É muito família, seria sem graça morar fora”. Dando risadas, a tia de Kaoma brinca com o preconceito dos outros bairros em relação a Itaquera: “Não tem problema, somos gente diferenciada mesmo.”