Doutora cigana
Socos, jabuticaba e moedas de ouro: a primeira cigana no Brasil a conquistar o diploma universitário luta para tirar seu povo da invisibilidade
Por Juliana Santos - Edição Sumiço - dezembro de 2013
Mirian com uma cobra

A revolucionária caneta Parker 51, que fazia a tinta secar no instante em que tocava o papel, foi introduzida no mercado em 1941. Levou 11 anos para ser projetada, e teve mais de 20 milhões de unidades vendidas em três décadas. Umas delas, folheada a ouro, chegou às mãos de uma garotinha em idade escolar. Admirada com o presente, ela quis leva-lo à escola no dia seguinte, para mostrar aos colegas. Já estava na sala de aula quando abriu sua pasta e, não vendo o objeto ali, se desesperou. “Roubaram a minha caneta, roubaram!”, exclamava para a professora, na frente de todos os alunos. Não demorou para que ela mesma anunciasse o fim do mistério: “Foi a cigana, foi a cigana!”. Um dedo em riste apontava na direção de Mirian, 12 anos. A cigana.

Ela foi a primeira da turma a ter o material revistado, mas a caneta continuou desaparecida. Mirian enxugou as lágrimas antes de chegar ao acampamento em que morava com sua família. Tinha medo de que, caso se queixasse da escola, fosse proibida de continuar seus estudos.

No dia seguinte a colega declarava, feliz, que na afobação da manhã anterior tinha esquecido a caneta em cima da mesa de casa, e nem chegara a levá-la para a escola. Teria ficado por isso mesmo, se o senso de justiça e o gênio da cigana não viessem do berço. O que se seguiu foi um diálogo muito rápido:

- Agora eu acho que tá na hora de você me pedir desculpa.

- Desculpa por quê? Tu é cigana, tu é ladrona mesmo.

E então um soco cortou o ar e quebrou o nariz da dona da Parker 51.

Assim começa a história de como Mirian Stanescon, futura advogada e primeira cigana a ter um diploma universitário no Brasil, ganhou seu primeiro caso. Na sala do diretor da escola, se encontravam as duas meninas e seus pais. A confusão tinha se acalmado, mas alguns curativos e um tubinho de borracha instalado para que a menina pudesse respirar eram as evidências gritando contra Mirian. Ela não negou o que fizera, mas explicou também as circunstâncias em que aquilo tinha acontecido. Seu pai permaneceu em silêncio, mas o pai da outra menina não conteve a indignação: “Como é que é, você fez isso com a sua colega?”, perguntou ele, para própria filha. Mirian soube aí que o caso era dela. Recebeu o devido pedido de desculpas, ambas ficaram três dias de suspensão e, como às vezes as crianças fazem coisas surpreendentes, acabaram se tornando amigas depois desse episódio.

A caminho da escola – Filha e neta de analfabetos, Mirian pegou o gosto pelos estudos desde criança, e não quis mais parar. Carioca, nascida em Olaria, viveu em acampamentos até pouco depois dos 12 anos. Nem todas as crianças ciganas vão à escola, e naquela época isso era ainda mais comum. Quem conseguiu fazer com que ela o e irmão começassem a estudar foi o padre Arthur, que vivia ao lado do acampamento. Questionada sobre a educação dos filhos, Lhuma Stanescon respondeu que não tinha tempo de levá-los ao colégio. O padre se ofereceu para fazê-lo e, envergonhada, Lhuma concordou. Mirian tinha por volta de seis anos. Aos 17 se formou no curso técnico de Contabilidade e, por volta dos 25, na faculdade de Direito. Ela ainda se lembra das palavras da mãe, sobre sua decisão de seguir com os estudos. “Olha, tu vai sofrer muito. Vai ser chamada de brasileirinha pelo cigano, porque quer estudar, e pelo brasileiro vai ser chamada de ciganinha”.

Se mães fazem mesmo previsões certeiras, Lhuma não fugiu à regra. Mirian teve de aprender a conviver com isso. Até atividades simples, como fazer parte do time de vôlei e futebol da escola, não a deixaram esquecer o preconceito. “Se o meu time ganhasse era porque eu fiz macumba, se perdesse era porque eu tinha esquecido de acender as velas”, conta. De tanto ouvir brincadeiras sobre “a maldição do cigano”, ela resolveu tirar proveito disso: “Tu me enche o saco pra ver se eu não te jogo uma praga!”, revidava. E, percebendo que os outros sentiam medo, tinha o controle novamente. Logo aprendeu que o melhor mesmo era não ter medo de nada. O maior medo que restara, de cobra, foi eliminado há poucos meses. Ela exterminou o temor do jeito mais rápido, mas provavelmente mais doloroso: deixando que enrolassem uma cobra por seu pescoço.

Moedas de ouro – Com a mesma agilidade do animal liso e escorregadio que segurou nos ombros, Mirian escapou dos casamentos arranjados. O costume cigano determina que as mulheres se casem cedo, logo após a primeira menstruação e, em geral, com um parceiro escolhidos pelos pais. Na época em que recebeu o primeiro pedido ainda estava no colegial, e conheceu a pessoa no próprio dia em que o pedido foi feito. Negou.

Algum tempo depois, outro homem ofereceu mil moedas de ouro por sua mão. Mirian foi categórica: “se você raspar a barba e tirar essas roupas de hippie, quem sabe eu topo”. Ela só soube que o pedido tinha sido aceito quando reencontrou o rapaz em uma festa, e quase não o reconheceu. “Isso foi no domingo. Na terça-feira eu cheguei em casa e descobri que tinha sido pedida em casamento pelo pai dele”, conta. A barba é considerada sagrada pelo povo cigano. Ela tinha falado aquilo de brincadeira. Dessa vez os pais pressionaram pelo casamento, mas Mirian continuou resistindo. Já estava na faculdade, e ainda se lembra desse dia como um dos que mais apanhou.

No final, Mirian não só escapou de casamentos arranjados, como se casou com um não cigano. Eles se conheceram na praia, por amigos em comum e, dias depois, o futuro marido apareceu para tirar as cartas com Lhuma. Ele mal tinha saído quando a mãe proclamou novamente uma de suas visões certeiras – mas dessa vez, uma boa notícia: “acabou de sair daqui o pai dos meus netos”. A sogra já gostava tanto do futuro genro que Mirian não enfrentou dificuldades durante um pouco mais de um ano de namoro. Casou-se aos 32 anos, dentro das tradições ciganas. “Provei que uma cigana podia ser doutora e casar tão virgem quanto as outras”, orgulha-se.

Casamento de Mirian

Dos quatro filhos do casal – todos com diploma universitário – nenhum se casou ainda. “Queria que os meus filhos casassem com mulheres ciganas, mas se não gostaram de nenhuma, vou fazer o que, vou obrigar? Fazer com eles o que não deixei que fizessem comigo? Eles vão casar com quem eles bem entenderem”, acrescenta a mãe de dois homens e duas mulheres.

Apesar desse desejo, Mirian acredita que, se tivesse se casado com um cigano, sua vida teria sido diferente. Em 2007, quando anos de luta se materializaram na cartilha dos direitos do cigano, feita com apoio da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Mirian viajou o país inteiro para fazer sua divulgação. Reconhecendo a cultura cigana como ainda bastante machista, ela acredita que um marido cigano não a teria deixado ir tão longe.

Direitos ao alcance – O principal objetivo da cartilha é mostrar para os ciganos do Brasil que eles possuem direitos aos quais recorrer, e estimular a denúncia de episódios de discriminação e perseguição. Trechos da constituição são destacados, como forma de mostrar que, apesar de não existir uma legislação específica para o cigano, ele pode fazer valer algumas das que já existem, como o direito de ir e vir. Mirian considera ter conseguido o que queria. Ou quase tudo. Defende agora que a tenda cigana seja reconhecida como residência perante a lei, concedendo a ela os mesmos direitos das casas e apartamentos.

Mas este ano ela reservou para se dedicar a outra grande preocupação: a falta de registro escrito da cultura do povo cigano. Ainda que a tradição oral tenha resistido a perseguições e à dispersão dos ciganos pelo mundo, ela teme que costumes importantes possam desaparecer com o tempo. Até porque grande parte do material que existe é feito por não ciganos, escrevendo sobre uma cultura a qual não tiveram real acesso. Por pensar dessa forma, já comprou briga com antropólogos e etnólogos.

A discordância começa já na origem dos ciganos. Enquanto s historiadores consideram a Índia o berço dos ciganos, Mirian prefere acreditar na história que ouviu de sua avó –  que ouviu da própria avó – de que os ciganos vieram do Egito.

Detector de ciganos - Sua capacidade de reconhecer quem é cigano de verdade e quem não é a fez comprar briga com os falsos ciganos. Uma vez, ao ser homenageada em Brasília, viu ciganos falsos na frente dos verdadeiros e fez todo mundo mudar de lugar. “Ou bota meu povo na frente, ou a homenageada está se retirando”. A ameaça funcionou, mas também a tornou persona non grata em alguns lugares. O segredo de seu “detector de ciganos” ela não revela. Mas adianta que falar a língua cigana, Romanês, é essencial.

Uma breve pesquisa sobre o assunto na internet já é motivo para aborrecimentos – que ela evita a todo o custo. “Tem coisas como ‘horóscopo cigano’. Isso não existe. Cigano pega o baralho, faz e vê. A maioria não sabe nem ler, vai saber que Marte está entrando em Netuno?”.

Apenas as meninas são iniciadas na leitura de cartas e da palma das mãos, aos sete anos de idade, e precisam continuar praticando durante toda a vida, para manter a vidência. Por isso Mirian diz ser doutora só de segunda a quinta: às sextas-feiras é cartomante.

Como escritora, Mirian já publicou um livro sobre o baralho cigano, usado nas adivinhações, e têm prontos mais dois: uma compilação de provérbios e sabedoria cigana e a história de Santa Sara Kali, padroeira de seu povo. No momento, está trabalhando em uma obra sobre culinária cigana e outra sobre raízes e ervas com poderes curativos. “Eu tenho que deixar esse legado para o meu povo e para vocês mesmo. E o que eu escrever ali não vai ter bibliografia não, foi tudo o que eu ouvi, que eu vivenciei na barraca. Certo ou errado, é a realidade cigana”.

O prazo negociado com a editora para o livro sobre culinária era muito apertado. Sofrendo de um bloqueio na escrita, Mirian foi salva pelo cheiro de jabuticaba. Acordou no meio da madrugada se lembrando desse cheiro. Como mora em cima de uma padaria, sentiu também cheiro de pão, e a união das duas coisas foi o que a permitiu começar a primeira receita do livro: o pão de jabuticaba de sua avó. Virou a noite escrevendo – a lápis, como sempre faz – e quando a família acordou de manhã, tinha 45 páginas prontas.

Depois de mais de uma década de luta, a enérgica cigana doutora confessa que está cansada. Aos 66 anos, pequenos problemas como uma conjuntivite mal curada, crises de bronquite e infecção nos ouvidos a fazem pensar na velhice, ainda que a contragosto. Esse tipo de preocupação, porém, dura pouco. Os planos para no futuro incluem aprender música. Ela sabe tocar de ouvido violão e acordeão – herança de uma infância vivida em acampamentos, onde as tardes eram preenchidas com música e dança – mas nunca aprender a ler partituras.

Os anos não parem ter mudado em nada seu jeito de ser. Mirian fala emendando um assunto no outro, uma lembrança em um protesto, e os dois seguidos de uma brincadeira. Fala sem medições, com palavras muito inteiras, para que qualquer entendedor, bom ou mau, não tenha dúvidas do que ela pensa. Dá para notar que a menina que se defendeu com unhas e dentes ao ser acusada de roubar a caneta de ouro continua presente. “Pra chegar até aqui apanhei e bati muito. Não estou falando de porrada não, é na língua, sabe como é? É tomar um coice e dar dois. Que pra casa eu não trago não”.

E é dessa mesma forma que ela fala sobre o maior desafio. Com uma vida dedicada ao reconhecimento do povo cigano e seus direitos em uma sociedade de gadjes (os não ciganos, em romanês), o maior obstáculo que ela enfrentou estava em seu próprio povo: o machismo cigano. Uma vez ela escutou dizerem, sobre si mesma:

- Ela tem todas as qualidades, mas só tem um defeito, ser mulher.

- Tenho culpa se Deus pegou o pedacinho de carne que ia botar no meio das minhas pernas, transformou em miolos e colocou na minha cabeça? – respondeu.

O diálogo áspero dessa vez não será seguido de um soco, ou qualquer tipo de agressão física. A língua pode continuar áspera, mas a maturidade tem seu peso. “Eu não ligo para as críticas porque eu sei que gerações futuras vão saber que um dia existiu uma Mirian Stanescon, uma mulher, que tirou eles da invisibilidade. Isso ninguém vai me tirar”.



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