Ilustres desconhecidos
Por Brun Capelas - Edição Sumiço - dezembro de 2013

As palavras deles já foram cantadas por milhões de brasileiros, de diferentes gerações, mas ao caminhar nas ruas do centro de qualquer grande cidade brasileira, eles podem passar totalmente despercebidos. Até você mesmo, leitor, seja qual for a sua idade, provavelmente já deve ter se perguntado quem era a "Menina Veneno", o que faria com "Essa Tal Liberdade" e por que raios alguém ficaria doce só porque dirige um "Camaro Amarelo". O que você não deve fazer ideia é de quem são Bernardo Vilhena, Paulo Sérgio Valle e Marco Aurélio, os homens por trás das letras desses (e de outros tantos) sucessos do rádio brasileiro. Mas vamos com calma, começando pelo mais experiente de todos, o carioca Paulo Sérgio Valle, de 73 anos.

Em 2013, Paulo Sérgio está completando cinquenta anos de carreira, iniciados dentro de casa, junto com o irmão Marcos Valle. "Foi quase uma brincadeira", conta ele, em uma conversa por telefone que a discagem direta à distância fazia parecer uma reunião de bons amigos. "Nós gostávamos muito do Tom e do Vinícius, mas fazíamos nossas músicas à toa", diz o compositor, que por intermédio do amigo Roberto Menescal, veria a sua "Sonho de Maria" gravada em 1963.

Censura e TV Globo

Entretanto, a primeira música própria que Valle ouviria nas rádios seria "Viola Enluarada", outra parceria com o irmão, lançada em 1965. “Naquela época, o Brasil começou a ter modificações profundas, especialmente depois da ameaça e da concretização de um regime militar, e isso evidentemente mexe com a gente. O compositor é, de certa maneira, um repórter, e temas mais sociais e engajados apareceram nas minhas músicas”, explica Paulo, que não se surpreendeu com a censura da canção, mesmo um ano depois de ter sido lançada e muito bem executada nas emissoras AM da época. “O engraçado foi em um dia que eu estava vendo uma reportagem sobre o desfile de Sete de Setembro na televisão, e uma banda militar tocava... “Viola Enluarada”! Virou o samba do criolo doido, né?”, conta, aos risos, logo após chegar em casa de uma corrida pela Guanabara. “Faço esportes desde sempre e nunca tive uma doença!”, comemora.

Nos anos seguintes, os Valle se tornariam uma máquina de fazer músicas, enchendo os discos de Marcos e cedendo sucessos para outros cantores, como Elis Regina (“Black is Beautiful”), Wilson Simonal (“Mustang Cor de Sangue”) e até mesmo fazendo trilhas para novelas, como é o caso de “Capitão de Indústria”, que ilustrava as cenas do folhetim “Selva de Pedra”, de Janete Clair, em 1972. O sucesso da canção foi tanto que rendeu à dupla, acompanhada do produtor Nelson Motta, o convite da TV Globo para criar um jingle de Natal – aquele mesmo dos versos “Hoje é um novo dia/de um novo tempo/que começou”, que faz você sorrir amarelo em todo fim de ano quando a sua tia busca na geladeira o espumante falsificado.

Paulo Sergio Valle

“Estávamos no regime militar, mas sabíamos que a canção tinha de ser alegre e ter uma mensagem positiva. Até porque, apesar do Boni só ter pedido a canção para 1972, acreditávamos que ela iria continuar para os anos seguintes. Acabou que ela virou um símbolo da Globo e do Natal do brasileiro. Fico honrado com isso”, diz o compositor, que nos anos seguintes, resolveu fazer uma guinada em sua carreira, abraçando a música ‘realmente’ popular. E tudo começou por um convite do Rei. Ou melhor: do maestro do Rei.

Guinada popular

“O Eduardo Lages, maestro do Roberto Carlos, me convidou para compor com ele. Apesar de trabalhar com o Roberto há anos, ele nunca tinha tido uma música gravada por ele. Aceitei o desafio, fizemos “Às Vezes Penso”, e o Roberto gostou tanto que começou a sempre pedir músicas para nós”, explica. Ter uma música gravada por Roberto Carlos fez Paulo ter uma visão diferente do público de música, “ver a cara do público”, como ele mesmo diz, e mudar seu perfil de composição, compondo para cantores românticos (o jeito que o politicamente correto chama hoje o brega) como José Augusto (“Aguenta Coração”), duplas sertanejas (“Evidências”) e pagodes (“Essa Tal Liberdade”). A mudança, entretanto, não foi bem recebida por muita gente: “Como eu era da ‘turma da bossa nova’, muita gente do mercado musical me olhou torto quando comecei a fazer essas músicas. Mas o reconhecimento que eu recebi do público foi muito maior que qualquer crítica”, explica.

Quando questionado sobre a inspiração para tais canções românticas, Paulo Sérgio desconversou: “O compositor pode não estar vivendo exatamente um momento de tristeza ou dor de cotovelo quando faz a música. Um amigo meu sempre diz que, quando o cara está sofrendo, é que nem dor de dente: não dá para fazer nada, muito menos música”. O fato de cantar o coração do Brasil – mesmo que esta seja uma metáfora ruim – e não ser reconhecido não incomoda Valle. “Não tenho vaidade, não sou muito de aparecer. Gosto que as minhas obras apareçam, mas eu não. A privacidade é uma riqueza”.

A privacidade também é uma sensação cara a Bernardo Vilhena, parceiro de Lobão e de Ritchie nos anos 1980. “Adoro ficar sozinho, poder sair sozinho nas ruas. Ir ao Maracanã e torcer em paz é maravilhoso”, conta ele, que até tentou a vida de rockstar, mas diz não ter gostado da rotina de ensaios. “O grande prazer que tenho é chegar num lugar absolutamente anônimo, um bar na beira de uma estrada, e ver que a menina do caixa está cantando uma música minha, como ‘Menina Veneno’”.

A canção, gravada e composta também pelo anglo-carioca Ritchie em seu primeiro trabalho, Voo de Coração, de 1983, foi um sucesso tão grande que chegou até a desbancar as vendas de Roberto Carlos naquele ano – e até hoje faz melômanos tentarem descobrir o que era o “abajur cor de carne” de sua letra.  “O abajur cor-de-carne veio da Marlene Dietrich, que adorava os abajures do Copacabana Palace, que tinham uma cor de pergaminho, mas que na expressão em alemão, quando traduzida literalmente, virava cor-de-carne. Na minha cabeça de letrista, o cor-de-carne com o lençol azul e as cortinas de seda montavam todo um cenário interessante”, explica Vilhena, cujo primeiro grande hit havia sido “Geme Geme (Mais Uma de Amor)”, gravada pela Blitz.

Bernardo Vilhena

Entretanto, “nada se compara ao sucesso de Menina Veneno”, conta ele. Em determinado momento daquele ano, Vilhena cansou tanto de ouvir a canção nas rádios que resolveu fazer uma viagem pela Amazônia, indo de barco de Manaus a Santarém. “Durante a viagem, a gente descia do barco para ir até os povoados comer e ver as comunidades ribeirinhas. Um dia a gente desceu num riachinho, tinha umas lavadeiras, e perto delas vinha um som alto, com uns rádios enormes. Chegando perto, o que os rádios tocavam? “Menina Veneno”! Porra, até aqui?”, conta, aos risos. Mesmo assim, até hoje o letrista e poeta carioca se sente tocado quando vê alguém falar sobre sua criação: “Outro dia, fui à casa de um amigo, e a empregada dele abriu a porta pra mim. Enquanto ele se arrumava, a empregada chegou para mim e disse assim: “Foi o senhor que fez aquela música, ‘Menina Veneno’? Essa música era a música da minha juventude! Eu chegava nos bailes na Rocinha dizendo ‘Toca ‘Menina Veneno’!’. Isso é o Brasil, e tocar o coração do Brasil é muito gratificante. É um absurdo”.

Entre lobos maus e progressivos

Atualmente com 64 anos, e tendo se afastado da música como atividade comercial (um de seus poemas recentes diz “A Deus, a música/ Adeus à música”), Vilhena cresceu no Rio de Janeiro entre os anos 50 e 70, e conheceu Ritchie graças a um simples folheto que havia escrito em 1975.

“Eu ajudava o Sidney Miller com a programação do MAM, e um dia nós fizemos uma apresentação de três bandas: Mutantes, O Terço e a Soma, na qual o Ritchie tocava. Para o programa, fiz uma revistinha com algumas citações sobre o rock. Coloquei frases de John Lennon, de Jimi Hendrix, do The Who e de alguns críticos e escrevi um texto sobre o que eu achava de tudo aquilo. Dois dias depois do festival, eu estava em casa, morava perto do Jardim Botânico. Toca a campainha, eu fui atender e era o Ritchie, com a revistinha na mão. ‘Foi você que escreveu isso?. ‘Foi’. ‘Pô, cara, é o melhor texto que eu li sobre rock no Brasil’”. Como diria o inspetor Renault, de Casablanca, aquele era o início de uma bela amizade. No mesmo dia,  Ritchie chamou Bernardo para fazer letras para sua nova banda, o Vímana, que contava com um jovem chamado Luís Maurício Santos (ou Lulu) na guitarra, Luiz Paulo Simas (o inventor do “plim-plim” da Globo) e Fernando Gama, além de um garoto menor de idade na bateria: João Luiz Woerdenbag, ou Lobão.

Anos depois, Vilhena escreveria outras grandes canções com Lobão, como é o caso de “Vida Louca Vida”. “Acordei um dia com um refrão na cabeça, que eu tinha sonhado na noite anterior, e sonhei que era o Cazuza que cantava ele. Acabei escrevendo a letra inteira, o Lobão gravou, mas pouco tempo depois encontrei o Cazuza no Canecão. Ele encostou em uma das colunas, botou os braços para trás e disse: ‘Bernardo, eu fui ao estúdio e amei’. Ele foi cantando a música, era um acontecimento, uma música que ninguém sabia qual era. Ele cantou “Vida Louca Vida” ao vivo, e eu chorei pra caralho, porque ele já estava na fase final da doença”. Cazuza acabaria gravando a canção posteriormente, de maneira que até hoje há quem diga que a canção foi feita pelo ex-vocalista do Barão Vermelho. A confusão não é um problema para Vilhena: “As pessoas dizem que a música é do Cazuza. E daí? Isso que é bacana, ele cantou com uma entrega tão grande, o filme da vida dele termina com essa música, fiquei emocionadíssimo”, conta.

Duas décadas depois, Vilhena revela ter cortado relações com o parceiro de “Vida Louca Vida”, “Vida Bandida” e outras músicas. “Há certa babaquice em tentar reescrever e modificar o passado. O Lobão prega uma amizade com o Cazuza e o Júlio Barroso [líder da Gang 90, de “Perdidos na Selva”] que ele não teve, e fala que os três, juntos, iam fazer uma grande revolução na música brasileira. Isso é uma mentira enorme. Esses caras que ele vive falando mal, Chico, Caetano, eles amavam. Era muito legal destruir os ídolos em 1983, mas hoje eu acho ridículo”, explica, argumentando ainda que a guinada à direita de Lobão o deixa triste. “O Olavo de Carvalho é uma pessoa desprezível, e é isso o que o Lobão está se tornando. Vi o vídeo da conversa entre eles outro dia, só o começo, aquela coisa esquisita, do Lobão todo subserviente a um mestre de merda”.

E a grana?

Apesar de ter tido grandes sucessos, Bernardo Vilhena revela não receber muito dinheiro com direitos autorais. “Não me sustento com direito autoral, mas acho absolutamente certo o que eu ganho. Sei que poderia ser mais se os sonegadores pagassem. Não me aprofundei na discussão sobre o ECAD agora, mas acho absolutamente errado a maneira como tudo foi negociado”.

Paulo Sérgio Valle, por sua vez, conta que consegue sobreviver só com o recebimento de execuções em rádio de suas 800 criações gravadas, mas sabe-se pertencente a uma elite de autores. “Desde que comecei a ser compositor consigo viver só com isso, pelo menos desde que eu larguei a aviação, quando eu era piloto comercial. Mas, para viver de direito autoral hoje sendo só compositor, tem que ter muita música e muita música que seja sucesso. São poucos”, conta ele, negando a lenda corrente na indústria musical que ‘fulano comprou um apartamento na frente da Lagoa Rodrigo de Freitas’ com os direitos de um só sucesso. “É exagero! No máximo, dava para comprar um quarto-e-sala em Copacabana”, explica.

Ambos, entretanto, estão fora do mercado há algum tempo, compondo apenas esporadicamente (Bernardo Vilhena cedeu uma letra ao grupo paulistano Vespas Mandarinas esse ano, chamada “Santa Sampa”, enquanto Paulo Sérgio conta ter composto recentemente suas primeiras canções com Roberto Menescal, depois de quase cinco décadas de amizade). Mas e quem está chegando agora nesse mercado, como vive?

“Não posso revelar números, mas se for pra incentivar quem tá começando, digo que dá para viver tranquilo com direitos autorais. Não dá pra esbanjar, ficar milionário, mas dá para viver bem”, conta Marco Aurélio, que tem em seu portfólio letras como as de “Camaro Amarelo”, “Boate Azul” e “Você de Volta”, três hits do sertanejo brasileiro do século XXI.

Gaúcho de nascimento, mas estabelecido no Mato Grosso do Sul, Marco Aurélio conta que a inspiração para seu hit mais recente veio da vontade simples de fazer uma parceria com outro “ilustre desconhecido” da música nacional: Bruno Caliman, responsável por “Beber, Cair e Levantar”, gravada por Leonardo. “Há tempos nós tínhamos esse namoro, de querer fazer uma música juntos. Um dia ele foi a Campo Grande e nós agitamos isso. Ele que veio com a ideia de fazer rimar caramelo com Camaro Amarelo”.

E por que o Camaro Amarelo, e não uma Ferrari vermelha, ou um Porsche azul? “Para mim, o Camaro Amarelo é um sonho embutido do brasileiro”, explica o compositor, que viu que o lado de crítica social da música – a história de um rapaz pobre cujo pai morre e, com o dinheiro da herança, compra um carro esportivo e se dá bem com o sexo feminino – passou despercebido pelo público. “O povo não entendeu, muitos levaram para o lado da sorte. Colocamos alguma coisa que era uma crítica social, mas no mais, a música é mesmo para se divertir”, resume. Durante mais de quinze anos, Marco Aurélio era parte de uma dupla sertaneja com o amigo Paulo Sérgio (não o Valle, que fique claro), e se tornou bastante conhecido na região de Campo Grande, mas não conseguiu ser catapultada para o sucesso fora do Centro-Oeste. Hoje, ele se dedica a empresariar nomes como Munhoz e Mariano e Fred e Gustavo. Ao ouvir suas músicas na rádio, Marco Aurélio se sente parte de uma grande engrenagem. “As músicas estão participando da vida das pessoas de uma forma legal, ajudando os escritórios, ajudando os artistas a criar empregos. Tem algo mais do que só tocar no rádio, e a gente fica orgulhoso que as pessoas levem o leite para casa através de uma música que a gente faz”, explica.

Para Marco Aurélio, o momento da música brasileira hoje é interessante. “Nos anos 1970, 20% das nossas rádios tocam música nacional, isso nós conseguimos virar com o rock nos anos 1980 e com o samba e o sertanejo nos anos 1990, e hoje somos maioria. O direito autoral fica no Brasil, antes nós mandávamos para fora. É claro que existe jabá, mas esse é o ônus do capitalismo”. Pergunto a ele se esse é o melhor sistema que temos hoje. “É. Ruim seria se estivéssemos no comunismo, se os caras pegassem o meu verso do “Camaro Amarelo” e popularizassem ele, dissessem que o verso é de todo mundo! (risos). Acho que o capitalismo vem colado na nossa liberdade de expressão, no nosso sistema político brasileiro. Faz parte da gente”.

Paulo Sérgio Valle, por sua vez, nega a existência de jabá: “Isso é coisa do tempo que as gravadoras ganhavam bilhões”, diz. Entretanto, ele vê problemas na música brasileira dos dias de hoje. “Não há só um tipo de música tocando hoje em dia, há rádios que tocam bossa nova, música romântica, mas isso não toca em qualquer lugar. A gente precisa refletir sobre o que faz sucesso hoje, que é o funk. São músicas que não tem texto, só um cara falando, parecem letras escritas por analfabetos. E o que é isso? É falta de educação. A criação artística não é uma coisa etérea, ela se reflete no dia-a-dia. Se a educação melhorar no nosso país, a arte melhora, porque o público vai pressionar isso para cima. Se não, as coisas vão continuar do mesmo jeito, até vai piorar”, resume.

 

Bernardo Vilhena, desmente Paulo Sérgio Valle quanto ao pagamento por “espaços de mídia”, mas vê o jabá centralizado na mão de TVs e rádios e empresários hoje em dia, e não mais com as gravadoras. “A música continua a ser como era antes, mas a mídia mudou”, conta ele, que toma para si a responsabilidade de auxiliar a melhora da música brasileira. “Todo artista tem que saber que antes dele existiu alguma coisa, e depois dele vai vir outra coisa. É preciso ser responsável por isso. Cabe a nós, os mais velhos, chegarmos nos artistas mais novos e buscarmos educação. É por isso que eu vou nas UPPs, dou aula para os jovens, discuto textos, falamos de música. Dali, quem tiver talento pode sair e virar músico, e quem não tiver, vai ser um leitor melhor, um ouvinte melhor. É disso que a gente precisa”, explica, como quem consegue por um último acorde nessa história.  



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