Entre letras e paixões
A história do professor de caligrafia bicampeão mundial de futebol de botão
Por Carolina Vellei - Edição Sumiço - dezembro de 2013

“Viu a bagunça que está aí, Paulo?”, perguntou o senhor sentado à mesa, ao ver o homem entrando. Lá fora, os pedreiros marretavam o concreto sem parar. O barulho das batidas invadia a sala da casa. “É, eu percebi, mas vai ficar bom, né?”, respondeu o visitante. Remexendo em alguns papeis, o senhor sorriu e disse: “É, estamos dando uma repaginada, de vez em quando precisa”.  No endereço 385 da Av. Eusébio Matoso, em Pinheiros, as mudanças acontecem da porta para fora. Do lado de dentro, a tradição impera. As paredes, decoradas com diplomas e quadros que mostram letras cuidadosamente desenhadas, guardam um pouco da história de quase 100 anos da Escola de Caligrafia De Franco.

O professor que ocupa o lugar na mesa se orgulha do fato de a escola manter até hoje o método de ensino criado pelo fundador em 1915. Antônio De Franco Neto dedica sua vida ao aperfeiçoamento da escrita. Ele é quem assume o primeiro turno de aulas, das 9h às 14h, de segunda à sexta. Depois quem entra é o seu irmão Flávio, que fica até as 20h cuidando do negócio da família De Franco.

O aluno, Paulo, tinha chegado para a sua quarta semana de aulas. Cumprimentou o mestre, mostrou a lição de casa e disse:

– Olha, o cezinho eu consegui, mas aquele erre, ainda tô apanhando...

– Mas você melhorou muito, as ascendentes estão bem fechadas... O eme minúsculo às vezes não acabou... – responde o professor, apontando para o papel.

– Tô apanhando um bocado, mas vou conseguir – comenta Paulo, pegando a nova lição. Antônio dá algumas orientações e ele se senta à mesa para uma nova lição.

Paulo Mariano é mais um dos estudantes da escola. É funcionário público e quer melhorar a letra antes de um exame que tem que fazer para subir de cargo. “A gente tem vícios de muitos anos, ao longo do tempo a gente para de escrever e fazemos tudo só no computador”, admitiu. A escola recebe principalmente dois tipos de público. Aqueles que precisam melhorar a letra para trabalhar ou para estudar e aqueles que, já tendo uma escrita bonita, se interessam em seguir a carreira de calígrafo. Apesar do que muitos podem pensar, para Antônio, a profissão não está morrendo. “Hoje em dia, raramente em um casamento o convite não é caligrafado. E o volume de cerimônias é grande. Tem gente que fica até três anos na fila para casar na igreja que quer”, explicou. Além disso, o profissional formado no curso também está apto a escrever documentos oficiais e diplomas.

A média de 1000 alunos por ano é a prova desse interesse pela área. Uma das poucas ainda existentes no país, a instituição já recebeu até alunos estrangeiros. Em 2011, uma professora de ensino fundamental de Angola, veio até o Brasil atrás da famosa Escola de Caligrafia De Franco. “O nome dela era Branca Mirella. Lá não tinha o curso e ela queria muito aprender para ensinar as crianças e também para trabalhar como calígrafa em Luanda”, explicou. A aluna foi aplicada. Fez o curso de dez meses em apenas dois meses e meio. “Nunca vi nada igual, mas ela precisava voltar logo para o país dela, então ficava aqui das 9h às 20h”, lembra.

Era uma vez...

Às 9h em ponto, caminhando com uma bengala, Antônio recolhe o jornal na frente da casa e me recebe. Abre o portão lateral e depois destranca a porta. Enquanto fazia isso, reparo nas iniciais ADF gravadas uma sobre a outra. A ideia de criar a escola surgiu do avô, o primeiro Antônio da família, que recebeu os segredos da arte da caligrafia diretamente de sua mãe.

Enquanto tomo notas, já acomodada na sala de aula, o professor me conta a história de como tudo teve início. “Todo esse trabalho de 98 anos vem de um caso de amor e todo caso de amor sempre tem um lado interessante”, começou Antônio. Parecia que, para ser conto de fadas de fato, só faltava o “era uma vez” (porque até castelo a história tinha!).

Sua bisavó, Ida Nóbile de Franco, era de uma família de nobres em Veneza, onde morava em um castelo. Junto com as outras meninas, teve aulas das mais diversas artes, entre elas, a caligrafia. Um belo dia, ela conheceu um rapaz, por quem se apaixonou. O problema é que Giuseppe De Franco era um “plebeu”. “Foi aí que começou a confusão na família”, conta o bisneto. Mas, como tinha uma personalidade forte e decidida, casou-se e se mudou da Itália para o Brasil, ainda na década de 1880, lugar em que Giuseppe tinha conhecidos.

E foi assim que a história dos De Franco começou por aqui. Para cada um de seus três filhos, Ida ensinou uma arte diferente. “Para o meu avô Antônio, ela ensinou a caligrafia”, explica o neto, que se enche de orgulho da história que já é passada de geração a geração. O primeiro Antônio, que foi militar e era muito aplicado, resolveu criar um método para o ensino do estilo comercial inglês, uma tipografia que começou a se espalhar pela Europa a partir do século XIX em documentos e em negociações oficiais.

O que pouca gente sabe é que a responsável pelo sucesso do negócio foi a matriarca Luiza Russo De Franco, esposa de Antônio. Ela era o grande gênio comercial da família, segundo o neto. “O meu avô era um artista, minha avó que era a comerciante. Quem se dedica à arte não tem tempo para cuidar do dinheiro e ela sempre foi uma mulher muito forte de caráter”, revela.

As lembranças da família estão todas bem frescas na cabeça do professor. Rindo, ele se lembra de uma história com a avó e um conjunto de penas muito valioso. “Eu devia ter uns 16 anos na época e a minha avó, a matriarca, era muito amiga de uma irmã do convento, a irmã Rafaela, daquelas que tem chapéu que nem a noviça rebelde. Ela almoçava às vezes na casa da minha avó e, depois de formar uma turma de corte e costura no convento, minha avó me pediu: ‘Toneco, dá pra fazer uns diplomas pra irmã Rafaela? ’. Nossa! Naquela época, se a minha avó me mandasse pular da janela, eu pulava, de medo (risos). ‘É claro, vó, sem problema’, respondi. Daí eu fiz e quando a irmã foi pegar os diplomas e me perguntou: ‘Quanto eu devo?’, disse a ela: ‘A senhora não deve nada, isso é oferta da família’, mas ela insistiu. ‘É que eu trouxe aqui umas peninhas pra você’. Tentei ser educado: ‘Irmã, guarda no convento que a senhora pode precisar’, mas desisti quando olhei a caixinha fechada. Eram 32 penas modelo 400, um tipo muito raro e eu quase não acreditei! Sorri para ela e falei: ‘Olha irmã, eu não vou ofender a senhora, vou receber de bom grado e guardar como uma lembrança da senhora’... Eu tremia tanto que peguei aquela caixa e fiquei um tempo até largar”, contou rindo o senhor de 64 anos, que por instantes tinha virado menino de novo, sentado na mesa de professor.

O interesse de Antônio pelas atividades do pai Flávio (além dos tios Antônio e Edson) começaram bem cedo. Apesar disso, antes dos 9 anos a família não deixava as crianças nem participar do trabalho, nem mexer com as penas. Os pequenos ficavam apenas olhando os adultos trabalharem, em meio a um monte de papeis, penas e muitas tintas. A curiosidade, claro, crescia bastante. “Esse era o segredo para captar a atenção dos mais jovens”, revela. Tem dado certo até hoje. “Fiz com o meu filho, meu avô fez com o meu pai”. O filho único de Antônio, outro Antônio (“Seguimos muitas tradições, uma delas é o nome Antônio há quatro gerações”, brinca), tem 29 anos e, apesar de gostar da profissão, não trabalha com o pai e sim como diretor de uma empresa. “Mas o que ele gosta mesmo é de dar aulas, então quando ele tem um tempo, ele escapa e vem aqui”, comemora o pai.

Outro hábito que foi passado de pai para filho é a escolha do curso superior. Apesar de a família inteira ter se dedicado à escola de caligrafia, todos os filhos e netos do patriarca são formados em Direito. Antônio explica. Para ele, o professor deve ter uma educação mínima para ajudar os estudantes.  A oferta de cursos superiores na época em que cursaram a faculdade era limitada e o Direito foi o mais apropriado para a função. “O professor é, antes de tudo, um formador de pessoas. Se você não tem o discernimento do que é certo ou errado, você não vai ser um bom profissional”.

 “Você mata galinha?”

Como um bom italiano, Antônio não dispensa uma reunião em volta de uma mesa, repleta de comidas gostosas. Ele é um defensor das refeições com os familiares. “Hoje em dia, devido a essa loucura da vida, quando as famílias conseguem jantar juntas, já é muita coisa, não é? Isso acaba com o diálogo”, acredita o professor. Quando começou a lembrar desses encontros, Antônio deu uma risada e me fez uma pergunta esquisita. “Você sabe qual era a primeira dúvida quando ia uma empregada trabalhar na sua casa?”. Não consegui pensar em nenhuma resposta e ele emendou: “Você mata galinha?”. Pensei: “Ah, eles deviam gostar de galinha ao molho pardo...”. Nada disso. A empregada precisava ser corajosa, porque naquela época todas as galinhas eram “frescas”. “A galinha é o prato do domingo e no supermercado não se vendiam as peças do frango como é hoje”, lembra o descendente de italiano. “E sabia que, pela parte da galinha que cada membro da família comia, dava para saber o grau de influência que a pessoa tinha?”. Por essa eu não esperava, admito. Antônio conta que os mais velhos, os pais, comiam a carne branca, o peito. Depois vinha a coxa, e assim por diante. “Quem comia a asa estava na escala inferior, eram os mais novos. Já comi muita asa na minha vida”, brincou. Quando era rapaz e estava no exército, contou que o prato mais frequente dos tenentes era “Frango a Santos Dumont”.  A explicação é que sobravam só as asas, já que os oficiais mais graduados comiam o resto.

 “A minha mãe era carioca, então eu peguei um pouco do jeito dela e sou mais expansivo”, diz Antônio, depois de se recuperar da risada. Mas a sua grande alegria mesmo é trabalhar na escola. “Eu levo esse trabalho como uma missão que recebi dos meus antepassados”, se abre o professor. Segundo ele, o prédio na Av. Eusébio Matoso, que é próprio, daria muito mais dinheiro do que as aulas caso fosse apenas alugado. Localizado a menos de 300 metros do Shopping Eldorado e da estação Hebraica-Rebouças de trem, o aluguel na região pode ultrapassar a quantia de R$ 10 mil reais, dependendo da metragem do imóvel. “Mas o trabalho é o que me motiva, alguém precisa fazer isso, entende? É uma coisa prazerosa”.

Amor

Foi graças a Antônio, por exemplo, que Walter conseguiu escrever uma carta legível para Maria, a namorada dele na Bahia. Com quase 50 anos como professor, ele se lembra como se fosse hoje da história. “Um dia entrou um camarada com a camisa do Santos, bem simples, que falou: ‘Olha professor, tô precisando melhorar minha letra bem rápido. Mas olha, eu quero sinceridade, eu vou melhorar?’. Expliquei que em dois meses ele melhoraria e falei sobre o método. Ele respondeu: ‘O meu dinheiro é sofrido pra ganhar, não posso perder ele à toa’. Garanti que ele conseguiria e dei minha palavra que, caso fizesse todas as lições e não faltasse às aulas, ele teria o dinheiro de volta se não ficasse boa. Perguntei por que ele estava com tanta pressa e ele me disse: ‘Vou abrir o jogo. Vim para São Paulo para trabalhar como camelô e tô morrendo de saudade da Maria e eu preciso escrever o que eu tô sentindo, mas tenho muita vergonha da minha letra, já mandei umas cartas, mas tenho vergonha’. Então, como ele era uma pessoa muito articulada, muito inteligente e pela necessidade do amor dele, se dedicou noite e dia. Ou seja, em 20 dias, ele tava com a letra maravilhosa. Aí ele chegou e falou: ‘Olha professor, você acha que já dá pra mandar carta pra Maria?’. Eu respondi: ‘Você tá brincando? É claro que dá, pode mandar tranquilo!’. Daí, nem tinha passado um mês, ele sumiu. Pensei que, como tinha conseguido mandar a carta, tinha atingido o seu intuito. Depois de uns três meses, o Walter voltou e me explicou o sumiço: ‘Ô professor, que confusão! Tive que voltar pra Bahia pra escrever na frente dela. A Maria achou que eu tava contando as nossas coisas íntimas pra outra pessoa!’. Caí na risada, na hora”.

Antônio entende bem de amor. Sua paixão de toda a vida, a esposa Lorenzini Ramondetti De Franco, ficou ao seu lado por 40 anos, até morrer no começo de 2013. Foram onze longos meses de doença, quatro deles na UTI. “Você não pode calcular a perda, foram anos de felicidade, sem uma briga, ela sempre me apoiou”, diz o professor, que ainda se emociona ao falar dela. “Desculpa, é porque a ausência é uma coisa muito dolorida”.

“Eu tinha 16 anos quando a conheci, no colégio. Éramos colegas de classe no curso de contabilidade”, lembra ele, que na época optou pelo curso técnico durante o ensino médio para já ter uma profissão. A escolha foi decisiva. “Eu brincava com ela porque ela chegou depois de mim na primeira aula e se sentou duas cadeiras depois da minha, daí eu falava pra ela assim: ‘é, você entrou e pensou, ‘deixa eu escolher um pato aqui pra ficar perto...’”, completou Antônio, rindo.

Não demorou muito para começarem a namorar. A caligrafia está tão integrada à vida da família que a primeira pergunta que o pai de Antônio fez para ele foi: “Ela é canhota?”. “Eu sabia que ela era, mas fiquei quieto e não respondi nada”. Quando o pai descobriu, falou: “Preferiria que não fosse”, conta o filho descontraído, pois o pai pensava que assim as chances de o neto nascer canhoto seriam maiores. “Acontece que os canhotos aprendem do mesmo jeito, mas sofrem mais”, explica. 

O material para os canhotos também é mais difícil de encontrar, segundo o professor. “Como eu viajei muito pelo mundo, a cada viagem que eu fazia eu procurava a pena especial e era uma dificuldade para achar, já naquela época. Nos Estados Unidos, fui a uma papelaria em Nova York e achei só um conjunto. Comprei, naturalmente. Ainda não tinha filho, mas falei que, se ele não nascesse canhoto, daria para o melhor aluno que encontrasse nas minhas aulas”. Depois de onze anos, o filho nasceu destro e Antônio pagou a promessa.

Bicampeão mundial

Olhando aquele senhor de bengala e óculos explicando as lições de caligrafia, ninguém poderia imaginar que ele já levou o Brasil a ganhar prêmios internacionais em uma área totalmente diferente. Ele é o técnico da seleção brasileira de futebol de botão e já ganhou duas Copas do Mundo na categoria. A última foi em Budapeste. A competição acontece como o campeonato da FIFA, a cada quatro anos. A próxima será na Hungria, em 2015.

“Nossa vaga já está garantida, porque fomos bicampeões”, comemora Antônio, que é chamado no meio “botão-futebolístico” de “O Professor”. Ele é federado há mais de 50 anos. Segundo Antônio, existem campeonatos municipais, estaduais e nacionais. São três categorias, dividas por idade. A sub-18, a adulto e a máster, para quem tem mais de 45 anos. Os resultados vão para um ranking nacional e desse ranking as pessoas se classificam para os campeonatos realizados ao final de cada ano. “É um negócio muito bem organizado. O calendário sai em janeiro e você já sabe o que vai fazer até dezembro”, conta.

A receita para o sucesso em campo? Muito treino. “Já recebi pessoas da Romênia e da própria Hungria para fazerem estágio na minha casa. Eles dormem por lá mesmo. Tem pessoas que me ligam do Japão, mas já aconteceu de eles esquecerem o fuso horário e me ligarem às 3h da manhã. Quase pensei que alguém tinha morrido”, brinca.

Antônio também gosta do futebol de campo e é torcedor roxo do Palmeiras. No meio da entrevista, seu celular começou a tocar o tema do filme “O Poderoso Chefão”. Na capinha do aparelho? O escudo do seu time. “A música é uma brincadeira do meu filho, ele que colocou pra mim”, admite.

“E o pior é que meu filho dormia com lençol e fronha do Palmeiras e acabou se casando com uma corintiana que tem a família toda torcedora do Corinthians, parece filme”, riu. “Fiz questão de combinar com ela antes do casamento que o meu neto não ia ser corintiano. Para garantir, eu continuo falando e ela continua fazendo o sinal da cruz!”.  Ao final da entrevista, comentei com ele: “Seu pai teve que aceitar uma canhota e você agora tem que aceitar uma corintiana”. Ele sorriu e me respondeu: “Pra você ver a vida...”



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