Os olhos que não precisam ver
Por Meire Kusumoto e Paula Zogbi Possari - Edição Sumiço - dezembro de 2013
Conversas com o além

Na cadeira, o corpo se sacode. Os braços se mexem de modo independente, sem ritmo e, estranhamente, sem vida. Os olhos, virados para cima, encaram o teto sem realmente vê-lo. Sai da boca uma voz gutural, irreconhecível, que profere as maiores barbáries sobre a Terra, o inferno, as pessoas e a morte. Essas, estateladas e pregadas ao chão, não querem ver, mas não conseguem desviar os olhos. A sala é suja,  mal iluminada e as imagens de santos que preenchem as prateleiras em todas as paredes quase não são vistas, mesmo com as velas que cada um ali dentro tem nas mãos instáveis, que tremem a cada espasmo que o corpo no centro dá. É impressionante a forma como um espírito consegue possuir e dominar a matéria.

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Na cadeira, o corpo está imóvel. Os braços, apoiados nos joelhos, não denunciam qualquer ameaça ou mesmo movimento. Os olhos estão fechados e as pálpebras tremem suavemente. A voz é rouca e, pausadamente, indaga sobre o que é aquele lugar antes de perguntar, em tom de sério questionamento, quem é aquela assombração - na verdade um rapaz de vinte e poucos anos. A assombração não está mais ali, seguiu em frente e recebe uma canalização de energias, alheia ao que acontece atrás de si. As luzes estão apagadas, mas uma abertura na parede permite luminosidade suficiente para se enxergar o que acontece. As paredes são brancas e cobertas por ganchos em que os presentes penduram seus pertences. Não há santos, nem velas. É impressionante a forma sutil com que um espírito consegue se aproximar e estabelecer uma conexão com a mente de outro.

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Sessão, reunião, encontro espírita é algo que, a começar pelo nome, confunde. Como se chama? Como é? O que acontece? Quem pode participar? As pessoas realmente se jogam no chão e conversam com espíritos? Quem aposta que o mais provável é a primeira cena descrita neste texto, se engana. Na Federação Espírita do Estado de São Paulo (Feesp), no centro da capital paulista, não há cenas assustadoras e menções a Lúcifer que tomam lugar em salas escuras e sombrias, mas sim encontros calmos, onde os espíritos ajudam e são ajudados de maneira simples e tranquila.

A preparação do grupo que vai protagonizar a reunião começa trinta minutos antes do horário marcado para a sessão com as pessoas que vão ao centro espírita em busca de ajuda. São dois ambientes distintos: em uma das salas, o grupo recebe os espíritos e atende os interessados. Na sala ao lado, acontece uma palestra informativa sobre o assunto em questão. A Feesp fornece as chamadas “assistências” para diversas condições e dificuldades, como depressão, uso de drogas e alcoolismo.


O grupo é de cerca de dezesseis médiuns, chamados de assistentes espirituais. Há um líder a cada sessão, reponsável pela organização do trabalho e pelo encaminhamento das atividades. Na sala de preparação, ampla e bem iluminada, os assistentes espirituais chegam aos poucos e, após colocarem seus pertences em ganchos na parede ou em mesas, para não atrapalhar as atividades, sentam-se em roda. O líder, então, anuncia quais serão os livros utilizados durante o procedimento, geralmente obras de Alan Kardec e o guia de práticas do centro espiritual, seguidos de uma passagem do evangelho.

Após a leitura de alguns capítulos, feita em turnos pelos assistentes que acompanham o dirigente, uma rápida série dos chamados “passes” - que são canalizações de energia - é feita. Depois do pedido: “Leve sua mente a Jesus”, cada um dos participantes faz uma rotina de movimentos com as mãos na frente dos olhos e do corpo de um parceiro, começando pela cabeça e se desdobrando pelos braços e pelas pernas, cochichando palavras de positivismo e fé.

Ao fim, o procedimento se inverte e o passista é quem recebe a energia do colega, da mesma maneira. Na sala adjacente, isso também é feito com as pessoas que vão procurar a assistência por membros do centro espírita, como forma de transmitir energias benéficas e prepará-los para a reunião. Enquanto isso, o palestrante, um membro da Feesp, fala como lidar com familiares que apresentam os sintomas de depressão ou que sejam viciados em álcool ou drogas.

O grupo de médiuns termina a rodada de passes, apaga as luzes e a sala fica iluminada apenas parcialmente, resultado de um vão na parede próxima ao teto que deixa a luz do corredor passar. A configuração circular dá espaço à divisão dos médiuns em quatro subgrupos, próximos aos extremos do ambiente. Dois deles formam quadrados, com duas pessoas viradas para a parede e uma para a sala e uma cadeira permanece vazia, no centro. Do outro lado, os assistentes formam minicírculos ao redor de uma cadeira também vazia.

Antes de o primeiro da fila de pessoas que procuram assistência entrar, uma mulher, médium, se posiciona na cadeira vaga em frente aos outros três, que atuam como receptivos. Calmamente, ela diz para o médium à sua esquerda: “Boa tarde, seja bem-vindo”: frase repetida toda vez, que vai desencadear uma série das mais diversas reações em cada um daqueles assistentes que, de olhos fechados, corpo ereto e mãos geralmente sobre os joelhos, estão sensíveis à presença de espíritos desencarnados. A conversa é breve, dura menos de um minuto, e varia com a mudança de médium e de espírito.

Do lado de fora, a fila de pessoas para o atendimento vai se formando. Duas por vez, elas entram na sala adjacente. Após ser recebida com um abraço e um beijo no rosto do líder espiritual, cada pessoa é encaminhada à primeira parte do procedimento: deposita seus pertences em uma cadeira livre e toma lugar em frente ao grupo de médiuns que há pouco havia transmitido mensagens dos espíritos e conversado com um dos assistentes.

A pessoa recém-chegada novamente toma um passe, dessa vez sentada próxima de médiuns que sentem a presença de espíritos. Apesar de haver mais espíritos do que corpos no lugar, nenhum som se ouve, ninguém pronuncia uma palavra, não há comunicação verbal ou física entre os assistentes e os assistidos. Após o passe, feito com procedimentos exatamente iguais aos outros e por não mais do que um minuto, a pessoa é levada ao outro lado da sala e recebida pelo segundo subgrupo.

Ela responde à pergunta dos assistentes sobre quem é o interessado na reunião, se ela mesma ou algum parente ou amigo. Se ela estiver procurando ajuda para algum conhecido, ela se senta na cadeira central e ouve passagens de livros lidos pelos médiums, que depois conversam calmamente com a pessoa. Essa etapa, igualmente curta, tem duração de, no máximo, dois minutos. Caso o assistido mesmo esteja com depressão ou tenha vício em álcool ou drogas, o procedimento a ser seguido é diferenciado. Ao se sentar na cadeira, dois médiums, um na frente e um atrás, se levantam e executam um passe duplo, igualmente rápido, mas amplificado pela energia de duas pessoas.

Ao fim do processo, o assistido é encaminhado se despede do dirigente da sessão e se dirige para fora da sala, onde continua a acontecer a palestra informativa. Caso ele deseje, pode ter mais uma conversa com outros membros da Feesp sobre os problemas e as dificuldades que enfrenta. Assim termina o seu atendimento.

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“Boa tarde, seja bem-vindo”, diz a médium, sentada do lado esquerdo do corpo de sua colega, uma mulher jovem, com menos de trinta anos, cabelos longos cacheados e castanhos. O espírito dela está ali, mas não está sozinho: uma forte ligação de mentes acontece na saleta e ela recebe e ouve os dizeres de um espírito desencarnado. Transmitindo os pensamentos desse “ser”, ela, de olhos fechados e com ar de dúvida e incômodo, passando os cabelos de um lado ao outro do rosto com as mãos, pergunta: “O que que eu estou fazendo aqui?” A assistente, paciente e acostumada a esse tipo de reação, é simples: “Você está aqui para ajudar e ser ajudado. Como está se sentindo?” “Eu quero ir embora.” “Mas você acabou de chegar. Vamos fazer assim: você fica um pouco aqui e depois pode ir. Vamos fazer assim?” “...” Sem resposta, a médium se despede. “Fique em paz, vá com Deus.”

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“Boa tarde, seja bem-vindo”, diz a assistente novamente, dessa vez falando à mulher sentada mais ao centro. Uma pessoa que procurara o centro em busca de ajuda espiritual para o alcoolismo havia acabado de passar por ali. A médium, uma senhora idosa, de cabelos presos em um coque um tanto frouxo, responde ao cumprimento de olhos fechados, como a moça o havia feito, mas da maneira mais inesperada possível: “O que é essa assombração?” Surpresa com a reação, a assistente não consegue segurar uma risada. “Não é uma assombração, é uma pessoa que está aqui para ser ajudada.” “Estou com medo.” “Não precisa ter medo, aqui só estamos ajudando. Vamos fazer assim, você acabou de chegar, fique um pouco e vá.” “...” “Fique em paz, vá com Deus.”

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“Boa tarde, seja bem-vindo”, diz a assistente para a senhora, em uma nova rodada de conversas. “Você sabe o que está acontecendo?”, continuou a médium. Uma série de frases ininteligíveis se seguiu, até que a senhora falou de modo breve e confuso. Quase como se o espírito desencarnado que estava ali no momento tivesse percebido, de súbito, o que aconteceu nos momentos finais em que vestiu o último corpo humano que conhecera. “Eu estava lá, fiz as coisas erradas. E aí morri. Morri, né? Não tem jeito." “Fique em paz, vá com Deus.”

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Paris, meados do século XIX. Hippolyte Léon Denizard Rivail, estudioso renomado e respeitado, aos 50 anos de idade, descobre em uma reunião espiritual, muito semelhante com a descrita acima, que possui a missão de transmitir para o mundo material os ensinamentos da doutrina espírita. Esse intelectual, em uma vida anterior, teria sido um celta chamado Alan Kardec, e foi usando esse nome que se tornou o criador e principal disseminador do espiritismo da forma como conhecemos hoje.

O espiritismo não é propriamente uma religião, mas sim mais especificamente uma doutrina. Essa doutrina se utiliza dos ensinamentos de espíritos - os chamados benfeitores - que se relacionam com o mundo material para auxiliar os que nele se encontram. As palavras que esses espíritos pregam tratam da "natureza, origem e destino dos espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal e as consequências morais que dela emanam", escreve Kardec em seu livro “O que é espiritismo”.

A premissa de que parte a doutrina dos espíritos é a de que a morte não existe. Cada corpo físico é habitado por um espírito, e quando um corpo para de funcionar, o espírito que se utilizava dele até então passa a existir, com uma composição mais sutil, em outro plano, que não é perceptível pelos nossos cinco sentidos principais: o plano espiritual. Segundo Vera Milano, diretora do Departamento de Direção e Encaminhamento da Federação Espírita do Estado de São Paulo, “a doutrina dos espíritos matou a morte (...) o ser que pensa, que sente, que ama, que odeia, que gosta, que não gosta, que tem conhecimento, que tem afetos, que tem desafetos, que tem virtudes, que tem defeitos, é o espírito imortal, é o espírito que não morre”.

Ela também afirma que o mundo espiritual é muito semelhante ao que conhecemos, com escolas, hospitais e trabalho, mas sem artifícios e maquiagens. “Somos atraídos para os locais que temos mais afinidade. O que é afinidade? é a minha propriedade verdadeira. É o que Jesus falou, ‘eu levo comigo o que eu realmente sou’. No mundo espiritual não tem máscara, aqui tem gente que passa maquiagem, ficar bonitinho, lá não tem jeito: eu sou o que sou”, completa.

Aprendizado

Segundo essa crença, os seres vêm para o mundo material para sua própria evolução. Enquanto habita um corpo físico, o espírito trabalha a sua própria evolução, adquirindo sabedoria e moral. O exemplo máximo desse progresso é representado por Jesus Cristo: um espírito só deixa de precisar evoluir quando se tornar equiparável a Jesus, que é “o máximo de pureza que a humanidade pode conhecer”, de acordo com Vera.

Não há no espiritismo, portanto, o chamado “castigo divino”, tão conhecido e difundido em outras doutrinas e religiões adotadas ao redor do mundo. As experiências pelas quais o ser humano passa são consequências de atos cometidos durante a atual encarnação ou em outras, anteriores, e ocorrem com a única função de fazer com que o indivíduo aprenda e evolua moralmente.

Nesses pontos, apesar de a doutrina não romper com os ideais cristãos, os ensinamentos batem de frente com aqueles pregados pela Igreja Católica: a redenção, para os espíritas, não é algo imediato e irrefutável, mas sim uma conquista gradativa e demorada. Outra grande diferença entre as duas visões é a imagem e a função de Deus. No espiritismo, não existem os conceitos de céu e inferno - o bem e o mal estão dentro de cada um dos espíritos. E Jesus Cristo, então, não é um enviado de Deus, mas sim um espírito mais evoluído, com um grau de pureza que devemos alcançar com tempo e trabalho, ao longo de muitas vidas.

Os espíritos não chegam à Terra como seres humanos, mas sim como criaturas menos evoluídas intelectualmente. Cada um de nós já pode ter sido uma planta, uma pulga, ou qualquer outro ser vivo que habita o planeta. E também não é necessariamente com a forma humana que chegaremos ao máximo de fé e sabedoria representado por Jesus. “[um espírito] pode ficar no plano espiritual por meses, anos, séculos. Pode ser que ele não precise reencarnar no nosso planeta mais e que possa ir para um planeta mais evoluído, onde ele possa aprender mais”, explica Vera. Ela também diz que um espírito sempre caminha em direção à melhora, o que significa que não há possibilidade de uma pessoa reencarnar menos evoluída do que é na vida atual: “Nós nunca retroagimos, nós nunca vamos voltar a ser uma pessoa pior do que nós éramos mil anos atrás”.

Outro princípio que tem muita força dentro da doutrina espírita é o do livre-arbítrio: mesmo que possa ser aconselhado por espíritos (bons ou ruins), o homem sempre tem plena responsabilidade sobre todos os seus atos. O espiritismo acredita que o discernimento de cada um é a principal maneira de medir seu moral e sua ética, o que significa que, ainda que tudo o que aconteça na vida tenha uma função e carregue um ensinamento, as responsabilidades e méritos de cada ato cabem exclusivamente a quem os realizou.

Comunicação

A ciência já comprovou de diversas maneiras que o corpo humano necessita de descanso, o qual é provido, principalmente, pelo sono. Mas o espírito que habita esse corpo, segundo a doutrina espírita, não possui essa demanda natural, mantendo-se sempre acordado.

Enquanto o corpo humano repousa, o espírito se liberta, preso apenas por um cordão luminoso, e vai visitar o mundo espiritual. De acordo com Vera, a razão pela qual não lembramos dessa viagem feita por nossos espíritos no dia seguinte é o fato de que o ser humano “não tem cérebro” para guardar todas essas memórias dos dois planos. O que sobra disso seria a sensação que essas conversas noturnas entre espíritos deixaram: “Às vezes eu penso naquela pessoa, naquele meu ente querido que está na espiritualidade, e me sinto bem. Significa o quê? Que eu tive uma notícia dele à noite. Eu me sinto em paz”, completa.

Mas é possível, para algumas pessoas que já vêm para o plano físico com esse dom, realizar esse tipo de contato mesmo quando acordadas. Isso é chamado de mediunidade. Segundo Vera, essa capacidade “é um sentido a mais que nós temos, uma faculdade de poder perceber a movimentação desse mundo espiritual que está à nossa volta”. Alguns médiuns conseguem ver espíritos, ouvir, receber dos espíritos um magnetismo capaz de mover coisas, visualizar coisas à distância, escrever o que lhes é transmitido, enfim, se comunicar com esse outro plano, de forma a transmitir ensinamentos a quem precisa e repassar a doutrina, como fizeram Kardec e o brasileiro Chico Xavier.

Segundo Vera, Chico tinha uma habilidade muito rara nesse sentido. O responsável por psicografar mais de 450 publicações desde os 22 anos de idade, inclusive obras de poesia no Parnaso de Além-Túmulo, tinha “todas as mediunidades”. Para ela, o famoso médium “veio fazer um papel para a humanidade, ele veio escrever e deixar um patrimônio literário para a humanidade”. De acordo com seguidores, ele tinha poderes de vidência, de materialização, de psicografia, e onde ele passava deixava um perfume de flores. Seu legado foi um dos grandes fatores responsáveis por tornar a comunidade espírita brasileira a maior do mundo, com 3,8 milhões de seguidores, segundo pesquisa do IBGE em 2010.

Os médiuns não são necessariamente espíritos mais evoluídos do que aqueles que não possuem essa habilidade. Para a doutrina espírita, um médium deve usar a capacidade que lhe foi dada de forma a ajudar as pessoas, por meio dos benfeitores, e não em benefício próprio - para ganhar dinheiro, por exemplo. E não são apenas os benfeitores que buscam entrar em contato com a humanidade: espíritos mal intencionados podem buscar falar com o mundo material - “o telefone só toca de lá para cá”, dizia Chico Xavier, e cabe a quem recebe os recados discernir se eles devem ser seguidos e repassados ou não.

Segundo a edição definitiva do Livro dos Espíritos, publicada por Kardec, “O bem reinará na Terra quando, entre os espíritos que vêm habitá-la, os bons predominarem sobre os maus; então eles farão reinar na Terra o amor e a justiça, que são a fonte do bem e da felicidade”.

Ao contrário da crença popular, um espírto não entra no corpo de outra pessoa quando ocorre a comunicação. Em um corpo, só é possível estar o espírito que o habita nesse momento. A comunicação ocorre de mente para mente. O espírito desencarnado fica simplesmente próximo do médium, que transmite os seus recados.

Tipos de corpos diferentes

De acordo com a crença espírita, não é só o planeta Terra que é habitado por espíritos. “Diante dessa grandeza universal, por que só o nosso [planeta] seria habitado?”, questiona Vera. “Isso é um pensamento extremamente arcaico, não tem como nem a lógica, nem o bom senso confirmar um negócio desse. É logico que há vida em todo o universo”. Porém, cada planeta possui sua própria atmosfera e seus próprios elementos químicos. Um espírito que reencarne em outro planeta terá um corpo formado pelos elementos existentes nesse determinado lugar. Segundo a especialista, “quanto mais você evolui, menos material é o seu corpo. Porque hoje a gente ainda se arrasta pelo chão, pode perceber. Quanto mais você evolui, mais sutil vai ser seu corpo, mesmo encarnado, porque você vai ter mais liberdade de ação”.



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