Elas não estavam em casa
Por Jéssika Morandi - Edição Sumiço - dezembro de 2013

Eram 94 rostos espalhados pela escadaria da catedral da Sé, no centro de São Paulo (SP). Domingo, dez horas da manhã, céu nublado, chuva intermitente, mas as dezenas de cartazes resistiam ao ataque dos pingos e do vento. “Aquela do olho azul na segunda fileira, aquela Ana Paula, tá lá na Baixada Santista”. “Esse aqui tá na cadeia, aliás, saiu ontem, ficou 60 dias preso porque quebrou um galpão lá. É doidão o cara”. As falas são de moradores de rua, vários deles, que param para analisar as fotos imprimidas em sulfite. Cada uma traz a face de uma pessoa desaparecida, e o apelo para que seja encontrada.

Duas delas têm suas histórias narradas nessa reportagem pela boca daquelas que mais sofrem, até hoje, com a perda: as mães. Duas garotas na puberdade, sumidas praticamente da porta de casa. Uma na época do Natal, outra na Páscoa. Uma ocorrida já há mais tempo, outra considerada recente. Dois jeitos diferentes de lidar com a dor, porque superá-la, jamais.

 Fotos na praça da sé 

Uma perda, uma causa

Fazia 53 dias que Ivanise não comia, nem dormia. Só fumava, tomava café, calmantes e antidepressivos, mas os remédios já não surtiam efeito. Entrou em estado de choque, chegou à beira da loucura e, com 1,50 m e 36 kg, foi internada com um quadro grave de desnutrição. A vontade de viver, ou melhor, sobreviver, só voltou com a frase do médico: “Você é tão egoísta que só está pensando em você. E seu marido? E sua outra filha que precisa de você? E se você morrer, me diz quem é que vai procurar a Fabiana?”. Assim, Ivanise reuniu forças para começar uma luta que já vai completar 18 anos. “Eu saí daquele hospital determinada a juntar todos os caquinhos para continuar procurando pela minha filha”.

Um fim sem fim e um começo

Era véspera da véspera de Natal de 1995 quando tudo aconteceu. Ivanise Espiridião da Silva, 51 anos, acordou com uma angústia muito grande, uma vontade de chorar, mas sem motivos para aquilo. Depois de fazer uma faxina na casa, a alagoana - que não perde seu sotaque nordestino mesmo há mais de duas décadas em São Paulo - saiu para o cabeleireiro, em outro bairro. Em casa, ficaram suas duas filhas Fabiana, 13, e Fagna, 12. O ônibus demorou mais de uma hora para passar e o salão já estava fechado quando Ivanise finalmente chegou. Ao voltar para casa, com o aperto no peito crescendo, desabou um temporal. Fagna estava lá, mas Fabiana tinha ido à casa de uma amiguinha. Quando a chuva passou um pouco, Ivanise pegou o guarda-chuva e foi à casa da garota, há três quadras de distância. Chegando lá, Luciana, a amiga, informa que Fabiana ‘já foi embora faz tempo’. As duas haviam se separado em frente ao mercado - há 120 metros da casa de Ivanise - e cada uma seguira seu rumo. Foi a última vez que alguém viu Fabiana. “Você não pensa no pior. A primeira coisa que eu falei foi: ‘vai apanhar quando chegar em casa pra não fazer mais isso’”.

Foram três meses de uma busca solitária pelas ruas. De dia em hospitais, delegacias, no Instituto Médico Legal (IML). De noite, pelas praças: da Sé, da Bandeira, do Correio. Levava a foto da filha na mão e, às vezes, começava a gritar de desespero. Era acalmada pelos moradores de rua: ‘Calma, tia, calma, tia’. Ivanise bateu à porta de emissoras de TV, rádio, jornais, mas ‘parecia que as pessoas não entendiam o que eu estava falando’. Foi no Rio de Janeiro, ao gravar um depoimento para a novela Explode Coração – conseguido por intermédio do Centro Brasileiro em Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente –, que conheceu as Mães da Cinelândia. O depoimento na novela não deu em nada, mas o encontro, sim. Decidiu publicar seu telefone em uma matéria que saiu ‘em dois grandes jornais de São Paulo’, fazendo um apelo às mães que também tinham filhos desaparecidos para que se unissem. “No dia seguinte eu sei que meu telefone começou a tocar às oito horas da manhã e não parou mais até hoje”.

Escolheu a Praça da Sé como palco para um encontro em São Paulo e marcou para o último domingo do mês, 31 de março de 1996, às 10h. Às 9h a escadaria da catedral já estava cheia de mães, pais e familiares de pessoas desaparecidas com seus cartazes em mãos. “Uma cena bonita, mas triste ao mesmo tempo”. Foi aí que caiu a ficha de quanta gente some nesse mundão. A mídia noticiou, à ocasião, o nascimento do movimento Mães da Sé, que presta acompanhamento psicológico, jurídico e de assistência social a parentes de pessoas desaparecidas, além de ajudar na divulgação e procura. Até hoje a entidade promove encontros no mesmo local e horário, sempre aos domingos, de 15 em 15 dias.

“O desaparecimento é muito pior que a morte. Porque quando você perde o pai, a mãe, você se sente órfão. Quando você perde o marido ou a esposa, você vira viúvo. Quando você enterra um filho, você vive o inverso da vida, que o certo é o filho enterrar o pai, e não o pai enterrar o filho. Mas você vive o luto. Depois, o que resta é a saudade das coisas boas, das alegrias que seu filho te deu, da convivência que vocês tiveram. Agora, quando ele desaparece, sua vida vira uma interrogação eterna porque você não sabe o que aconteceu com o seu filho, se ele está vivo, se está morto. E se está morto, cadê o corpo?”.

Fabiana, desaparecida

Descaso e alarmes falsos

Ivanise recebeu muitos, muitos alarmes falsos. Mas ela ia atrás de todas as denúncias. A última foi em uma cidade chamada Mundo Novo, no sertão da Bahia. A sensação, na volta, é de impotência, frustração. Mesmo assim, ela ressalta a importância das denúncias. “Se existe uma mínima chance de ser a pessoa, denuncie. Não fossem as denúncias, muitos casos não seriam resolvidos”, diz ela.

Com o tempo, Ivanise entendeu que o desaparecimento é uma questão social global, e não local. Inclusive ele pode ser voluntário. Muitas crianças e adolescentes fogem de casa por conflitos familiares e/ou violência doméstica, fora outras causas, como o tráfico de órgãos, a exploração sexual, sequestros. “Eu achava que a polícia não encontrava minha filha porque eu era pobre. Hoje eu vejo que o desaparecimento é uma coisa muito difícil de ser elucidado. A polícia é despreparada para lidar com esses casos, mas a culpa não é dela, é do Estado, é do governo que não investe em políticas públicas para o desaparecimento. É um descaso muito grande com quem passa por isso”.

Causa e consequências

Ivanise nunca mais trabalhou: como fundadora e presidente da Mães da Sé – que tem o nome oficial de Associação Brasileira de Busca e Defesa a Crianças Desaparecidas (ABCD) –, dedica-se de corpo e alma à entidade sem ganhar um tostão. Sua filha Fagna, 30 anos hoje, apenas um a menos que a irmã desaparecida, aprendeu a se virar sozinha. Amadureceu cedo e, aos 16, já trabalhava fora. Hoje é ela quem sustenta a casa. “Ela até falava como adulta. Aprendeu logo a ter responsabilidades”, conta a mãe. O aniversário de Fagna, no dia 28 de dezembro, não foi comemorado em 1995, e nem depois. Desde o ocorrido com Fabiana, se Fagna demora dez minutos a mais para chegar, Ivanise já liga preocupada. A mãe evita chorar na frente da filha, porque sabe que, se perdeu uma, tem outra ali ao seu lado. Fagna se casa ano que vem, e Ivanise voltará a trabalhar então, ‘nem que seja à noite’. A mãe está se preparando há tempos para este momento de despedida, quando deixará outra filha partir, mas desta vez sabendo exatamente para onde ela vai – e que vai voltar.

O marido partiu há tempos: sete anos depois do desaparecimento de Fabiana. A grande maioria das mulheres que enfrenta o drama de ter um filho desaparecido, enfrenta também o de perder o parceiro. “Você fica tão focada em encontrar o seu filho que esquece do seu papel de esposa, de mulher. Você não tem vontade, nem cabeça, pra praticar um ato sexual. Eu falava para o meu marido ‘você não tem vergonha de ficar pensando nessas coisas vivendo o pesadelo que a gente tá vivendo??!’. Só que o homem pensa de uma outra forma...”, desabafa ela.

Ivanise também nunca mais comemorou Natal ou Ano Novo. Nessas datas, só chora, assim como no Dia das Mães. Também não vai mais a festas ou a casamentos.

Luta e esperança

“Se conformar a gente nunca se conforma, mas tem que aprender a conviver com essa dor”. E Ivanise aprendeu tão bem que hoje ajuda outras mães a seguirem suas vidas. Ela tem os cabelos louros presos em um rabo de cavalo alto, usa calça skinny e camisa rosê, salto alto e brinco combinando com o colar e com o anel. Sabe de cor o que é crime de prevaricação, como se classifica um sequestro, quem investiga o que no sistema policial brasileiro e conhece de cor o endereço do DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa) e também trechos do boletim de ocorrências. Conta tudo isso em um discurso quase decorado, bem fixado - se bem que até hoje com um tom de engasgado.

Diz que luta pela sua Fabiana e por tantas outras com histórias parecidas. Não sai da Mães da Sé nem quando encontrar sua filha. “Porque eu ainda vou encontrá-la. O que nos mantêm vivas é a esperança de um reencontro, mesmo sem saber o dia e a hora em que ele vai acontecer. Porque se você perder a esperança, você morre”.

Vida interrompida

Carmem sacou na hora que Larissa não tinha ido pra escola. Dali a dois dias a menina, de 11 anos, não iria novamente, e começaria a maior dor da vida de sua mãe.

Foi o cabelo que denunciou Larissa. “Ela tava com o cabelinho todo, parecia que tinha acabado de acordar, sabe. Aí eu olhei assim e falei ‘ela não está com cara de que foi pra escola hoje’. Larissa, você foi pra escola hoje?”. Não tinha ido porque não achara o tênis estilo Mary Jane, presente do pai. Carmem não admitiu a justificativa e explicou para a filha que aquela era sua única obrigação, que se não encontrasse um tênis, teria que achar uma sandália, um outro sapato qualquer. E ponto.

Era a segunda-feira seguinte ao domingo de Páscoa, quando Larissa brincara o dia todo na piscina montada no quintal enquanto Carmem fazia ovos de chocolate para vender. Com ela estava o neto de Carmem, Kevin, à época com cinco anos. Os 1,63 m da menina, alta para sua idade, escondiam uma ‘criançona’ que ainda brincava de boneca. Era a caçula de uma família de cinco irmãos: Kemilly, 18, Natália, 23, Thaís, 26, e Neílton, 28 (idades atuais). Os últimos três, já casados, não moram mais com a mãe (na época, o filho mais velho ainda morava).

Carmem Aparecida Isabel, 46 anos, pele negra, 1,65 m, cabelo crespo, sempre se preocupou em não deixar os filhos sozinhos. Pagava um salário mínimo para uma pessoa ficar com as crianças em casa mesmo quando só ganhava pouco mais que isso. “Tinha que ter alguém pra receber eles da escola, fazer o almoço, dar o lanche da tarde e ficar com eles até a hora de eu chegar”. Até 2009, Larissa nunca foi pra escola sozinha: a mãe ou os irmãos a buscavam e levavam. Mas já na sexta série e estudando um pouco mais longe, ela só tinha que subir a rua para pegar o ônibus disponibilizado pela prefeitura. A menina ficava sozinha em casa por cerca de 20 vinte minutos, entre a saída de Kemilly, às 7h, e a dela, por volta das 7h20, para ir ao Centro da Criança e Adolescente (CCA), na mesma rua. Lá, cursava atividades extracurriculares desde os seis anos. Voltava almoçada, tomava banho, pegava a mochila e saía para ir à escola ao meio-dia.

Na terça-feira pós-Páscoa, Larissa abriu o portão para a mãe no final da tarde dizendo que fora a escola, e também achara o tênis. Não quis jantar, disse já ter comido e, de fato, havia louças na pia. Mas quando Carmem voltou para a cozinha depois de comer no quarto, o cheiro de banana com leite em pó denunciou que a menina estava, sim, com fome. Reparou também que a filha andava para lá e para cá pela casa de três cômodos. Cansada que estava, porém, a mãe foi tomar banho e, após ouvir Kemilly chegar do colégio noturno, foi dormir sossegada, certa de que estava tudo em paz. Antes disso, Larissa passou por ela na cozinha, e foi a última vez que Carmem depositou seus olhos sobre a filha. Nesse ponto a voz de Carmem vacila e as lágrimas caem sem cerimônia. É aqui que a fragilidade dessa mulher forte, parruda, firme em suas palavras, se deixa transparecer.

Uma busca constante

Quarta-feira, 27 de abril de 2011. O tempo de calorão fechou completamente e começou a esfriar. Carmem, supervisora de uma creche com 141 crianças, passou toda a manhã conversando com uma funcionária que estava querendo pedir as contas devido a problemas com a filha. Sugeriu a ela que contratasse uma pessoa para cuidar dos filhos enquanto estivesse no trabalho, afinal, era preciso ganhar o pão. Pensou em ligar para a caçula, inclusive para lembrá-la de pegar uma blusa de frio para ir à escola, mas, na correria da rotina, não ligou. Foi olhar o relógio já era mais de meio-dia, quando a menina já devia estar a caminho do colégio.

Carmem chegou em casa nesse dia junto com um dos ônibus escolares que faziam o transporte das crianças da região. Não viu Larissa nele, mas tudo bem, havia ainda outro. Como a menina às vezes fazia reforço no colégio, saindo às 18h em vez de às 17h, podia ser que ela chegasse mais tarde mesmo. A mãe cochilou e, ao acordar, perguntou a hora para Kevin, que estava por ali jogando no computador. Como resposta, um-nove-três-cinco. O coração de Carmem deu um pulo, afinal, Larissa já tinha que estar em casa.

Mas como a esperança é a última que morre, podia ser que ela tivesse se abrigado da chuva em algum lugar. Carmem pegou o guarda-chuva e saiu atrás da filha, já ligando para a escola do celular. Larissa até tinha um aparelho, mas cerca de dez dias antes ele havia quebrado. Ao questionar à secretária se a filha havia ido à escola, recebeu um ‘não sei’ como resposta. “Minha filha, se vira, pega esse diário de classe, já é de noite e minha filha ainda não chegou! Anota meu número e me liga assim que tiver uma resposta”.

Na rua de cima, nem ônibus, nem ninguém. Passou, então, na casa da amiga cuja filha, Amanda, estudava com Larissa. A menina afirmou: “No ônibus que eu vim, ela não veio, e eu não vi a Larissa hoje, acho que ela não foi pra escola não”. Ligou para as filhas mais velhas para ver se a caçula estava na casa das irmãs, mas nada. Já eram oito horas da noite. Nisso a diretora do colégio ligou avisando que não, de fato Larissa não havia ido pra escola naquele dia. Carmem, então, começou a busca, junto com o pai da menina e as outras filhas, que vieram. O filho arranjou um carro para poderem ir mais longe.

Onze horas, meia-noite, e nada. Já haviam batido na porta de todos os vizinhos e conhecidos do bairro e dos arredores. Chovia e, justo nesse dia, os dois bares ao lado da casa de Carmem não abriram. Fez o boletim de ocorrência às três da manhã e já começou a imprimir várias cópias de uma foto de rosto da filha, escrevendo em cima “criança desaparecida”. ”Eu só me lembro que nesse momento minha vida virou uma busca constante”.

Uma hipótese

Apesar das evidências, Carmem ainda acreditava que a filha havia ido à escola. Mas então ela encontrou a mochila de Larissa debaixo das cobertas e soube que aquilo não era verdade. Também não havia ido ao CCA de manhã, mas meio-dia e pouco ela ainda estava em casa. Isso ela sabia porque a irmã de Carmem, que morava nos fundos do mesmo terreno, tinha precisado falar com a sobrinha para saber se podia ligar o chuveiro (com dois ligados caía toda a luz), e Larissa respondeu que podia. A filha dessa irmã, sobrinha de Carmem, disse que a prima havia prendido o cabelo em um coque usando um lacinho novo que a mãe comprara para ela. Tinha enfeitado a parte da frente dos cabelos com presilhinhas novas também. Usava um brinco de margarida com pedrinhas, bonito, uma blusa azul-claro de manga comprida e o tênis Mary Jane. A única peça que Carmem não sabe precisar era a de baixo, mas imagina que fosse uma calça jeans, que a menina vestia sempre.

“Você já viu uma foto da Larissa?”, me pergunta Carmem a essa altura. Mostra, então, o cartaz feito pela Mães da Sé, desta vez com a descrição da roupa que a menina vestia no dia do desaparecimento, além de outras informações. Alta e magra, “apenas dois dedinhos mais baixa que eu”, falou Carmem, todos diziam que a mãe devia investir na carreira de modelo da filha. E a garota desejava, é claro, ser modelo. Mas Carmem queria que ela estudasse primeiro, para ser alguém na vida.

 Larissa

A própria Carmem havia parado os estudos na sexta série e se culpa por pensar que, se tivesse cursado a escola no tempo certo, poderia ter ficado mais tempo com os filhos. Ela voltou a estudar quando Larissa tinha dois, três anos. Terminou o ensino médio no supletivo e fez técnico de auxiliar de enfermagem – foi como conseguiu a vaga para trabalhar na creche. Carmem tinha combinado com a filha que faria um book dela assim que a menina completasse 15 anos, mas a mãe desconfia que alguém tentou aliciar Larissa antes.

“Pra mim, alguém ligou pra minha casa e a Larissa sumiu praticamente da minha porta. De repente alguém já estava aliciando, estava enganando ela de alguma forma, e ela inocentemente sem me contar porque ‘ah, não conta nada pra sua mãe, a gente vai fazer umas fotos suas, vai fazer isso e aquilo’. E foi dali da frente de casa porque ninguém viu essa menina na rua, nem uma ou outra câmera que tem por ali registrou nada”.

Um ponto de interrogação

Carmem também acredita que Larissa não tinha motivos para fugir de casa, ou para não querer retornar. “Eu acho que se a Larissa não voltou ainda é porque ela não pode, está impossibilitada de alguma forma. Eu nunca fui de brigar com ela, deixava ela viver a infância. Os irmãos faziam os gostos dela, claro, brigavam às vezes, mas normal, briga de irmão”.

Quando questionada se a filha não tinha nenhum namoradinho – situação bastante comum no sumiço de adolescentes –, Carmem explica que a garota não tinha o menor interesse, por exemplo, pelos amigos de Kemilly, que vira e mexe ficavam conversando no portão da casa delas. “Se ela tivesse algum interesse, ia querer ficar por ali. Mas não, ela era super caseira, só começou a ter contato com gente de fora pra fazer trabalho da escola na casa de alguma amiguinha, pegar um caderno emprestado. Se não, ficava em casa brincando com as primas no quintal. Fazia só dois meses que ela tinha menstruado. Até no aniversário dela, em outubro, a gente tinha acabado de dar uma Barbie pra ela, porque uma que ela gostava muito minhas sobrinhas quebraram sem querer”.

Apoio

Foram três meses sem trabalhar, procurando a filha dia e noite, e nem atestado médico Carmem precisou apresentar. “O pessoal da creche deu todo o suporte que eu precisava, até hoje dão. Nunca descontaram salário, nem vale transporte, nem nada”. Depois, do meio até o fim de 2011, ela trabalhou só meio período e com o direito de sair quando precisasse, se surgisse uma denúncia ou entrevista, por exemplo.

Com a ajuda da Mães da Sé, Carmem contou sua história na Globo, SBT, Record, RedeTV!, e recebeu tratamento psicológico e psiquiátrico. Hoje, toma antidepressivos e calmantes, além de fazer uso contínuo de remédio para controlar a pressão. Vai à psiquiatra parceira da entidade uma vez por mês ou mês sim, mês não, dependendo do seu estado. “Outubro e abril são meses críticos, porque é aniversário dela e a data do desaparecimento. São os piores dias da minha vida. Aí eu geralmente sou afastada do trabalho porque não dá, fico muito, muito triste. Sinto uma dor no peito, um vazio imenso, que não dá para lidar”.

Um barco

Mas, no dia a dia, apesar da dor que carrega, Carmem não se deixa abater. “A vida não pode parar porque aconteceu isso. Da mesma forma que não parou para ela. Eu tenho outros filhos, se eu afundar, eles afundam também. Eu penso que é como se a gente tivesse num barco: não é porque a Larissa desceu que a gente vai deixar afundar. Ele vai continuar até ela voltar, porque eu creio nisso, Deus me falou por meio da Sua palavra que ele vai trazer ela de volta pra mim no momento certo”.

Até lá, a vida continua. Nos momentos em que a dor é maior, ela procura não demonstrar para os filhos porque não quer que eles ‘percam sua juventude por causa do que aconteceu’. Mas claro que, quando a família se reúne, por mais felizes que estejam, sempre há aquele momento em que todos choram com a lembrança de Larissa, pensando onde será que ela está. “Eu rezo todos os dias, peço pra Deus proteger minha filha seja lá onde ela estiver, e peço, claro, pra ele trazer ela de volta pra mim, pra nós”.

Como alento, a netinha de Carmem, Cauany, de dois aninhos, está ficando a cara da tia. “É a mesma cor de pele da Larissa, o mesmo rostinho, o cabelinho igualzinho...”, se emociona a avó.



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