Recompensa: 1,4 milhões de libras
Por Giuliano Tonasso Galli - Edição Sumiço - dezembro de 2013

“É terra! Toda a força a ré, todo o leme à boreste”. Nada mais podia ser feito. As palavras do experiente capitão espanhol José Lotina não evitaram que, em 1916, os 150 metros e as 17 mil toneladas do transatlântico Príncipe das Astúrias fossem parar no fundo das águas do mar de Ilhabela, litoral norte de São Paulo – onde permanece até hoje, configurando-se no maior naufrágio da história do Brasil, e resultando na morte de mais de 1200 pessoas.

A tragédia com o Príncipe das Astúrias aconteceu quatro anos depois do naufrágio do Titanic, que matou 1500 pessoas. Talvez pela proximidade das datas, a debacle do navio espanhol não tenha chamado a atenção na mesma proporção que o transatlântico inglês. Mas os dois episódios estão intensamente ligados, principalmente por um período histórico de fixação por grandes embarcações, nem sempre compatíveis com os mares em que navegavam.

Em 1884, Antonio Martinez de Pinillos y Izquierdo – empresário da indústria bélica – fundava, em Barcelona, a armadora Pinillos Y Yzquirdo. Em 1908, a companhia inaugura com os navios gêmeos Cádiz e Barcelona uma linha regular de embarcações de carga e também de passageiros, que uniam a Europa com a costa da América do Sul. A iniciativa foi um sucesso, e a procura da carreira visando principalmente às viagens para o litoral do Brasil aumentou rapidamente. Assim, os estaleiros da Pinillos Y Yzquirdo receberam a encomenda de dois navios de porte médio: o Infanta Isabel e o Príncipe das Astúrias – lançados em 1911 e 1913, respectivamente.

Príncipe das Astúrias

O Príncipe das Astúrias tinha mais de 150 metros de comprimento e 17 mil toneladas. Quando cheio, sua velocidade máxima era de 27 km/h, mas vazio podia atingir os 35 km/h (foto: revista Naufrágios do Brasil)

Os vapores do navio possuíam 150 metros de comprimento, com mais de 16.500 toneladas brutas, impulsionados por máquinas a vapor de quatro motores cada, resultando numa potência total de mais de dois mil cavalos. Completamente carregado, chegava a 27 km/h, mas a média da velocidade durante uma viagem era de 35 km/h. Com duas hélices, o casco era duplo em toda a extensão, com compartimentos estanques e compartimentos de lastro que podiam ser enchidos ou esvaziados facilmente, proporcionando uma estabilidade maior em qualquer situação.

Além de ser um navio potente e moderno, o Príncipe de Astúrias era luxuoso. Havia uma biblioteca para uso exclusivo dos passageiros, em estilo Luís XVI, com estantes de mogno e assentos de couro. A cobertura superior servia como espaço de lazer, com bancos e cadeiras, e nela existiam vidraças coloridas que protegiam do vento. O restaurante era decorado com painéis de carvalho japonês e quadros com molduras de nogueira. Havia também uma cúpula coberta com vitrais coloridos, pela qual se podia desfrutar da luz natural durante o dia. O navio contava com um salão de música que podia ser acessado pelo salão de entrada, onde havia uma grande escadaria com laterais e corrimãos trabalhados em madeira. O chão do salão de entrada era decorado com tapetes persas, que eram usados como pista de dança. Um piano havia sido construído especialmente para ser tocado a bordo.

A neutralidade assumida pela Espanha na Primeira Guerra Mundial permitiu que os dois vapores continuassem a efetuar normalmente a carreira da América do Sul, durante todo o período do conflito. A rota de travessia do Atlântico durava cerca de trinta dias, partindo a cada dia 17 de Barcelona, com escalas em Cádiz e Las Palmas, na Espanha, além de Rio de Janeiro e Santos, no Brasil, Montevidéu, no Uruguai, antes de atingir Buenos Aires – o ponto de chegada.

A primeira viagem do Príncipe das Astúrias foi realizada em 1914, um ano após seu lançamento. Dois anos depois, já na viagem número seis, o transatlântico iniciou sua carreira em Barcelona, seguindo o roteiro de escala em Cádiz. Saiu das Ilhas Canárias e atravessou o Atlântico em direção a Santos. A bordo estavam registrados, oficialmente, entre passageiros e tripulantes, 1278 pessoas. No entanto, existem versões que mais de 800 imigrantes clandestinos espremiam-se nos porões, fugindo da Guerra na Europa, o que tornaria o desastre do naufrágio ainda maior, com um número de vítimas superior até ao do Titanic.

Além das pessoas, era transportada grande quantidade de metais nos compartimentos de carga, como estanho, amianto, cobre, zinco, fios elétricos e vinho português. Muito vinho português. Mas talvez a carga mais importante que o Príncipe das Astúrias levava naquela viagem eram doze estátuas de bronze, que compunham o monumento La Carta Magna y las Cuatro Regiones Argentinas, do Parque Palermo, em Buenos Aires. Juntas, as estátuas tinham um valor aproximado de 40 mil libras-ouro.

O monumento chamado La Carta Magna y las Cuatro Regiones Argentinas, conhecido popularmente como De los españoles, está, atualmente, localizado no cruzamento das avenidas Del Libertador e Sarmiento, em Buenos Aires. Mas sua história é antiga e cheia de eventos curiosos. A decisão de construir o monumento foi tomada em julho de 1908, numa reunião do governo espanhol para comemorar o centenário da revolução, que seria comemorado em 1910, portanto dois anos depois.

Os problemas começaram logo depois da aprovação do projeto. Os desenhos da construção estavam sendo feitos pelo renomado escultor catalão Agustín Querol, que não conseguiu ir além dos esboços, pois faleceu em 1909. Então, os planos do monumento passaram a ser executados por outros artistas, já com o prazo para a inauguração vencendo. Sem sucesso, as comemorações do centenário, em 1910, viram apenas a inauguração da pedra fundamental do monumento, que agora tinha previsão de ser inaugurado dois anos depois. Mas no ano seguinte, um dos principais artistas que completava a obra, Cipriano Folgueras, também faleceu.

Em 1916, quando parte do mármore e as estátuas finalmente estavam a caminho, naufragam no Príncipe das Astúrias. Em 1917, são encomendadas as réplicas de tudo o que se perdeu no naufrágio. Esse material só foi enviado em 1919 e, ao chegar a Argentina, encontrou diversos problemas burocráticos para sua liberação. Essa liberação, acredite, levou cerca de três anos e, quando as caixas foram abertas, diversas estátuas estavam danificadas, e algumas nem tinham condição de serem usadas. Apenas em 1926, quando os trabalhos estavam bem avançados, sua inauguração foi finalmente agendada para o dia 12 de outubro. Mas para essa data, a prefeitura de Buenos Aires não conseguiu terminar o jardim circundante, que deveria ter um jogo de luzes e algumas fontes de água. Novo adiamento. Finalmente, em 25 de maio de 1927, dezessete anos depois do previsto, o monumento é inaugurado, certamente bem diferente do que havia sido planejado.

Voltando ao Príncipe das Astúrias, Na manhã do dia 6 de março de 1916, um domingo de Carnaval, chovia forte e a cerração tornava a visibilidade quase zero. Soprava um forte vento a leste, e o mar estava muito agitado, com grandes vagas que chacoalhavam o navio. Já na madrugada de segunda-feira, a chuva ainda caia forte e a cerração continuava a anular quase toda a visão. Ao se aproximar da Ilha de São Sebastião, em Ilhabela, o capitão, José Lotina ordenou diminuição da marcha e mudança do curso em direção ao alto-mar.

José Sánchez Lotina era, naquela oportunidade, o terceiro capitão com mais horas de navegação em toda a marinha espanhola. Aos 57 anos de idade, já acumulava mais de quinze mil horas em alto mar.

Às quatro horas e vinte minutos da madrugada de segunda-feira, a maioria dos passageiros que estavam a bordo do vapor já dormia. No luxuoso salão de festas do navio, no entanto, a orquestra ainda tocava animadas marchinhas de carnaval. De repente, um relâmpago iluminou a noite escura e revelou quão próximo dos rochedos da Ponta da Pirabura estava o transatlântico. Segundo o segundo piloto, no imediato momento em que o relâmpago evidenciou a proximidade com as rochas, o comandante Lotina gritou: "É terra!", e jogando-se sobre o telégrafo de máquinas comandou: "Toda força a ré, todo o leme à boreste". Não havia tempo para o cumprimento das ordens e o choque era inevitável.

O navio bateu violentamente na laje submersa da Ponta da Pirabura, abrindo uma enorme fenda de 44 metros no casco. Segundo o relato de alguns sobreviventes, com a entrada de água na sala de máquinas, duas das caldeiras explodiram, o que provocou o rápido naufrágio. O Principe de Astúrias desapareceu em menos de cinco minutos, levando consigo cerca de 1200 almas. Muitos homens, mulheres e crianças ainda foram lançados ao mar, na escuridão da madrugada. Outros foram arremessados pela violência das ondas contra o íngreme costão da Ponta da Pirabura. Com destino não menos cruel, alguns pereceram presos no interior do navio, que submergiu rápida e completamente devido a grande profundidade do local. Oficiais do navio relataram que, estáticos e chocados na ponte de comando, o Capitão José Lotina e seu primeiro oficial imediato, Antônio Salazar Liñas, decidiram por fim às suas vidas, dando um tiro na cabeça. Os corpos dos dois oficiais nunca foram encontrados.

Muitos corpos acabaram chegando às praias da Ilha de São Sebastião, e as histórias de horror, heroísmo e roubo dos cadáveres pulula o imaginário da Ilha. Trazidos pela maré e aparecendo nas praias, os cadáveres protagonizaram uma das passagens mais dantescas desta história. Muitos caiçaras, pescadores locais, percebendo a riqueza que acompanhava os passageiros mortos, começaram a saquear os corpos ali mesmo na areia da praia. Dedos, com anéis e joias, foram cortados. Corpos foram mutilados, desenterrados, lavados, e enterrados novamente.

Alguns sobreviventes se agarravam a fardos de cortiça para permanecer na superfície. O navio inglês Veja, enviado após o acidente, recolheu muito dos sobreviventes e também alguns cadáveres. Mas a grande maioria dos corpos foi parar na baía de Castelhanos, em Ilhabela, e na Praia Grande, em Ubatuba. O lugar, ainda hoje abandonado, apresentava tantas dificuldades de acesso que os corpos foram enterrados na própria praia.

Baía de Castelhanos

Um dos inúmeros cenários de beleza e riqueza natural existentes no litoral norte de São Paulo, a Baía de Castelhanos ficou repleta de cadáveres e destroços do navio logo após o acidente. A região ainda foi cenário da ação de piratas que saquearam as jóias dos corpos que boiavam nas águas (foto: Guia Quatro Rodas)

Em 1989 foi autorizada a salvatagem – muitas partes dos destroços foram dinamitadas e retiradas. Louças, talheres, garrafas e apetrechos de marinharia foram recuperados juntamente com parte da carga de metais. Para realizar esse resgate, foi instalado um teleférico de carga, por onde era retirado o material salvatado. Parte das estruturas de sustentação deste sistema ainda podem ser vistas junto à Ponta da Pirabura, no costão acima dos destroços. Um ano depois, em 1990, duas estátuas do monumento De los españoles foram recolhidas. Uma delas, inclusive, está, até hoje, em frente ao Serviço de Documentação Geral da Marinha, na Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro.

Estátua na marinha do Rio de Janeiro

Uma das estátuas de bronze que fariam parte do monumento De los españoles, em Buenos Aires, nunca chegou ao local. Anos depois, foi resgatada pelo mergulhador Jeannis Platon, e hoje está em frente a um prédio da Marinha do Rio de Janeiro (foto: acervo pessoal de Jeannis Platon)

Atualmente, o navio está praticamente paralelo ao costão, com sua proa voltada para leste e a popa para oeste. Como foi muito dinamitado, encontra-se desmantelado. Meia-nau e quase que a totalidade da popa estão apoiadas na areia, e as caldeiras estão completamente soltas, caídas no fundo do mar. Na faixa dos trinta metros, está depositado o grande eixo, que em alguns pontos mostra as flanges abertas, o que poderia evidenciar que o navio colidiu com o fundo ainda com as hélices funcionando. As hélices foram retiradas numa das diversas operações de resgate.

Esse cenário se tornou um dos destinos preferidos para mergulhadores e, principalmente, para piratas, interessados nas cargas transportadas pelo Príncipe das Astúrias. Além dos relatos da época, algumas evidências encontradas posteriormente confirmam que onze toneladas de ouro podem ainda estar lá, soldado e escondido na superestrutura do navio. Se confirmada, a quantidade representa 1,4 milhões de libras, que estariam no fundo do mar brasileiro, completamente a esmo.

Ex-mergulhador da Marinha de Guerra, Jeannis Platon, de 62 anos, foi um dos que mais exploraram o "Titanic brasileiro". Grego naturalizado brasileiro, ele dirige a ONG Fundação Mar, que desenvolve projetos, dá cursos de mergulho e reúne mais de quinhentas peças de naufrágios retiradas por ele e amigos, e cerca de mil compradas de caiçaras e desmanches de navios. O acervo está na sede da entidade, em São Sebastião, e no Museu dos Naufrágios, aberto em 2010, em Ilhabela.

De 1981 a 1991, Platon fez expedições autorizadas ao local de naufrágio do Astúrias. Nas mais de mil viagens a bordo do caça-minas Hipocampo, ele retirou objetos que vão de baixelas a uma das estátuas de bronze do monumento De los españoles. Segundo ele, todo o material foi apresentado à Marinha, que definiu o que queria e do que abriria mão. O mergulhador, que se aposentou da atividade e divide o tempo entre a ONG e sua loja de souvenires, ainda sonha em voltar a explorar o Astúrias e buscar as outras estátuas. Para isso, diz ter feito um projeto de pesquisa para o qual aguarda autorização. Ele afirma conhecer a localização das peças e diz que as venderia, caso consiga a autorização. "Se você gasta dinheiro para encontrar, tem de ser ressarcido", ressalta.

Para Platon, o Príncipe de Asturias é um dos mais difíceis mergulhos do Brasil, pois existem vários fatores complicadores presentes. Além de terem que dominar várias técnicas de mergulho em naufrágio, o mar frequentemente agitado e a longa navegação até atingir à parte externa de Ilhabela já cobram seu preço na disposição dos mergulhadores.

Paulo Dias Fonseca, de 63 anos, é outro mergulhador que, em diversas oportunidades, se aventurou nos escombros do Príncipe das Astúrias. Instrutor de mergulho há mais de trinta anos, participa também do grupo Wreckfinder – que pesquisa e estuda naufrágios na costa brasileira.

Fonseca relata suas experiências com o transatlântico com um quê de mistério. “Sempre que tentei chegar até o navio, algo de errado e completamente imponderável acontecia, e nos obrigava a cancelar tudo. Foram mais de dez tentativas frustradas”, conta.

O mergulhador diz conhecer várias histórias fantasmagóricas sobre o navio, como vozes que se ouvem embaixo do mar, sensação de estar sendo segurado por alguém, deslocamentos de ambientes repentinamente, barulhos inexplicáveis e impressão de estar sendo seguido o tempo todo. “Na primeira vez que desci, tudo foi tranquilo até os vinte metros. A partir daí, a visibilidade caiu para zero, a correnteza ficou mais forte, a densidade da água mudou e fui atacado por milhares de camarões minúsculos. Vozes eu não ouvi, mas ouvi um ‘pen pen’ incessante, como um martelo batendo em uma bigorna. Quando resolvi subir, senti minha nadadeira presa em alguma coisa, como se alguém tivesse me segurando e impedindo meus movimentos”.

Apenas parte da história do fundo do mar do Brasil foi decifrada. Dos prováveis onze mil naufrágios, pouco mais de mil foram catalogados nos arquivos da Marinha. Desses, no máximo seiscentos foram efetivamente descobertos. Um dos problemas é a escassez de documentação, principalmente das embarcações mais antigas. O Príncipe das Astúrias e a vasta documentação existente sobre ele é uma exceção. Ainda assim, o naufrágio do navio de 150 metros e 17 mil toneladas é cercado por muito mistério e relatos que flertam com o sobrenatural. E boa parte de sua carga, inclusive as onze toneladas de ouro, avaliadas em 1,4 milhões de libras, continua desaparecida.



Nesta Edição
Anteriores
Home | Expediente