A saúde falha. A identidade some
Por Daniela Bernardi - Edição Sumiço - dezembro de 2013

Imagem distorcida

Alô. Vamos marcar um almoço para você me contar a sua história?

Desculpe-me. Mas eu ainda não consigo comer na frente das pessoas.

Encontrei Tuila (nome fictício escolhido por ela que significa “pequena árvore”) em uma padaria do bairro de Pinheiros, em São Paulo. Um local onde diversos doces confeitados e salgados recheados eram expostos na vitrine. “Se você me disser para escolher um doce – e se eu me permitisse escolher um para comer – não conseguiria decidir, porque tenho vontade de comer todos. Eu não como nenhum. Mas tenho vontade de comer todos”.

Tuila sofre de anorexia há 20 anos. Ela já chegou a pesar 26 quilos, passou por duas internações psiquiátricas e outras dezenas de internações clínicas. Essa doença, que atinge cerca de 1% da população mundial, no grego significa “falta de apetite”, mas na realidade, ela representa uma luta intensa e constante entre a vontade de comer e o desejo de anular cada “excesso” de gordura (ou mesmo de pele e de osso) do próprio corpo.

E olhando para mim? O que você pensa? – pergunto.

Você é bonita. Você não é gorda nem magra. Eu olho para você e acho que você está ótima. Agora, se eu me imaginar no seu corpo, eu vou querer arrancar pedaços. Porque é matéria. Matéria no corpo incomoda, entendeu? Não é porque tem alguma coisa de errado em você, mas porque tem alguma coisa de errado comigo. Não sou capaz de manter o corpo saudável.

 A clareza que Tuila tem em relação à doença contrasta com o seu corpo miúdo e, aparentemente, frágil. Fazia um friozinho nessa tarde. Eu estava com um casaco leve. Ela teve que vestir dois pesados. “Se para você está fresco, eu vou sentir muito frio”, explica. Não é simples para ela. Não é questão de ela entender que a doença mata. Não é preciso que ela perceba que alguns gramas a menos irão desencadear a perda de outros centenas. A doença não está somente no psíco, mas nas reações químicas do próprio cérebro e nos genes herdados. “Houve fases que eu preferia morrer. O meu corpo me dava tanta aflição que eu preferia me jogar na frente de um ônibus”.

Tudo começou com uma vontade de seguir uma dieta saudável, aos 19 anos. E, de repente, o desejo compulsivo de emagrecer foi desencadeado e nunca mais parou. A sensação de que o corpo está em excesso é muito forte e gera angústia. O alívio só vem com o emagrecimento. Só que nunca tem fim. Você emagrece um quilo. Alívio. A angústia volta. Mais quinhentos gramas. Paz. Angústia. Mais cem. E nunca para.

Um estudo do periódico International Journal of Eating Disorders mostrou que a concordância para anorexia nervosa em gêmeos bivitelinos era de 5%, enquanto que para gêmeos monozigóticos foi de 56%. Quase ninguém conhece essa informação, mas pessoas anoréxicas têm pré-disposição genética a ter a doença, basta conhecer a sensação de emagrecer uma vez para... PUM! Liberar reações químicas que farão com que ela siga emagrecendo até morrer.

Tulia era estudante de arquitetura da USP e levava uma vida normal até que entrou em uma dieta e nunca mais saiu dela. “Foi ficando cada vez mais radical e quando vi, não estava mais nem aí pra saúde. Não estava nem aí para a questão da estética, só queria emagrecer. Sempre”. Os amigos e familiares alertavam que ela estava ficando horrível, mas em uma época em que pouco se falava sobre anorexia, o diagnóstico demorou para ser descoberto. Quando a psiquiatra disse que Tuila estava com anorexia, ela não pôde acreditar. “Mas eu gosto de comer.”, pensava. Ela já estava viciada na sensação de emagrecer. Tuila já dependia disso. Ela precisava emagrecer constantemente.

Diversos tratamentos foram colocados em prática; até água com gás para abrir o estômago. Mas fome não era o problema. No final da década de 90, Tuila foi internada pela primeira vez. Um trauma. Ela diz que tudo foi muito invasivo. Muito duro. Muito seco. Presa a uma cadeira de rodas – para não queimar nenhuma caloria – ela tinha que comer sem questionar e era pesada “que nem um porco”. No Ambulim (Ambulatório de Bulimia e Transtornos do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas), o objetivo é salvar a vida do paciente, mas não a cabeça. Tuila tinha que comer. Tinha que engordar. Recuperar o seu Índice de Massa Corpórea (que deve ser acima de 18). Mas a cabeça continuava pressionando-a para não comer.

De um lado havia a pressão da doença, que pedia para que nem mais um grama fosse colocado para dentro. É preciso perder massa. Do outro, médicos diziam que ela tinha que comer e ponto final. Tuila conheceu muitas pessoas que se mataram por não aguentarem esse combate entre os dois lados. E a salvação para essas vidas ainda não foi encontrada. Somente, 40% dos anoréxicos se recuperam completamente, 35% melhoram bastante, mas continuam com alguma característica da doença, 20% sofrem de doença crônica e severa e 5% morrem. (Dados da Delboni Auriemo Medicina Diagnóstica / Dasa).

Quando Tuila não ganhava peso, ela era punida, chantageada e humilhada. Tratada como criminosa por ocupar e “desperdiçar” uma vaga do Ambulim, ela tinha as visitas cortadas e era proibida de pintar seus quadros. Qualquer movimento a levaria ao gasto calórico. E isso é proibido. O tratamento só agia na consequência da doença: a perda de peso. A cabeça de Tuila e as das outras pacientes seguiam iguais. Algumas preferiam se alimentar para se ver livre do hospital. Ao fazer isso, elas escolhem a depressão e o constante ódio de si mesma. Comer engorda. Engodar faz mal a elas. Após meio ano internada, Tuila recebe alta.

Acompanhada de perto pelos médicos, logo ela tem uma recaída e volta a ser internada. A segunda vez foi diferente. Ela já conhecia o tratamento. O esquema. “Só pensava que precisava sair daquela prisão para emagrecer de novo”. Haviam-na enfiado em um corpo que não era dela. O tratamento funciona em etapas: conforme você vai ganhando peso, você pode tomar sol no pátio. Pode sair da cadeira de rodas. Pode tomar banho à tarde. Seus pais, vendo que aquilo fazia mal para a filha, tiraram-na de lá. Os médicos alertaram: no próximo domingo, ela não estará mais viva.

Tuila piorava cada vez mais, até que foi encaminhada para UTI. O intestino ficou tão fino que se rompeu. Foram diversas cirurgias. Muitas pacientes acabam morrendo justamente por conta do comprometimento dos órgãos. Segundo Jon Acelus, da Universidade de Leicester, na Inglaterra, a cada mil pacientes com anorexia, 5.1 morrem a cada ano. Os ossos também enfraqueceram, pois substituíram o cálcio que não havia mais no sangue. Tuila não perdeu apenas a saúde. O rumo de sua vida foi totalmente alterado. Sua personalidade sumiu. “Perdi as condições de trabalhar, de estudar, de namorar, de viver...”

Hoje, Tuila não sabe o seu peso. O trauma das internações a afastou de uma vez por todas da balança. Ela tampouco deixa que os médicos a pesem. “Consigo ver pelo rosto deles se estão felizes ou decepcionados com o resultado”. Amigos que não conseguem disfarçar a expressão também foram afastados do convívio. “Minha mãe sempre diz que comigo é preciso fazer cara de paisagem”, explica. Um simples olhar pode mostrar se ela emagreceu ou engordou. Quando há um sorrisinho, Tuila se enche de raiva, pois sabe que engordou. “Eu tinha que me sentir feliz. Mas é uma cabeça doente”. E quando há um olhar desesperado, por dentro ela comemora: “Que delícia! Emagreci! Que bom”.

O Prozac (remédio para depressão) ajuda Tuila a ter uma certa estabilidade. Ele não a cura. Ele não tira o desejo de anular o próprio corpo. Mas a ajuda a aceitá-lo. E a ajuda das drogas se limita a isso. Ainda não há medicamento que regule a conexão dos neurotransmissores responsáveis pela anorexia. Se por um lado essa indústria farmacêutica não vê interesse em produzir um remédio para essa “pequena” parcela da população (no Brasil, ainda nem há uma organização que atenda pessoas anoréxicas), por outro, a indústria do emagrecimento não para de crescer. E não para de influenciar jovens a buscar – até a morte – o corpo magro (e esquelético). Talvez, muitas meninas que têm a tendência (a pré-disposição genética) a desencadear anorexia não tentariam um regime se a sociedade aceitasse as mulheres acima do peso. Não desencadeariam a doença.

Tuila trabalha com o terceiro setor (com projetos ambientais e sociais) para se sentir menos egoísta. Menos culpada. É difícil. “Eu poderia estar tranquila, folgada na vida, trabalhando... Mas essa doença me acompanha todos os dias”. Ela mesma diz que é egoísmo estar sempre pensando em emagrecer. “Se você perguntar se eu quero acabar com a miséria do mundo ou emagrecer... Responderia que eu quero emagrecer”. Loteria ou emagrecer? Emagrecer. Perder uma perna ou emagrecer? Hum... Já houve épocas em que Tuila sentiu inveja de um aleijado. “Pelo menos ele não tem aquela perna, aquela carne. Uma coisa a menos”.

O apoio de amigos e familiares foi fundamental para que Tuila não se penasse tanto. As pessoas brigavam com ela. Davam bronca. Mas acabaram entendendo. Entenderam que a anorexia é uma doença mais forte do que a consciência do paciente. Entenderam que sem apoio, o caminho fica mais difícil. Entenderam que a culpa só resulta em um fim mais breve. Entenderam que por mais sofrido que seja ver Tuila sumindo, com certeza é ainda mais sofrido para ela. É ininterrupto.

Lembrança que já foi

Em Santos, a casa está cheia de convidados. O almoço está servido. Arroz, farofa, maionese, bobó de camarão, massa e carne. As pessoas riem, conversam e se divertem. Mas antes da refeição começar, todos fizeram questão de ir à sala de televisão próxima à cozinha para cumprimentar dona Dacília, de 87 anos. Ela está no sofá assistindo à missa na televisão. Quietinha. Sem falar. Sorrindo. A família tira uma foto ao lado dela. Ela pouco interage. Não fala nada. Mas o brilho no olhar e o discreto sorriso no rosto são o suficiente para todos se lembrarem da grande mulher que um dia ela foi.

Dona Dacília sempre foi uma mulher moderna. A segunda a ter uma carteira de motorista na cidade portuária paulista. Depois de ver seus filhos na faculdade, decidiu também ser universitária: estudou direito, formou-se e trabalhou em um escritório quando já tinha 60 anos. Inteligente, ativa e bem-informada, dona Dacília lia dois jornais todos os dias. “As pessoas ligavam para a casa para saber o endereço dos lugares. Ela era a lista telefônica de Santos. Sabia tudo de cor”, relembra o genro Luiz Eduardo.

Hoje, dona Dacília não lê. Não escreve. Sua personalidade foi embora junto com o Alzheimer, doença que começou há nove anos. Viúva desde 1995, ela se mudou para a casa da filha, onde levava uma vida independente: igreja, banco, mercadinho. Alguns anos depois, os primeiros sinais apareceram: histórias eram contadas repetitivamente como se fossem inéditas. O genro médico logo desconfiou e levou-a a um especialista. O diagnóstico era certo: início de Alzheimer.

Sem revolta. Sem questionamento. O sonho de nunca ficar demente foi corrompido por uma doença degenerativa que atinge um pouco mais de 1 milhão de brasileiros. Ela nunca soube do seu próprio diagnóstico, mas não se recusou a tomar os remédios prescritos. Durante dois anos, as confusões se limitaram às histórias repetidas. Dona Dacília continuava a sair sozinha. Continuava dirigindo. Continuava sendo a mesma mulher ativa e independente de sempre.

As preocupações aumentaram quando o controle do dinheiro ficou desordenado. Pessoas se aproveitaram: ela ia dar dinheiro para a igreja e acabava dando 2 mil reais. Fechar a conta do banco? Não. Essa foi uma atitude que a filha Maria Inês logo viu que não seria a solução. “Ir contra a realidade da pessoa doente só causa mais agitação”. Com paciência e amor, a família conseguiu contornar cada situação complicada. Quando dona Dacília tirava dinheiro do banco, Maria Inês pegava grande parte da quantia e depositava novamente na conta da mãe. Sem que ela soubesse. Sem revolta. Sem conflito.

Muitas vezes, dona Dacília dizia que precisava visitar a mãe (morta há muitos anos). “Ela me ligou. Preciso ir lá”. Maria Inês pegava o carro. Elas percorriam porto. A praia. Faziam um passeio de 15 minutos enquanto conversavam. Voltavam para a casa. E dona Dacília já esquecia. Ela nunca entrou em desespero. Nunca soube – novamente – que sua mãe estava morta. “Eu até me sentia mal por estar mentindo para a minha mãe”, diz Maria. No final, ela percebeu que todas aquelas mentiras foram ótimas. Dona Dacília não se magoou. Não se revoltava.

Eu tenho que ir para a casa porque não avisei à minha mãe que dormiria aqui – dizia dona Dacília.

Fique tranquila, já telefonei para ela e avisei – contornava Maria.

Preciso ir à igreja.

Está chovendo muito forte lá fora. Um frio tremendo. A rua, inclusive, encheu de água.

A imaginação para criar desculpas era infinita. Certa vez, dona Dacília sumiu de casa. Ninguém sabia onde ela havia ido. Entrou em um taxi e partiu. O desespero tomou conta da família. Após algumas horas, ela voltou. Solução: “Mamãe, vamos ter apenas uma chave em casa, porque o portão está travando. Vamos deixá-la aqui em cima da mesinha da sala”. A oportunidade de poder ter dona Dacília por perto fez toda a diferença na evolução da doença. O carro ela só parou de dirigir quando – “por coisa do divino” – ele foi roubado em frente à casa. Desta vez, não foi preciso mentir.

Mas tudo mudou em 2010, quando dona Dacília caiu no banheiro, trincou a bacia e quebrou o braço. Depois de seis anos convivendo com a doença, dona Dacília foi vencida. Ela foi ficando cada vez mais quieta. Andava menos. Falava menos. Cuidadoras foram contratadas para ajudá-la. Aos poucos, ela deixou de ler, de passear e de conversar. A mulher ativa e inteligente foi camuflada por um sorriso em um corpo limitado. Mas ainda hoje, mesmo que bem discretamente, é possível ser privilegiado com alguns flashes da antiga Dona Dacília.

Mãe, você sabe de quem é aniversário, hoje?

Não sei.

Pense bem que você vai lembrar. Hoje é dia 17 de setembro.

Xiuuuu! Hoje é o meu aniversário. (sorriso)

Dona Dacília ainda reconhece os filhos, o genro e o neto. Até a foto do marido ela não esqueceu. “Esse é o meu Raul”, diz ela enquanto manda um beijo. Católica desde sempre, ela continua rezando toda semana. Uma moça a visita para rezar a missa do domingo. A família de Santos não é a mesma de dez anos atrás; a paciência mudou, o modo de ver a vida mudou. É como se dona Dacília estivesse em um navio, no porto de Santos, despedindo-se aos poucos. “Aquela minha mãe não existe mais. Não é ela que está aqui”, diz Maria.

“Eu descobri que não podia olhar de longe a minha mãe, porque eu ia ficar lembrando e querendo aquela minha mãe maravilhosa que eu tive. Ela não está mais aqui. Por isso, Maria está sempre olhando de perto; fazendo a comida favorita de dona Dacília, comprando os remédios necessários, e todo dia, sorrindo, beijando e conversando com a mãe; mesmo que a resposta nem sempre seja a que esperamos e desejamos. “Não abro mão de ver que minha mãe está limpinha, saciada, com os dentes escovados... Sei que ela é feliz pelo sorriso dela”. Sorrisos e beijinhos. Do porto de Santos, a meiguice de Dona Dacília ainda não partiu.



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