Assuntos cadavéricos (ou Como sumir com um corpo)
Histórias de um homem que conversa com defuntos
Por Beatriz Montesanti - Edição Sumiço - dezembro de 2013

Ela está sozinha em casa. Ele toca a campainha. Entra, sentam, conversam.  Servem bebidas. Ele avança, ela não quer, ele insiste. Brusco movimento, rápida reação: uma garrafada contra a cabeça e ela cai, respirando com dificuldades. Ele passa um cordão no pescoço e aperta, mas ainda pode ouvir sua respiração sufocada. O ar passa pelo furo recém- aberto na traqueia com um torniquete. Ele já não pode ir embora, precisa terminar o que começou... Com uma seringa, injeta ar por uma veia e mata. Um corpo esgoelado, perfurado, morto é deixado para trás.

Não há testemunhas. Não há mais ninguém além de morto e assassino. Na ausência de um suspeito, é com o corpo que Massini conversa para narrar este caso.  “O cadáver me contou tudo. Tinha uma lesão na testa que foi a primeira pancada. Tinha um dente solto. Tinha um furo na veia e espaços de ar, que não deixaram o sangue circular”. O cadáver conta tudo. Nelson Massini é amigo da morte.

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A história é repetida ano a ano aos alunos da faculdade de direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. O professor é um dos maiores médicos legistas do Brasil, uma vez capa do New York Times quando da exumação do corpo do médico nazista Josef Mengel, para citar apenas o maior dos blockbusters de páginas criminais que adornam seu currículo. Hoje, como professor, ensina aos alunos o outro lado da investigação criminal: a interpretação do laudo.

Tudo começou em São Paulo. A família era de imigrantes italianos, desses antigos artesãos que vieram para cá. Alguns ficaram ricos, outros não tiveram tamanha conveniência. O máximo da satisfação para as famílias de então era ter um filho na faculdade, e a geração de Massini levou o diploma para casa. Ele virou o primeiro médico da família, um pouco por pressão, um pouco sem querer. “Todos queriam que eu fosse médico. Eu fiquei com isso na cabeça, mas minha paixão era direito. Eu vibrava quando olhava uma plaquinha de advogado”, conta.

Nem uma coisa, nem outra. Seguindo dois amigos, Massini foi primeiro para Piracicaba cursar odontologia. À noite, enquanto os gatos jogavam baralho, decidiu estudar as leis. Em cinco anos somou dois diplomas e assim que se formou foi contratado pela Unicamp para lecionar na Faculdade de Medicina, o que o levou a prestar de novo o vestibular: “Deixei minha mão feliz. Ela queria que eu fosse médico, e eu sou”, lembra com um pouco de caso e um pouco de orgulho. O jovem Massini acompanhava as aulas do chefe da disciplina de medicina legal. Ao final de um ano lecionando de graça, o professor decidiu contratá-lo por vinte horas semanais. “Comecei a dar aula e nunca mais parei”. Massini ficou vinte anos na Unicamp. E ali se tornou amigo da morte.

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Rio de Janeiro. Um homem caminha pelos trilhos outrora frequentados pelo veículo ferroviário. Um homem caminha pelos trilhos com uma granada no pescoço. Passa o trem. O homem morre.

No laudo realizado pelo IML registrou-se: acidente de trânsito. Massini entrou em ação: voltou-se aos livros.  Não há referências a granadas na literatura nacional. Procurou na americana e encontrou volumes de páginas e páginas sobre explosões, de todos os tipos e efeitos. Fez a análise mostrando que a morte deveu-se à explosão da granada, e o processo foi arquivado. “O IML fica sempre na rotina da fachadinha, tirinho, e quando chega um caso diferente, ninguém consegue resolver”, dispara.

Foi um dos motivos pelos quais desistiu logo de trabalhar no Instituto Médico Legal de Brasília, onde ficou de 93 a 97.

 

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Um terreno baldio em Vitória. Mato, entulho e dois meninos mortos. Os tiros fatais podem ter sido dados em qualquer lugar no mundo. Mas definitivamente não no terreno baldio.

A polícia científica é um conjunto de três instâncias: o Instituto Médico Legal, o Instituto de Criminalística e o Instituto de Identificação. Ela é subordinada diretamente à Secretaria de Segurança Pública e tem o objetivo de produzir provas técnicas a partir da perícia, ou seja, da análise científica de vestígios deixados na cena de um crime. Incluindo, claro, um corpo.

Os médicos legistas do IML são justamente os responsáveis por esses corpos – ainda que  poucos saibam que ali no Instituto também se realizem exames de lesões corporais, de constatação de embriaguez ou intoxicação por substância de qualquer natureza, de violência sexual, sanidade mental, doença sexualmente transmissível e qualquer outro assunto pericial que possa interessar à Justiça. Em resumo, uma pessoa pode parar no IML muito antes do que imagina, por diversos motivos. Inclusive morte.

A esses profissionais públicos cabe a “rotina da facadinha e do tirinho” que Massini levou por mais ou menos cinco anos e logo abandonou. “Ficar dia e noite fazendo isso é interessante pela experiência, mas também fica repetitivo. Eu queria tentar por um tempo. Mas legal é ver uma vez só”, resume.

Em 1997 Massini voltou à universidade, desta vez no Rio, onde passou a dar aula de Medicina Legal aos alunos de direito. Sua praia. Como acadêmico, pode trabalhar esporadicamente em casos especiais, se assim for a vontade do juiz. Ele mesmo explica: “O juiz tem a liberdade da prova. Para chegar a ela, pode nomear quem ele quiser de acordo com o que acha melhor para o processo”.

De preferencia, o trabalho de perícia é designado ao Instituto, mas não é incomum que a justiça recorra à universidade para a resolução de um caso, seja porque a polícia se encontra fragilizada, seja por defasagem técnica ou até mesmo pela importância e repercussão do caso em questão. “O interesse do juiz é a busca da verdade. Onde tiver mais gente capacitada, mais técnica, mais experiência, ele vai atrás”, esclarece o médico. “Eu fiquei para atender o que a rotina não consegue dar conta”.

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Massini recolheu o sapatinho dos meninos jogados no terreno baldio em Vitória. Levou para um professor da universidade, que era especialista em solos. A terra encontrada debaixo dos sapatos foi submetida a um equipamento moderno, que revelou alto teor de alumínio. “É normal?”, perguntou o médico legista. “Não. Tá muito acima do normal”, respondeu o outro catedrático. A pista os levou até uma fábrica de panelas, nas redondezas do terreno. No desdobrar do caso, a polícia chegou à conclusão de que os meninos haviam sido mortos lá dentro, após pularem a cerca para roubar alguma coisa. O vigia noturno os viu, atirou e tentou se livrar dos corpos. “Eu só encontrei a fábrica de panelas porque pude fazer uma análise do solo com um especialista do assunto. Lá no IML tem isso? Não tem”.

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Eis um problema universal: “Errei. E agora?”. Quebrou, tem que concertar.  Sujou, tem que limpar. Matou, tem que sumir com o corpo. Ou com as evidências. Ou do radar policial.

“Matou? Vai fazer o que agora? Ir embora. Essa é a reação normal da pessoa, né. Estranho seria ele ficar lá com o cadáver. Não tem um assaltante que assalta e depois fica batendo papo com o cara”, reflete o especialista.

 

Porém sumir não é uma tarefa tão simples. Sequer real. Quando vivo, sempre se está em algum lugar. Quando morto, serão anos de decomposição debaixo da terra até que a caixa vire adubo, a carne sirva aos vermes e os ossos... os ossos sempre serão um autóptico inconveniente.

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São Paulo. Jardim Europa. Rua Cuba. E o resto da história já é bem conhecida.

Quer dizer, parcialmente. Massini falou com os mortos, mas desta vez não foi o suficiente. O Caso da Rua Cuba saiu das sangrentas páginas criminais para entrar para a história da frustração investigativa. Se todo o perito tem a sua, eis a do protagonista deste texto.

“Todas as evidências, tudo, me davam a impressão de que era um crime tão bobo, tão fácil de ser resolvido. Todas as provas indicavam a participação do filho, o que não se conseguiu comprovar e ele foi absolvido”, desabafa.

O culpado pelos assassinatos na Rua Cuba não tentou sumir com o corpo, mas com as evidências. Ao alterar a cena de um crime, se altera toda a lógica de reconstituição. Um projétil a mais, uma escada no lugar errado, um quadro fora da parede e pronto. “De onde veio esse projetilzinho?”. Altera-se a cena não para sumir com o corpo, mas com o culpado.

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Nem todo emprego é o emprego dos sonhos. Dentro da medicina também é assim. Tem gente que não gosta de lidar com crianças, tem gente que não gosta de doenças de pele e tem gente, muita gente, que não se sente atraído pela exumação de restos mortais.

A medicina legal tem essa desvantagem. E é sem dúvida uma das áreas mais rejeitadas. Não basta mourejar sobre a carne dada aos vermes, este “operário das ruínas”. Deve-se fazê-lo por amor, porque por dinheiro você não será recompensado. Assim como os vermes não o são.

Um médico legista é assalariado pelo poder público. “Se eu sou legista eu tenho salario, mas se eu não sou, pior ainda, nem salario tenho. Só tenho a vontade”, explica Massini. “Quando eu trabalho para a polícia, ou para o ministério publico, é sempre de graça. Eu não ganho nada para fazer isso. Porque eles não têm dinheiro pra pagar”.

Pois, o que o leva a necrófagas batalhas?

“Eu não escolho caso. Se for uma causa de interesse público, eu aceito, não tenho problema nenhum. Eu sempre que posso ajudo”, justifica-se. Para Massini, cada caso é um caso: propõe um desafio, exige uma pesquisa e uma conversa funérea, pouco semelhante a uma invocação espírita psicográfica. “Sempre me entusiasmo. Todos os casos me empolgam”, reafirma.

 

Há uma coisa, no entanto, que aparentemente não se altera em cada desafio que lhe aparece: a mentalidade humana.

 

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Segundo Massini, seu trabalho lida “com coisas concretas”. Para ele, é fácil deduzir o comportamento que levou a determinadas evidências: isso se repete a cada crime cometido de forma espontânea.

 

 “Eu não trabalho com coisas planejadas. Criminosos que estudam a aviação pra depois concentrar num avião, pra depois atacar uma torre qualquer. Eu trabalho com reação rápida e objetiva. Trabalho com a influência de hormônios e de alguma patologia”, explica. Ou seja, as reações normais. Ou quase.

 

“Não tem muita dificuldade. Eu vou construindo a historia, emendando os pedaços. Hoje, pela experiência, tenho essa facilidade, porque as cosias vão se repetindo. Já criei desconfiança, duvidas, já sei onde procuro as coisas. Eu vejo uma pessoa falando e eu já penso: foi ela, assim, assim, assim. São coisas que a gente previne na cabeça”.

 

O jovem assassino que abre esta matéria confessou seu crime às autoridades quando a suspeita que caia sobre si já era inegável: “Ele confessou tudo, mas eu já sabia. O cadáver me contou”, diz o legista.

 

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A medicina legal está longe do misticismo. É o obtuso conhecimento do cérebro humano que permite o diálogo com as evidências.

 

De acordo com Massini, quando se passa por um estresse muito grande, a adrenalina sobe vertiginosamente e depois, quando passa, vem a inibição: o arrependimento.  

 

Não é diferente com alguém que acaba de cometer um crime. Em uma situação de sequestro, por exemplo, não se pode agir em um momento de clímax, quando os hormônios explodem e as ações deixam longe a racionalidade. “Pô, espera”, comenta o médico. “Há casos que você tá tanto tempo ali que o cara dorme! Acabou o estresse e ele fica dopado, de tanto hormônio que tá dentro dele. Ele fica cansado daquele estresse e dorme”.

 

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Mas depois de um assassinato, raramente se dorme. A razão vem para resolver uma questão, a qual voltamos aqui: onde esconder o corpo?

“Depende do ambiente e da oportunidade”, responde o especialista. “Se é um crime em residência, é mais fácil enterrar. Em São Paulo, a maioria dos casos é picar ou sair embrulhado, enrolado num tapeta, num lençol, pela madrugada. Porque na cidade não dá pra deixar em apartamento. Não tem mais terra nem parede pra romper. Quando é residência sim, esconde em baixo do cimento, joga no poço... Se for um terreno aberto, sem ninguém do lado, pode até sair num carrinho e jogar em algum lugar”.

Pode ser que nem a cremação resolva mesmo o problema. São necessários 900ºC durante quatro horas para transformar uma potencial capa de jornal, romance policial ou famigerado episódio de C.S.I. em cinzas. Poucos são os “de repente assassinos”, movidos pelos ingratos hormônios da adrenalina, que dispõe de tal recurso. Jogando álcool, colocando pneu, acendendo o fogo, sempre sobra ali um dente, um pedacinho de osso, glória dos legistas, desgraça dos espontâneos cremadores. Sumir da face da terra não é uma tarefa fácil: não basta morrer.

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Rio de Janeiro. O corpo de uma mulher é encontrado na praia, vítima de afogamento. Alguns dias antes, uma moça havia registrado a mãe como desaparecida. A filha fez rapidamente a identificação do corpo na praia e pediu a cremação.

“Foi uma tentativa de receber o seguro”, conta Massini ao lembrar o caso. “Uma pessoa deu um golpe, fez um seguro e apareceu um corpo abandonado na praia. A filha fez a denuncia do desaparecimento da mãe, foi ao IML e rapidamente conseguiu na justiça a ordem pra cremar. Depois descobriram que o cadáver era errado, a mãe, na verdade, estava viva”.  Massini localizou a filha, que vivia em uma favela no Rio. Em um típico domingo televisivo, a equipe do Fantástico foi atrás da moça para gravar uma entrevista. Na segunda-feira após o programa ir ao ar ela sumiu, antes que os policiais voltassem do fim de semana.

Massini chegou a trabalhar sobre as cinzas do cadáver encontrado nas areias cariocas. Não foi necessário ir até o fim: o equívoco foi denunciado antes mesmo da minuciosa pesquisa. Mas que era possível resolvê-lo com base nos restos mortais, era. “Nunca é cinza, cinza. É uma cinza pulverizada. Desligam antes do forno e o osso não fica totalmente cremado. Entre essa fase até virar cinza, tem mais uma hora de calor. Pra não gastar, eles pegam osso do jeito que tá lá e passam no triturador, então é uma cinza meio pesada”.

Sempre haverá vestígio, para a alegria do legista: “Até no forno do crematório da pra gente fazer uma brincadeira. Tendo vontade vai”.

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Uma célula cerebral demora três minutos até a morte. Uma célula de fio de cabelo pode demorar dois dias. Após a morte do restante corpo, ela se mantém viva produzindo cabelo e unha.

É preciso entender a morte, mas são poucos que se aventuram nesta “diária ocupação funérea”- por motivos mais ou menos nobres.

“A gente trabalha pela percepção de estar aplicando a justiça e acho que isso que é importante pra gente. A prova pode ser um jogo. Tem um lado que sempre interessa a verdade da prova, mas o criminoso não se interessa por uma prova verdadeira. Se ele puder embaralhar, ele embaralha. Vai ter sempre o lado não verdadeiro da prova. Sempre terá uma pericia tendenciosa, falsa”.

O ser-humano ainda tem mistérios e saídas que a medicina legal desconfia. Ainda bem que Nelson Massini é amigo da morte.



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