Olhos de lince
Por Letícia Fucuchima Augusto - Edição Sumiço - dezembro de 2013

CASO 1

O sujeito entra em uma agência paulistana do HSBC pela segunda vez em duas semanas. Na ocasião anterior, ele havia procurado o banco para contratar um seguro de vida. Naquele dia, ele deseja pagar uma conta – mas do Itaú. A caixa do banco lhe avisa que, bem, aquela conta não poderia ser paga ali. Sem sucesso em sua tarefa, o indivíduo decide ir embora, mas não sem antes tomar um copo d’água. A caminho do bebedouro, ele escorrega e, na tentativa de se escorar, acaba machucando a mão esquerda. Na semana seguinte, o homem retorna à agência atrás da indenização do seguro, pois seu laudo médico constatava que ele havia perdido o movimento dos dedos, caracterizando um quadro de invalidez permanente por acidente.

CASO 2

Um homem procura o banco para contratar o seguro de vida para o irmão, e coloca-se como beneficiário. Pouco tempo depois, ele avisa a seguradora de que seu irmão havia falecido de infarto do miocárdio, quadro comprovado pelo atestado de óbito.

 CASO 3

A vítima de um funesto afogamento: um homem sem contato com sua família biológica, adotado quando criança por artistas circenses, possuía apenas uma namorada recente. O beneficiário do seguro de vida era um amigo, um de seus únicos entes próximos, que se encarregou de todos os procedimentos junto à seguradora para dar entrada na indenização.

Todas essas histórias têm um ponto em comum: a contratação do seguro de vida parece suspeita, como se alguém já estivesse planejando receber a indenização de alguma forma ilícita (as resoluções estão no final da matéria). Quando a seguradora desconfia de uma fraude, o primeiro passo é solicitar uma sindicância – isto é, uma investigação, seja da veracidade do sinistro (acidente, doença ou óbito), ou das informações dadas na hora da compra do seguro.

Esse processo de verificação de fatos e informações é crucial para as seguradoras, pois a indenização somente não será paga se o golpe for realmente comprovado. Em 2012, as fraudes confirmadas pelas investigações somaram R$ 341 milhões, segundo a CNseg (Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Suplementar e Capitalização). Este parece um montante modesto, se comparado aos R$ 28 bilhões de sinistros avisados. Porém, se consideradas todas as suspeitas de fraudes, o valor sobe para aproximadamente R$ 2,2 bilhões, ou 7,8% dos sinistros reportados às seguradoras.

A sindicância é uma profissão pouco conhecida até mesmo no ramo a que presta seus serviços. “Desiste, é mito”, ouvi de um estudante de Ciências Atuárias. Mas o ofício existe. Talvez pareça difícil de acreditar que alguém, agindo nas sombras, desvende todo o tipo de golpes contra as seguradoras. Alguém que sai detrás de sua mesa de trabalho, se afasta dos cálculos e estatísticas impalpáveis e vai a campo coletar documentos e provas de que o sinistro é fraudulento.

Mas, se nem os profissionais do mercado de seguros sabiam do paradeiro (ou sequer da existência) desses investigadores, como eu iria chegar até eles?

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Após inúmeros telefonemas e insistentes e-mails, a autorização finalmente chegou. Por meio de uma ligação de curtíssima duração (45 segundos, mais precisamente), as informações vieram. O nome era Renato. O endereço? A última casa de uma rua sem saída no Belenzinho, Zona Leste de São Paulo – tão escondida que o Google Earth não mostra. Então estava marcado: em três dias, o mais antigo sindicante do Brasil me concederia sua primeira entrevista.

No dia combinado, pontualmente às seis horas de um fim de tarde gelado e chuvoso, toquei a campainha de uma casinha laranja. Aguardei impaciente para dar rosto e personalidade à figura do detetive das seguradoras. E seguiu-se minha primeira decepção. Não, seus trejeitos e aparência não correspondiam, nem de perto, ao imaginário do agente das sombras: o homem que convidou para entrar vestia-se com roupas apropriadas para um passeio ao shopping (sapatênis, jeans e camiseta polo Yves Saint Laurent, como indicava o logotipo estampado no peito esquerdo), e trazia um largo sorriso no rosto, como se estivesse quase ansioso para me contar histórias.

Chegando ao seu escritório, um novo desencantamento: nas paredes, não pendiam fotos dos procurados; a escuridão não prevalecia no ambiente; e nem mesmo as centenas de baratas da sala de Ed Mort se faziam presentes (surpresa agradável esta, diga-se de passagem). Nada ali indicava que aquele seria o ambiente de trabalho de um investigador. Não havia pilhas quilométricas de documentos, pastas amontoadas, e nem sequer um computador. Entretanto, os livros dispostos nas várias prateleiras sugeriam que aquele ofício exigia conhecimentos diversos: códigos do processo civil e penal dividiam prateleiras com manuais de patologias e, curiosamente, uma ou duas obras de Goethe. Essa seleção de livros revela alguns dos assuntos com os quais o investigador se depara diariamente: é preciso saber ao menos um pouco de Medicina para interpretar corretamente laudos médicos e periciais; recomenda-se também estudar a legislação para tratar casos de homicídio e que envolvem a polícia, por exemplo; e não se pode dispensar a ficção, que estimula a criatividade e aflora o sexto sentido do investigador.

Fico sozinha na sala e meus olhos recaem sobre uma intrigante coleção de fitas cassetes, exposta na prateleira mais alta, dividindo espaço com DVD’s de rock nacional. “São reconstituições de alguns casos, depois eu posso te mostrar”, diz Renato, da porta, ao notar meu interesse pelas fitas. Ele me explica que aquelas gravações tratavam, especificamente, de um dos golpes mais aplicados quando se trata de seguro de vida: a automutilação. Nesse caso, a pessoa simula um acidente – normalmente, decepam os dedos – para receber um percentual do seguro contratado. Tal ideia até que não parece completamente descabida quando se fala em valores: a perda de um dos polegares da mão, por exemplo, pode equivaler a quase 25% do valor total de seu capital – ou seja, de uma apólice de R$ 50 mil, valor comum, o segurado receberia R$ 12,5 mil. Se cortar o polegar, este salto evolutivo da espécie humana, parecer muito radical, existem opções mais modestas: a perda da falange deste dedo já é suficiente para angariar em torno de R$ 4,5 mil.

As automutilações são mais comuns nas zonas rurais, onde se pode facilmente alegar acidentes de trabalho. Mas, em caso de suspeita de fraude, é dever do sindicante fazer uma reconstituição do acidente, juntamente com um perito criminal. Renato, no alto de seus vinte anos de experiências, diz já saber de antemão se a ocorrência é forjada ou não. No começo da carreira, ele penou para simular acidentes com luvas de borracha preenchidas com gesso – os resultados nunca eram satisfatórios. Mas a persistência leva à perfeição, e ele buscou mil formas de aprimorar seus experimentos até achar o material ideal: rabo de porco. Após inúmeros fracassos, hoje Renato não tem dúvidas: a consistência e a textura do apêndice traseiro suíno são incrivelmente semelhantes ao da mão humana, e perfeitos para testar as possibilidades de mutilação por máquinas, ferramentas e outros.

Mas nem sempre experimentos são necessários. A linha de investigação muda conforme o tipo de fraude, de acordo com Renato. Existem mais três categorias de golpes contra as seguradoras: doença pré-existente (quando o seguro é contratado após uma doença ou quadro de invalidez já ter sido diagnosticado), falsa comunicação de morte e o homicídio (visando à obtenção da indenização). Nesses casos, a primeira fonte de informações em relação ao sinistro costuma ser a família do segurado: Renato vale-se de seus “olhos azuis” (só depois fui perceber que eram castanhos) para conseguir documentos e exames suficientes para fechar o caso. Quando seu charme não é o bastante, ele precisa recorrer a hospitais, cartórios ou à polícia.

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Quem vê Renato usar termos médicos sofisticados e definir perfeitamente os mecanismos penais para cada tipo de crime não imagina suas origens humildes. Nasceu em uma família de baixa renda na capital paulista, mas estudou por muitos anos em um prestigiado colégio marista no Centro de São Paulo, onde sua mãe lhe conseguiu uma vaga porque trabalhava lá como faxineira. Não chegou a terminar os estudos por falta de vontade – “reprovei e fui virar hippie, viajei por todo o Brasil nos anos 69 e 70”. Da vida itinerante e desbravadora, Renato pulou para o universo dos seguros ao acaso: quando aquele modo de vida começou a perder o sentido, o tio de um amigo, que era corretor de seguros, lhe ofereceu um trabalho na antiga seguradora Induseg. De arquivista, Renato ascendeu a técnico, chefe de setor, e até gerente da empresa, mesmo sem ter frequentado uma única aula de faculdade.

Após ter passado quase 20 anos trabalhando dentro das seguradoras, Renato resolveu que queria fazer parte do outro lado: o da investigação. Naquela época, ainda havia poucos sindicantes independentes espalhados pelo Brasil: o número não chegava a meia dúzia. Cada vez mais fascinado por aquele ofício, Renato decidiu, em março de 1990, abrir sua própria empresa de sindicância, especializada em seguro de vida. Tal exclusividade atraiu diversas seguradoras – Bradesco, Itaú, Sulamérica, Nobre Clube, Chubb Seguros, para citar algumas –, e, por uma década, Renato trabalhou em ritmo frenético, sem descansar sequer um dia. Foi quando seu negócio prosperou: ele chegou a ter 17 sindicantes localizados no Brasil todo, investigando casos tanto no nicho Rio-São Paulo, quanto em municípios como Barreiras, na Bahia, e Colatina, no Espírito Santo.

Mas o auge veio e passou. O mercado de seguros vivenciou um boom de escritórios de sindicância por todo o país e, logo, os altos valores cobrados pela empresa de Renato deixaram de ser competitivos. Além do aumento da oferta de profissionais, o sindicante aponta também uma desvalorização da profissão: “eles [da seguradora] acham que nós ganhamos muito. Mas, no relatório que eu faço para eles, eu não falo todos os percalços pelos quais eu passei. Nas minhas viagens, já passei fome, sede – você sabe o que é ficar com nojo de beber a água que tem no lugar? Isso é um custo que a seguradora não consegue dimensionar”.  Ele explica que a empresa custeia parte da viagem do sindicante – as despesas com deslocamento saem do bolso dele, por exemplo – e, por isso, às vezes entendem como se o profissional estivesse integralmente de férias. “Não é só o fato de estar em Olho-d’Água do Borges (RN), eu tenho que fazer meu serviço sofrendo todas as vicissitudes que a população local sofre”. E, mesmo quando as cidades não são inóspitas, a obtenção de documentos pode demorar: ele já perdeu a conta de quantas vezes teve que voltar ao mesmo endereço para buscar documentos e a família do segurado lhe bateu a porta na cara; ou então quantas horas foram desperdiçadas em salas de espera, aguardando para ser atendido por médicos e policiais.

Por isso, hoje ele trabalha somente com uma seguradora, que aceita lhe pagar de 10% a 15% do valor de cada seguro investigado (“eu vou fazer a seguradora economizar R$ 2 milhões e só vou ganhar R$ 10 mil? Sou eu que estou lá na rua sofrendo!”). E atualmente ele não resolve mais casos de homicídio, pois acredita que não vale a pena – estes podem se estender durante anos. Essa morosidade, por vezes, está relacionada ao trabalho da polícia. “Já cheguei a municiar a polícia com informações que coletei, quando senti que a delegacia era boa, que o caso iria pra frente”, revela. Porém, nem sempre o relacionamento é amigável: também ocorrem atritos com as autoridades, principalmente quando visita cidades pequenas, onde logo é reconhecido como um estranho.

Apesar de todos os perrengues e ameaças que o trabalho lhe proporcionou, Renato diz que não teria outra vida. “Aprendi com o tempo que o medo não deve me impedir de trabalhar”, orgulha-se. Foi preciso superar as náuseas que sentiu ao se deparar com o seu primeiro caso de homicídio, no qual a família do segurado, paupérrima, se viu na mão de criminosos, e ele não pôde fazer nada. Para conviver com as ameaças e confrontos diários, ele diz que é simples: basta deixar claro quem você é, para quem trabalha e o que está procurando. E claro, sempre com um sorriso no rosto, fazendo jus à imagem de “cartão de visitas” da seguradora.

Mas ser destemido não foi a maior lição que Renato tirou da vida de sindicante. Ele enche o peito para dizer que criou um “espírito de confiança” em si mesmo, e que hoje é capaz de resolver seus problemas sem depender dos outros. “Em tese, não necessito de ninguém para viver a minha vida”, conclui. Pudera: suas viagens, que já chegaram a deixá-lo longe de casa por mais de 40 dias, fizeram com que ele se acostumasse com a solidão. Renato tem família – uma ex-mulher, dois filhos e irmãos –, mas diz que seu “coração não vai sangrar” se não a visitar.

Renato sustenta a pose de super-homem de modo convincente. Não titubeia para relatar as tragédias que já vivenciou, não se incomoda em perambular incessantemente, noite e dia, pelos cantos mais longínquos do país, ou de passar as datas comemorativas na companhia apenas de si mesmo. Mas ele não é exceção, e também tem um ponto fraco: as amizades. Por causa das suas viagens, tem sido cada vez mais difícil encontrar com os colegas, com quem costuma se reunir periodicamente para beber e conversar sobre motocicletas. “Mas deles eu sinto falta. Deles e do meu cachorro”, e sorri envergonhado.

 

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Resoluções

CASO 1

Embora o evangélico jurasse de pés juntos que não teria agido de má fé, o golpe foi desmontado. Ele havia perdido, de fato, o movimento dos dedos da mão, mas em ocasião anterior ao episódio no HSBC. Após simular o acidente na agência, a caminho do hospital, o homem abriu propositalmente a lesão que o ferimento anterior havia deixado, para que parecesse recente.

CASO 2

A contratação recente do seguro e a causa da morte (uma das mais comuns) foram aspectos suficientes para levantar suspeitas em torno do caso. Com a investigação, foi comprovado que o segurado já havia morrido dois anos antes da contratação do seguro – seu irmão havia se aliado ao médico da cidade e forjado um novo atestado de óbito.

CASO 3

A identidade do morto era difícil de ser comprovada: o cadáver não pode ser reconhecido pela namorada, pois já foi encontrado em estado avançado de decomposição. De qualquer forma, o caso chegou às autoridades policiais que, com ordem judicial, fizeram a exumação do cadáver. A perícia indicou que a arcada dentária era, de fato, do segurado... mas o corpo não. Faltava uma cicatriz. Descobriu-se, então, que o sujeito integrava uma quadrilha para fraudar seguros e ainda estava vivo na época em que seu seguro foi feito. Quando o golpe estava perto de ser revelado, o pobre foi morto e decapitado, e sua cabeça, colocada junto ao corpo de um estranho.



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